O Milagre do Amor

Chamo-me Eliot Duncan e tenho 22 anos. Fui acometido por uma doença rara que me privou de meus movimentos na parte inferior, deixando-me aprisionado a uma cadeira de rodas. Desde então me recuso a receber os raios de sol em meu corpo incrivelmente pálido, limitando-me apenas a respirar o ar fresco que só existe em minha propriedade rodeada de uma floresta jovem e densa.

Minha vida só não foi mais penosa e desejosa de um fim por causa de Lilian. Ela sim era o motivo de minha insistente existência. Poderia assim dizer que sua presença funcionava como um antidepressivo em meu organismo debilitado pela morbidade e infelicidade. Meu coração descompassado voltava aos eixos quando ela passava com seu vestido longo quase desprovido de estampa e, com toda a graciosidade de uma fêmea, espanava as estantes do escritório de meu pai. Poderia ser apenas a nossa empregada, mas somente para mim era bem mais que isso: era a minha deusa particular.

Advirto-os de que não sou depravado. Não tenho sonhos eróticos com Lilian e nem alimento fantasias vulgares. Mesmo não tendo experimentado o outro sexo, preservando-me virgem até então, meus instintos masculinos continuam contidos. Lilian, de certa forma, desperta muitos desejos, como assim faria com qualquer homem. O que faço, de bom agrado, é ocultar tudo que sinto e tentar me ocupar com outras tarefas.

Os dias passavam de forma dolorosa. Não havia esperança de voltar a andar e o medo da solidão me amedrontava de forma insistente. Lilian era mais jovem do que eu, e por vezes me fitava com um olhar meigo quando passava pelo meu quarto. Desde que veio para nossa casa, creio que trocamos algumas dezenas de palavras, numa formalidade que até certo ponto me incomodava. Por conta de minha imobilidade, não sabia o que se passava fora da casa. Não sabia da vida amorosa dela, se saia com alguém. Essa incerteza me deixava mais inseguro e me impedia de tentar qualquer investida. Em conversas informais com Joana, nossa governanta, descobri que Lilian nutria certa indiferença por mim, talvez, por minha condição. Confesso que fiquei terrivelmente magoado e até pensei em despedi-la, porém meu coração não permitia tal atitude leviana.

Fiquei ainda mais recluso, alimentando pensamentos mórbidos, planejando minha própria morte. Teria plenas condições de realizar qualquer intento que acabasse com minha dor inominável. Lilian já evitava meu quarto, como se o temesse de forma inexplicável. Meu sofrimento a atingia de forma negativa, causando-lhe quase uma comoção misturada com comiseração. Só Deus sabe o quanto eu não queria que a situação chegasse àquele ponto. Se não bastasse a indiferença, agora preciso presenciar o medo estampado na face da mulher mais bela que já vi.

Joana evitava falar sobre Lilian na minha frente. O clima em nossa casa já estava ficando ruim, ainda mais que meu pai resolveu viajar a negócios e minha mãe se abdicou dos tratos familiares. Lilian entrava no meu quarto com odioso receio, como quem estava na iminência de topar com a morte. Realizava suas tarefas com uma pressa jamais vista, por vezes, deixando objetos caírem no chão. Seu desleixo era algo novo, e me sentia na obrigação de saná-lo. Pensei numa forma branda de abordá-la sem causar repulsa; mas ela parecia inatingível.

Na véspera da páscoa, Lilian veio ao meu quarto para realizar a faxina mensal. Eu estava terrivelmente debilitado em virtude da má alimentação e mal conseguia me manter sentado na cama. Fiquei de lado para poder olhá-la melhor. Ela arrumava minhas roupas no guarda roupa com as mãos tremulas. Era uma cena até certo ponto desoladora, difícil de presenciar. Tentei reunir todas as minhas forças para ao menos balbuciar algo; mas o medo, insegurança e timidez me impediam. Lilian suspirava com sofreguidão, como se a ansiedade a estivesse consumido por dentro. Quando ela terminou de arrumar minhas roupas, voltou para o lado esquerdo de minha cama para limpar o criado-mudo. Nesse momento pude vem em seu rosto o espanto rubro e a inexpressividade latente. Ainda com as mãos trêmulas, ela derrubou um vidro de xarope que eu, prontamente e inexplicavelmente, pude apanhar do chão. Fiquei surpreso com minha reação, e ao mesmo tempo me senti mais encorajado a falar com ela.

- Lilian, qual o seu problema?

Lilian levou um susto quando lhe fiz a pergunta. Colocou as mãos no peito e me olhou com terrível espanto.

- Senhor Duncan... Desculpe-me, não entendi a pergunta.

- Quero, de uma vez por todas, saber o que está acontecendo com você! Evita o meu quarto como quem foge do demônio, e se comporta como uma criança acuada quando precisa limpá-lo. Diga: por que me teme tanto?

- Ora, senhor... É apenas impressão sua. Sou assim mesmo, desleixada, e minha timidez é por demais evidente quando estou em presença de um homem.

- Não sou idiota, Lilian. E de se insinuar que estás com medo de mim, ou de minha debilidade. Meu estado inspira comoção exagerada, posso ver no rosto de todos os empregados. No seu caso é bem mais evidente. Você acredita que minha morte está próxima e não quer presenciá-la. Causa-lhe repugnância ver um moribundo bem diante de seus olhos. Saiba que, mesmo não estando disposto a lutar pela minha vida, não tolerarei o menosprezo de ninguém. Encare minha presença como tão natural quanto a de qualquer outro morador desta casa.

- Senhor Duncan, peço-lhe mil desculpas. Creio que esteja certo com relação aos meus temores, mas o senhor precisa compreender que sou muito jovem e por isso não estou acostumada a ambientes fúnebres. Fico apreensiva ao vê-lo nessa situação e não sei como me portar. Peço que entenda...

- Não há o que entender aqui, Lilian. Olhe para mim, não consigo andar e estou praticamente sozinho. A presença de empregados em nada me ajuda, e meus pais parecem ainda mais distantes. Quero apenas que encare o fato de que ainda não estou morto e que posso ao menos desfrutar de um pouco de dignidade. Se você quer se desculpar, que o faça sinceramente e pelo menos mude sua postura.

- É isso que estou tentando fazer, senhor. Envergonho-me de minhas atitudes e tentarei ser mais compreensiva. Só queria lhe pedir, com todo o respeito, que tivesse mais amor por sua própria vida e que não se prostre diante das dificuldades.

Ao ouvir as palavras sinceras de Lilian, meu coração foi tomado de estonteante alegria. Ninguém jamais demonstrou qualquer preocupação comigo. Acreditei que nem tudo estava perdido e que poderia amar alguém antes de minha morte. Num gesto de gratidão, segurei a mão de Lilian. Ela me olhou, com contida ternura, e sobrepôs a sua. Então disse, olhando em seus olhos.

- Olha, sei que fui duro contigo, mas não quero que me veja como carrancudo. Queria de todo o coração que me visitasse regularmente, para conversarmos. Prometo que serei uma companhia agradável.

- Senhor Duncan, diante de tão sincero pedido, não há como recusar. Termino meu serviço diariamente às 17 horas e poderei lhe fazer companhia.

Lilian cumpriu sua promessa. Todas às tardes passávamos horas conversando sobre diversos assuntos. Ela adorava literatura estrangeira, principalmente romances de terror, um tipo de literatura que sempre me agradou. Passei a escrever poemas e os recitava para ela. Aos poucos percebia que a minha debilidade diminuíra, ao ponto desejar um passeio pela propriedade. Fiz esse passeio no final do verão, com a ajuda de Lilian. Minhas feições voltavam ao normal, e notei também que Lilian me fitava com um brilho diferente nos olhos.

No inverno nossos passeios foram drasticamente reduzidos, e nos limitávamos a ficar horas no quarto discutindo literatura. Lilian passou a escrever pequenos contos de amor e eu passei a avaliá-los. Estávamos em perfeita sintonia, como que feitos um para o outro, porém não falávamos sobre a nossa vida afetiva. Sei que Lilian continuava solteira e que esporadicamente saia com rapazes, mas nada muito sério. Ela, por sua vez, não me perguntava se estava apaixonado por alguém. Talvez fosse melhor assim.

Quase um ano após a minha primeira conversa com Lilian, sentia que finalmente a perderia para outro homem. Ela passou a sair frequentemente com o dono de uma pequena fábrica que fica a uns vinte quilômetros de nossa propriedade. Sempre chegava com algum presente e parecia bastante entusiasmada. Lilian continuava me visitando habitualmente, mas eu percebia que algo estava diferente. Com medo de ouvir a verdade, resolvi não questionar sua mudança. Continuamos com a nossa conversa habitual.

Dois meses depois Lilian chegou a casa com um anel de noivado. Estava evidentemente feliz e contara a todas as empregadas da casa. Fiquei sabendo por intermédio de Joana. Ela passou a me visitar esporadicamente, e numa das visitas me contou como conheceu seu futuro marido. Fingi que estava surpreso e ao mesmo tempo feliz por ela, mas por dentro meu coração estava terrivelmente despedaçado. Disse a ela que não precisava se sentir na obrigação de me visitar e que poderia fazê-lo quando quiser. Assim ela assentiu. Depois dessa conversa não a vi mais. Bernadete, nossa outra empregada, passou a limpar o meu quarto.

Descobri que Lilian havia pedido demissão e que passaria apenas mais duas semana em nossa casa. Fiquei angustiado e sem saber o que fazer. Ela parecia me evitar. Eu acreditava que algo que falei a fez recuar, porém não sabia como ter certeza disso. Pedi para Joana que a chamasse para uma conversa em meu quarto, mas ela se recusou. Disse que estava se preparando para o casamento e não tinha tempo para nada. Os dias passavam e com eles a minha chance de ficar com Lilian. O casamento estava marcado para a semana seguinte.

Por diversas vezes tentei me levantar da cadeira. Meu esforço era em vão e a cada queda sentia que jamais poderia ter o amor de uma mulher. No intimo eu sabia que nenhuma mulher se sujeitaria a ficar com um inválido como eu, que mais parecia um encosto. Castigava-me terrivelmente com minhas vãs tentativas até ter a certeza de que Lilian já não mais morava em minha casa. Depois disso voltaria a minha morbidade e esquecimento para conseguinte morrer sozinho.

Na noite anterior ao casamento de Lilian, o movimento na casa parecia incessante. Minha mãe, reconhecendo o bom trabalho dela, deixou que a festa de casamento se realizasse em nossa propriedade. Tranquei a porta de meu quarto e impedi qualquer visita. Fui para a cama cedo, chorando como nunca em minha vida. De repente me vi preso em um pesadelo, onde todos morriam e eu permanecia vivo num lugar inóspito e escuro. Gritava freneticamente, porém ninguém ouvia. Os corpos de meus empregados ardiam em chamas e nada podia fazer. Arrastava-me para fugir do fogo, mas as chamas me perseguiam sem pudor. Por um milagre eu escapara e consegui me esconder na floresta. Ao longe ouvia um grito de socorro terrivelmente familiar. Era Lilian, que estava presa no segundo andar da casa em chamas. Os gritos se prolongaram até que acordei. Senti um terrível calor e escutei gritos por toda a casa.

Na ânsia de me levantar, cai ruidosamente no chão. Notei que alguém batia em minha porta e gritava meu nome. Parecia ser Joana. Por conta do barulho ela não pode me ouvir. Fui me arrastando até a porta. O fogo já se aproximara do corredor. Quando toquei a maçaneta, ouvi os gritos de Lilian que vinham do quarto ao lado. Tentei me reerguer, mas continuava limitado pela minha deficiência. Os gritos de Lilian continuavam cada vez mais desoladores. Eu chorava, impotente, tentando me levantar. A cada grito que ouvia, sentia meu interior inflamar de coragem e minhas pernas pareciam inchar inexplicavelmente. Sem perceber, estava de pé, apoiado à porta com a chave na mão. Destranquei-a e me deparei com uma coluna de fogo no corredor. Desviei-me dos pedaços de madeira em chamas e alcancei o quarto onde Lilian estava. A porta estava trancada. Com pequeno impulso consegui arromba-la. Lilian estava desmaiada perto da janela.

As chamas já se aproximavam do quarto onde nós estávamos. Tentei reanimá-la, mas não consegui. Tomado de indescritível coragem, segurei-a nos braços e segui pelo corredor em chamas. Desviei-me dos focos de incêndio e consegui alcançar a escadaria. Desci com cuidado. No andar de baixo quase não se podia achar um lugar para passar. Lilian finalmente acordou e me olhou com a expressão assustada.

- Eliot, é você mesmo? – ela perguntou. – Devo estar sonhando.

- Não está sonhando. Sou eu mesmo e estamos em terrível perigo. A casa está em chamas e precisamos sair logo antes que desabe.

Corremos pelo estreito corredor de escombros até a porta dos fundos. Estava trancada. Atrás de nós uma infernal fogueira consumia tudo e o que podíamos fazer era tentar arrombar a porta. Bati com os ombros e dei pontapés, porém o máximo que consegui foi um buraco na madeira suficiente para que Lilian pudesse passar.

- Não vou sem você – ela disse, quase chorando. – Por Deus, não queria casar com John. Eu queria ficar com você. Eu te amo, e passei a te amar desde o momento em que te conheci de verdade. Fui tola ao esconder meus sentimentos. Espero que me perdoe algum dia.

Em meio ao calor infernal daquele lugar, consegui chorar ao ouvir a declaração de Lilian. Queria, naquele momento, dizer tudo que sentia, mas eram tantas palavras que não haveria tempo de proferi-las antes de tudo desabar. Por isso, limitei-me apenas em dizer o mais importante.

- Lilian, eu sempre te amei. O único erro que cometi foi não me declarar para você. Agora vá, se salve antes que seja tarde demais para nós dois.

- Já disse, não vou! Ficarei aqui com você.

A casa estava desabando. O andar superior já havia caído e o peso dos escombros forçava o teto terrivelmente. A sala já estava inundada de brasas e a única parte ainda intacta era o corredor onde estávamos. Implorei para Lilian seguir pelo buraco, mas ela não me obedecia. Reuni todas as minhas forças e num impulso joguei meu corpo contra a porta. Puxei Lilian pelo braço e a joguei para fora enquanto o teto caia sobre mim. Ela felizmente se salvou. Um dos empregados a carregou até o gramado. Eu fiquei preso debaixo dos escombros.

Lilian chorava inconsoladamente. Não restou nada da casa e eu não consegui sair. O fogo só foi contido na manhã do dia seguinte. Acordei em meio às cinzas do que sobrou e caminhei pelo gramado em busca de Lilian. Ela estava no alojamento dos empregados que ficava numa construção separada da nossa casa. A porta estava aberta e entrei, sem fazer muito barulho. Procurei em todos os quartos e finalmente a encontrei deitada numa das camas. Aproximei-me dela e lhe dei um beijo na face. Ela acordou e me fitou com uma ternura nos olhos que jamais vi. Sem desviarmos o olhar, nos beijamos longamente, até que senti meu corpo desaparecer. Lilian havia percebido também.

- Não, não! Eliot! Eliot! Não vá! – gritou ela.

Meu corpo desaparecia como uma miragem. Lembro-me que a última frase que eu disse foi:

- Meu amor por você é maior que tudo e sobreviverá até à morte. Não chore por mim, pois estarei sempre com você.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 26/01/2014
Código do texto: T4666129
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