"Se Alice lesse..." Cap 3

... Quando cheguei em casa após o passeio no rio naquela tarde, eu pensava nela, com intervalos, claro, mas sempre nela. Queria saber mais sobre aquela frágil e linda moça, queria entender sua realidade, conhecer seu íntimo. Queria muito mais do que poderia ter e mesmo sabendo que tudo isso era muito além de mim, eu queria do mesmo jeito.

Minha mãe preparava uma sopa de batatas e meu pai já tomado banho, tentava sintonizar um pequeno rádio de pilha que usava para alegrar suas noites quando não tinha o que fazer no centro. O que era bastante estranho, pois naquela noite se iniciaria a festa dos Reis e para a cidade era uma oportunidade única para se fazer dinheiro, ou comprar aquilo que sempre desejou por um preço justo. No ano passado a este, eu e meu pai preparamos várias peças de madeira para vender na festa. Minha mãe se encarregou da tenda e lá fizemos um bom dinheiro que deu para comprar sementes e alguns animais para nosso próprio sustento. A madeireira era bem conhecida, não por ser a única na cidade, mas pela qualidade do seu produto. Meu pai era bem respeitado pelo seu trabalho, sempre que era visto nas ruas, algo que não era muito frequente, as pessoas acenavam e gritavam seu nome. Ele abria um sorriso surrado da vida, mas ainda assim, simpático e retribuía. Mas naquele ano ele nem se quer mencionou algo sobre a festa e eu não comentei, afinal, para que trabalhar quando pode se divertir, certo?

Naquela noite todos iriam se dirigir para o centro a desfrutarem de um churrasco e jogos de azar. Com algumas moedas era até possível da umas voltas na roda gigante. Eu mesmo havia passado meses economizando para gastar tudo nessa festa, era o que tinha de melhor na nossa cidade. Porém, meu pai sintonizava um rádio de pilha e minha mãe cozinhava. Sem dizer nada, tomei um banho e jantamos juntos. No jantar, por sua vez, ele quebrou o silêncio.

- Pescou algo bom? – Minha mãe sorriu e através do seu sorriso uma tosse seca, como se estivesse engolido algo fora do tempo, mas logo desfaçou com um copo de água.

- Não. – Respondi, envergonhado. Nunca fui bom na pesca, não houve um só momento que tivesse fisgado algo que me orgulhasse, mas ainda assim, tentava.

Meu pai levou o café até a boca e pousou a xícara lentamente sob a mesa.

- E por que demorou tanto? Sua mãe já estava preocupada.

Meus olhos fitavam a sopa e lembro-me que pensei com cautela para responder.

- Eu me perdi e acabei adentrando a província da casa abandonada.

Meus pais se olharam e fizeram um pausa.

- Não é mais abandonada. – disse meu ele, em um tom grave. – Ouvi dizer que os Monteiros a compraram.

Não estaria mentindo se dissesse que fiquei bastante triste quando ouvi o que meu pai acabara de dizer. Os monteiros era a família que ele mais detestava em Lagoa do Ouro e embora eu tenha algumas coisas para revelar sobre essa intriga, é apenas uma fração do acontecimento completo.

Pois bem, pelo que já sabem sobre mim nessa história, sabem que não sou nenhum senhor importante, não existem monumentos em meu nome e após minha morte meu nome será logo esquecido. Mas gostaria de dizer que não fora sempre assim, eu tinha um futuro promissor e minha mente vivia repleta de sonhos. Meu tio era o prefeito de Lagoa do Ouro e o Sr. Monteiro, que é como gosto de chamá-lo, era o vice. Lembro de sempre vê-los andado em seus ternos brancos, com seus relógios de bolsos e discutindo sobre um problema aqui, outro ali. Embora sempre que os via juntos, os via discutindo, nunca passou pela minha cabeça infantil que aquilo geraria uma grande catástrofe que afetaria a nossa família. Nós morávamos junto a família do meu tio na mansão que naquele jantar referíamos como abandonada, e era tudo muito bom, eu tinha meus primos, estudava em boas escolas e minha mãe nunca trabalhava, estava sempre em casa para atender meus caprichos com aquele vestido bordado e um sorriso no rosto. Porém, uma noite lembro que olhei pela janela e vi o Sr. Monteiro a empurrar meu tio contra o chão. Devia ter uns oito anos, talvez, e o barulho lá fora deve ter me acordado. O chão estava frio sob meus pés quando fui à janela, afastei a cortina e olhei lá para fora. Ele gritava para meu tio, depois os vi abraçados e ele o empurrou para o chão. O ato deve ter irritado meu pai que logo chegou e ambos começaram a gritar e a baterem um no outro. Meu tio estava de joelhos e foi novamente empurrado. Naquele momento tudo pareceu-me uma brincadeira de pessoas crescidas, o mesmo tipo de jogos que fazíamos nas escola. Havia chovido minutos antes e as poças brilhavam a luz da lua cheia e dos candeeiros; lembro-me que o que mais me impressionou, foi que os crescidos, aparentemente, não se importavam em sujar as roupas. A minha excitação e interesse foram tanto, que devo ter feito barulho e acordado minha mãe, algo que hoje na maturidade, sei que já deveria está acordada. Ela entrou e ficou bastante espantada ao me vê a janela. Empurrou-me para a cama e não respondeu as perguntas que lhe fiz, excepto que as pessoas lá fora estavam a se comportar como animais, que estavam alteradas e que o poder era uma coisa horrível. Nunca me esqueci daquela cena e quando cresci passei a pensar nela com horror, como alguns adultos pensam dos livros que os atemorizam há muito tempo.

Duas noites após aquela, lembro de vê meu pai chegar em casa com os olhos arregalados de quem havia chorado perante um horror eminente. Minha mãe e minha tia o acompanharam em seu desespero assim que o viram. Eu e meus primos nos fitávamos sem entender o que acontecia, até que minha mãe nos levou para o quarto, trouxe-nos um livro e não comentou nada sobre o ocorrido e nós também não perguntamos. No dia seguinte, minha tia arrumou as malas e partiu como meus primos para São Paulo. Nunca mais os vi, nem mesmo em fotos. Meu pai nós levou para uma pequena casa próximo ao lago e lá vivemos desde então. Soube após ficar mais velho, que os Monteiros haviam assassinado meu tio, e tomado todas suas posses através da política, não nos deixando nada. Meu pai embora tudo, resolveu permanecer em Lagoa do Ouro, começou vendendo peças de madeira e fomos sobrevivendo a medida do possível. Agora, querido leitor, imagine o que pensei quando ouvi tais palavras, que a garota no qual minha vida estava destinada poderia fazer parte da família que mais desprezamos...

Terminamos o resto do jantar em silêncio e embora Alice tenha me seduzido de uma forma que não conseguia descrever, aquele sentimento começava a se tornar um sentimento de algumas horas. Não é que deixei de amá-la, assim, instantaneamente, só que naquele momento não podia me dá o luxo de sentir tudo aquilo, especialmente, por uma garota que não merecia. Lembro-me de uma vez na missa de Domingo ter ouvido o padre dizer que os filhos herdavam os pecados de seus pais, e era verdade. Eu havia herdado a mágoa de minha família, assim, como Alice, a culpa.

Lutei bastante nos momentos seguintes para tirá-la de minha mente, queria mergulhar meus pensamentos em um grande lençol negro e não pensar em mais nada, queria apagá-la de minha memória, assim, como desejamos desaparecer com o luto. Mas tudo parecia inútil, bastava um piscar de olhos para que ela clareasse minha mente como um raio em uma tempestade, alimentando a esperança de uma boa colheita, e não importava o que fizesse, lá estava ela, assombrando meu coração.

Jhonny River
Enviado por Jhonny River em 03/02/2014
Código do texto: T4676477
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