* AMORES E ROSAS*
“Nada dura para sempre e a eternidade é apenas uma confortável ilusão que aceitamos sem nos importar." Dizia um velho e desgastado folheto que eu lia enquanto tomava café em uma espelunca qualquer perdida no meio da cidade.
“Hum , até concordo em partes”, calculei.
Fiquei murmurando com meus botões: aceito que todas as coisas estariam condenadas a terem um começo, um percurso e um inevitável fim. Tudo começa e se vai. Nada fica. E de um certo modo, isso é sublime. Se a eternidade existisse, tudo seria uma chatice. Já pensou uma coisa não terminar nunca? Como um filme passando, passando e passando, sem nunca chegar aos créditos.
“Mas afinal, quem escreveu essa porra?”, disse em voz alta entre um gole e outro de café. “A eternidade não existe, ou se existe não foi feita para mim”, conclui em pensamento.
Tudo bem, agora você deve estar pensando por que só concordo em partes? Primeiro, porque sou chato pra cacete. Nunca gostei de concordar com tudo. E segundo, porque no fundo reconheço que há uma coisa eterna em nossa existência tão fragmentada: a repetibilidade. Parece contraditório, mas eu explico. Como já disse, tudo tem um começo, meio e fim. Noutras palavras, quer dizer que tudo nasce, existe e morre. Isso, inevitavelmente é um ciclo, gostemos ou não. As pessoas nascem, vivem, choram, riem, brincam, correm, amam, se magoam, e no final, todos morrem. E assim é com tudo. As estrelas, por mais longas que sejam suas existências, um dia elas se desfazem em explosões estelares e simplesmente deixam de existir. Planetas, animais, satélites, constelações inteiras e pequenas rosas, nascem, existem e se findam em um ciclo "eterno" de início e fim.
É exatamente nisso que reside a eternidade. Nos infinitos ciclos de começo, meio e fim. O terminar de um começo, torna a existência um eterno girar de vida e morte. Dentro dessa complexa estrutura de nascimento e regresso, estamos nós. Frágeis essências caminhando sobre um mundo em constante colapso. Viver é estar na rota de colisão de um amontoado de desgarrados sentimentos conflitantes, que acabam por trazer angústia àqueles que caminham mais descuidados. Entre tantas colisões, algumas nos surpreendem de maneira inexplicável. Uma delas foi tão feroz e profunda que jamais esquecerei: a colisão do olhar dela com o meu.
É. A vida tem dessas sacadas. Coisas que ao mesmo tempo tentamos evitar e torcemos para acontecer. Conheci Judith em uma livraria tão velha quanto o Egito Antigo. Deve ter sido o olhar, ou então, a pele suave que me fez afundar em um mar de tentações quando vi aquela mulher.
Ela tinha o cabelo cor de caramelo, escorrido até os ombros. Ostentava um rosto perfeitamente desenhando, lábios carnudos e sobrancelha oblíqua. Tinha uma pequena pinta pouco acima do lado esquerdo da boca, e outro perto do olho direito. E os olhos profundos. Ah aqueles olhos...eram da mesma cor do cabelo, mas brilhavam de um jeito que nunca irei esquecer.
Conversei umas três ou quatro vezes com ela. Desde a primeira vez, percebi como era dócil, calma e tímida. Falava sempre pausadamente e com os dedos das mãos entrelaçados. Às vezes olhava para baixo enquanto falava e ficava com a maçã das bochechas rosadas. Era sempre sutil e delicada.
Possuíamos um grande ponto em comum: amávamos livros e tango. Porém, as semelhanças terminavam por aí. Ela amava rosas e o cheiro das flores me dá alergia.
Judith gostava tanto de rosas que tinha a tatuagem de uma no pé esquerdo, era a única rosa que eu havia gostado até então. As diferenças não se esgotavam nisso. Ela gostava de gato e eu de cachorro. Eu tomava uísque quase todas as noites antes de dormir, ela odiava álcool. Eu gostava de filmes de terror e ela detestava. Contudo, uma coisa dentro dessa contraditória "história" era incontroversa. Sentíamos atraídos um pelo outro desde o famigerado dia da colisão de nossos olhares.
Dentro de poucos meses, conversávamos quase todo dia. Eu ficava inventando livros que supostamente queria comprar e ela sempre abria seu melhor sorriso quando eu chegava naquela velha livraria. O resultado disso é que nunca comprei tantos livros e ela nunca sorriu tanto em toda sua vida.
No fundo, queria me atirar em seus braços, mas não podia. Há anos eu vivia uma existência desregrada, impulsionada pela boemia e pelas muitas mulheres que me "envolvia" simultaneamente. Passei a maior parte de meus dias perdendo-me em prazeres banais e egoístas, sem sequer amar nenhuma. Algumas aceitavam essa relação de apenas prazer e nosso envolvimento durava mais. Outras tentavam se aproximar, acabavam freadas pela blindagem que eu estendia sobre qualquer possível cumplicidade. No fim, acabavam magoadas. Com sorte, juravam nunca mais me querer por perto. Algumas ultrapassavam essa barreira. Ameaças, tapas e arranhões eram constantes nesses casos.
E era assim que conduzia meus relacionamentos, vivendo em uma roda onde todos roubavam. Entretanto, por algum motivo que eu relutava em esconder de mim, não conseguiria fazer isso com Judith. Era difícil imagina-la chorando por alguém que não merecia nenhuma lágrima. Talvez fosse amor de verdade, mas deixa para lá. Essas coisas não me passavam pela cabeça desde os meus 13 anos quando amei Nicole, uma garota do colégio. Foi a primeira que beijei. Era uma noite estrelada, estávamos sentados em um velho balanço no quintal dos fundos da minha casa e simplesmente aconteceu. Confesso que até então, todos os outros beijos deixaram a desejar.
Na época, não sabíamos de nada. Hoje ela está casada e com três filhos. Já eu, continuo sem saber. Conversamos às vezes e ela ri de minhas aventuras amorosas. Não tenho certeza se Judith riria se soubesse.
O problema é que eu percebia que Judith começava a sentir o mesmo que eu. Sua timidez ou seu instinto de autopreservação a impedia de se atirar por completo.
A verdade é que as coisas se complicavam. Há algum tempo encontrei uma mulher com quem comecei um relacionamento aberto. Renata. Ela era uma mestiça de 1,65 de altura, olhos puxados, cabelos curtos e negros, tatuagem de dragão nas costas. Porém, as coisas começavam a ficar mais sérias. Passou a perguntar onde eu ia e com quem estava. Renata era uma boa pessoa, mas não me encantava. Estávamos juntos mais por conveniência e pura atração. Sentimentos se esvaíam sempre que nos separávamos no amanhecer de mais um dia.
Ás vezes sonhava com Judith. Meu coração acordava preso e não sabia ao certo como libertá-lo. Talvez devesse romper com meu cotidiano e mergulhar no profundo oceano do amor que sabia sentir por ela. Por um instante, pensei ser ele um bálsamo para minha irrequieta e errante alma.
Já sem muito ao que me entregar, meus dias não mais bastavam em si mesmos. Era chegada a hora de uma redenção que devia a mim. Não deixaria mais o tempo simplesmente passar. Porém, quando chegava perto de Judith, as coisas não eram tão fáceis assim. Um aperto circundava minha garganta e eu começava a tropeçar nas palavras. Nesse ritmo, demoraria anos até desnudar meus verdadeiros sentimentos para ela.
Talvez fosse o peso dos amores rompidos escritos naqueles livros da livraria velha que me tirava a coragem. Mudei a estratégia. Há algum tempo sabia onde ela morava. Um pequeno apartamento no 5ª andar de um decadente prédio cinza corroído pelo bolor e fungos. Judith morava sozinha desde a morte do pai. Pelo menos era isso que eu sabia. Naquele dia, esperei em um café que tinha na esquina.
Abordei ela quase chegando na porta do prédio. Ela sorriu surpresa. Nossos olhos pausaram por um instante.
– A então você mora aqui? Disse tentando me fazer de desentendido.
– Por enquanto sim. Mas que coincidência você passar por aqui agora, como estão as coisas? - Perguntou com um brilho diferente no olhar.
– Estão ótimas e a livraria?
– Ah como sempre. Você não apareceu mais.
– Desculpe, é a falta de tempo mesmo.
Ela olhou para baixou, depois para dentro do prédio.
– Nossa, desculpa minha indelicadeza, mas não convidei você para entrar. Quer conhecer onde me escondo?
– Receio incomodar. - Disse de pronto.
– Não será incomodo. Só não ligue para a simplicidade, faz um bocado de tempo que não recebo uma visita. - Fiz que sim com a cabeça. Subimos as antigas escadas de mármore branco. Um cheiro de mofo tomava o recinto. Rachaduras contornavam as paredes pintadas de branco e pareciam enormes cicatrizes.
Chegamos ao seu apartamento. Um corredor apertado com piso de cerâmica verde dava para porta e findava em uma pequena sala habitada por duas poltronas desbotadas de marrom e uma televisão de 15 polegadas. Reconheci ali, rastros de alguns pares de anos de solidão, uma sombra que, de certo modo, eu conhecia bem.
Assim que atravessei aquele corredor, comecei a tossir e coçar o nariz. Judith me lançou um olhar furtivo e perguntou o que acontecera. Só então meu consciente se deu conta que tinham rosas espalhadas por todo canto. Em cima da televisão, ao lado das poltronas, em prateleiras pelo corredor. Vasos grandes e pequenos reinavam soberanos sobre aquele lugar e eu me sentia um intruso naquele mar de flores.
– São as rosas, alergia. Logo passa, não vou morrer por isso. - Disse rindo. Ela retribuiu o riso e afastou os vasos de perto de uma poltrona. Sentei ali e sem perceber, me perdi observando encantado os traços majestosos do corpo de Judith. Ela disfarçou e entrou no que devia ser a cozinha do apartamento.
– Bebe alguma coisa? Indagou ela.
– Agradeço por um café preto. Respondi.
Enquanto ela preparava o café, levantei e me aproximei de uma pequena janela no centro da sala, escondida por uma cortina branca com rosas desenhadas. Perguntei se poderia abrir para respirar um ar puro e ela deu sinal verde. O hálito gelado do começo da noite passou pela janela e acariciou meu rosto. Me senti imensuravelmente melhor. Escutava o remexer de xícaras e talheres enquanto olhava a cidade começar a repousar e acender suas luzes. Olhei para a lua, estava cheia e parecia um medalhão de prata soberana nos céus. Logo Judith me chamou até a cozinha para tomar o café. Sentei numa cadeira de madeira envelhecida próximo a mesa. Uma toalha marrom com rosas pintadas a mão se estendia sobre ela. Rosas de diversas cores circundavam a cozinha e me faziam tossir o tempo todo.
– Você gosta mesmo de rosas não é? Disse eu coçando o nariz.
– Desde criança. Meu pai me deu a primeira. O aroma delas me acalmam.
– Eu nem sabia que existiam rosas de tantas cores. O que significam?
– As brancas simbolizam a paz ou a inocência. As amarelas a amizade, as verdes a esperança e as violetas o autocontrole. As vermelhas é claro, simbolizam o amor e a paixão. As primeiras rosas foram plantadas nos jardins da Ásia, há pelo menos 5 mil anos.
– Estou encantado. - Disse rindo.
O tempo parecia voar e conversamos sobre livros, música e filosofia. A inteligência dela me impressionava na mesma proporção de seu olhar e sorriso. Porém, sentia-me incapaz de me aproximar dela. Olhei para o relógio tentando disfarçar, acabei inventando que precisava ir embora.
Ela abriu um sorriso cálido e contagioso e disse que me acompanharia até a porta. Quando estávamos quase chegando até ela, Judith segurou em meu braço esquerdo.
– Obrigado por entrar. - Disse timidamente.
Deslizei minha mão até a dela e a apertei. Por um momento meus olhos se perderam nos dela e o mundo nunca tinha ficado tão distante. Eu sabia que era agora ou nunca. Aproximei meu rosto do dela. Os olhos de Judith levemente se fecharam e os lábios entreabertos tremiam vagarosamente até se encontrar com os meus. E que encontro saboroso. Beijei-a com amor, deixando minha boca acariciar a dela. Os minutos seguintes duraram anos. E quando terminou, tive a certeza que havia quebrado o "feitiço" daquele primeiro beijo que dividi com Nicole . Agora havia com quem compará-lo sem deixar a desejar.
Quando abriu os olhos, Judith me abraçou forte. Podia sentir cada curva de seu corpo. Não consegui me segurar e minhas mãos percorreram todas essas curvas com muito desejo. Quando percebi estávamos nos beijando novamente e íamos em direção as poltronas tristes do apartamento cheiroso.
Judith sentou nelas. Acabou escorregando para o chão. Ali no tapete deitei por cima dela. Nos embolamos num frenesi de paixão. Eu queria aquela mulher enlouquecidamente.
Nos amamos como se não houvesse amanhã. Nossos gemidos eram cada vez mais altos. Estávamos molhados de suor e tesão.
Judith cravava suas unhas em mim. Marcava minha pele e eu queria mais e mais. Eu queria ser dela, ali e sempre.
Quando finalmente saciamos nosso impulso urgente voltamos a trocar um olhar profundo.
Percebi lágrimas em Judith. Ela secou os olhos e nada disse. Deitou em meu peito e ficamos assim, entregues um ao outro durante uma eternidade. Judith secava as lágrimas disfarçadamente. Eu segurava sua mão e beijava sua testa. Adormeci.
Acordamos em um sobressalto com os barulhos da rua.
– Judith, eu realmente preciso ir.
– Sim meu querido. Tudo certo.
– E agora?
– E agora o quê?
– E agora, nós?
Judith mordeu os lábios, desviou o olhar rapidamente e em seguida voltou a me encarar.
– Agora a gente vê o que acontece, respondeu ela sorrindo.
– Casa comigo? Disse eu de supetão
Ela riu e me jogou a camisa que estava no chão. Rimos os dois.
Estava indo embora com vontade de ficar.
– Você precisa ir, nos vemos novamente outra hora, tudo bem? Disse ela com um sorriso sincero.
Devolvi o sorriso, dei um leve beijo no peito de sua mão e respondi:
– Sei como te encontrar.
Ela se aproximou, beijou minha testa e fechou lentamente a porta. Desci as escadas uma tonelada mais leve e cheiro de Judith e das rosas impregnadas em mim.
*****
Acordei aquela manhã ainda o aroma das rosas coçando meu nariz. Por mais que tomasse banho, eles não me abandonavam. Acompanhava-me também a sombra de Judith e o que sentia por ela. Porém, havia algo mais que não me abandonava naquele momento: Renata.
Ela havia me procurado quase todos os dias daquela semana. Estive com ela há três dias, ou talvez ontem, não importa. Hoje conversaríamos. Éramos sempre francos e entre mim e ela não existia muito mais que isso.
Nos encontramos na lanchonete onde nos conhecemos. Um lugar cafona no último grau, mas que servia uma belo strudel de maçã.
Quando falei que estava amando outra mulher, Renata compreendeu que não nos veríamos mais. De um certo modo, foi também uma libertação para ela. Eu não poderia ser um bom homem. Não tão bom quanto ela merecia. Antes de levantar da cadeira, ela disse que gostava de mim. Também gostava dela, era uma pessoa realmente incrível. Continuaremos sendo amigos, com toda certeza. Ela levantou, me olhou nos olhos e disparou:
- Então vamos selar nossa amizade com um beijo. O último, o que me diz?
Na hora hesitei, mas pelo menos isso ela merecia. Demos um beijo seco e rápido, como fora nossa despedida como amantes. Ela virou as costas e sumiu por entre a multidão de estranhos que caminhava pela cidade. Talvez, com o tempo ela se tornasse também uma estranha para mim, como muitas outras que passaram pela minha vida. Memórias que não sei se sobreviverão pelo caminhar rápido dos anos. Sem ter mais nada para fazer ali, também parti, me tornando mais um desconhecido naquele oceano de vidas.
O dia estava mergulhado em cinza. Uma camada espessa de nuvens cobria o céu e o sol se escondia atrás dela. O caminhar naquelas pesadas ruas faziam-me lembrar que já havia ultrapassado mais de trinta anos de existência terrena. Todos esses anos estavam repletos de momentos mágicos e únicos. Porém, faltava-me uma companheira de verdade para passar comigo esses tempos. Talvez Nicole tivesse sido uma boa parceira. Mas a vida não quis assim. Agradecia agora, por ter conhecido Judith.
Toda verdadeira felicidade merece ser compartilhada com alguém, ainda que relutemos a admitir. Na vida, temos que encontrar alguém que caminhe ao nosso lado, para não nos perdermos no meio de uma confusa plateia que, na verdade, não se importa conosco. Eu compreendia isso somente agora.
Minha vontade naquele momento era falar com Judith. Mas quis esperar. Alguns dias de ausência fariam bem para acalmar nossas restantes dúvidas. As coisas precisavam acontecer de forma natural, sem pressões, apenas distrações.
*****
Estava atrasado. Faltava menos de uma hora para a livraria fechar. Queria acompanhar Judith até seu apartamento. Uma visita surpresa, mas talvez esperada.
O sol castigava meu rosto e gotas de suor escorriam. Apressei o passo e em pouco tempo, já me encontrava apenas algumas quadras. Quando cheguei Judith ainda estava lá dentro. Lançou um olhar de surpresa quando me viu, mas não deixou sorriso algum escapar por entre os lábios. Para minha sorte, a livraria estava praticamente vazia.
Me aproximei. Ela se mostrava estranha. Quando finalmente olhou para mim, me cumprimentou de forma fria. Talvez fosse pela minha demora em lhe procurar.
– Desculpe-me, queria ter vindo antes, mas não deu.
Ela continuou arrumando uma prateleira de livros e não disse nada. Apenas aguardei ela terminar.
– Vi você com uma mulher. - Disse ela quebrando o silêncio.
Meu coração disparou e não sabia o que dizer, pelo tom de voz de Judith, ela tinha visto o maldito beijo de despedida.
- Ah o nome dela é Renata. Estávamos, é... estávamos nos despedindo.
- Despedida?De quê?
- Desculpe-me, é complicado dizer agora. Mas, não é o que está pensando, eu queria ter contado antes sobre ela. - Falei enquanto tropeçava nas palavras.
- Contar porquê? Não sou nada sua.
- Judith, eu...eu...sinto muito.
- Não sinta.
- Eu não queria isso para você. Na verdade, queria ficar contigo, cuidar de você e... - Antes que eu terminasse ela me interrompeu.
- Não precisa, eu sei me cuidar. De qualquer modo, acho melhor você ir embora, a livraria já vai fechar.
Seca, direta e magoada. Assim ela estava. Senti naquele momento que nem que eu falasse a coisa certa mil vezes, a conversa não se desenvolveria. Se eu pudesse, voltaria no tempo. Abaixei a cabeça e fui embora.
Antes de atravessar a porta de saída, olhei para ela e ela devolveu o olhar. Em seu rosto pude ver uma lágrima levemente escorrer. Era um choro diferente daquele outro que acalentei em meus braços. Ela chorou e estava triste, eu morri.
*****
Pela primeira vez em toda vida, sentia meu coração desmoronar. Devia ser real, porque agora eu sentia. A figura de Judith era uma sombra constante em minha cabeça. Ainda que inconscientemente, pensava nela. Era inevitável. Sentia falta do olhar e da voz. Sentia falta da maneira como ela agia e ria. Até do aroma das rosas sentia falta. Ela estava em tudo, mesmo sem querer. Minha memória recuperava cada parte do tempo que passamos juntos. Eu lembrava de tudo, só não conseguia lembrar de esquecê-la.
Além do peso das lembranças, carregava também o fardo da culpa. Estávamos despedaçados e a culpa era toda minha. Conduzi por caminhos que só me levaram a perda da pessoa que sabia amar. Porém, nunca fui homem de lamentações. Decidi, então, fazer a única coisa que me restava: tentar novamente.
Era um final de tarde qualquer, as luzes frias da rua começavam acender e as cores do céu terminavam de mudar. Eu corria para encontrar Judith. Fui até a livraria, mas ela não estava mais lá. Cheguei ao seu apartamento, a ausência continuava. Sentei nas úmidas escadas daquele velho prédio e esperei um tempo que pareceu eterno, entretanto, sem sucesso.
Sai dali. Corri pelas ruas cheias de pessoas. Elas nunca estiveram tão vazias. A noite já era soberana e um ar fresco passava pelo meu rosto sufocado.
Um suor frio começava a escorrer de minha testa. Minhas pernas cansadas, titubeavam. Minha visão começava a embaçar e eu caminhava com as mãos nos bolsos procurando por uma prece que não encontrava. Cheguei até a esquina daquela quadra e um súbito aperto atingiu meu coração. Meus olhos brilharam como diamantes. Apenas alguns metros a frente, Judith estava parada segurando uma latinha de refrigerante. Nossos olhares colidiram novamente, mas ela fez questão de fazer de conta que não se importava com isso.
Virou-se e começou a caminhar. Perto dali, as pessoas conversavam animadamente em frente dos vários cafés que se espalhavam pelo quarteirão. A noite estava pulsante e cheia de vida.
Corri atrás de Judith e a segurei pelo braço.
Ela me deu um olhar mortal.
Não soltei o braço.
- Não irei te soltar por nada. - Disparei. Ela continuou a me encarar com aquele olhar taciturno e exclamou:
- Então vou começar a gritar, pessoas aqui é que não faltam para escutar. - Meu coração queria saltar pela boca e eu começava a ficar ofegante. Respirei fundo e respondi.
- Se quiser eu grito por você. Não me importa. Você precisa me escutar. Pelo menos agora, pelo menos por um momento. Pode se ver livre de mim para sempre depois.
Ela cerrou os olhos, soltou uma baforada de ar e fez que sim com a cabeça.
- Então está bem, vou ouvir você, mas pelo menos solte meu braço.
Soltei o braço dela imediatamente. Olhei fundo nos seus olhos e sorri de alívio. Estendi o outro braço que estava escondendo atrás das costas e mostrei uma rosa para ela. A rosa mais bonita que já tinha visto.
- É para você, por favor, aceite.
- Você não gosta de rosas. - Respondeu.
- Mas gosto de você. - Retruquei.
- Me fez parar por um rosa?
- Não. Eu queria dizer que, que...
- Que?
- Que está difícil ficar sem. Eu precisava vê-la, seu sorriso, seu olhar, qualquer coisa. Isso está me matando. Eu fiz coisas erradas na vida, na verdade, praticamente a vida toda. Porém, eu nunca tinha conhecido alguém como você antes e talvez nunca conheça. Se você tivesse sido a primeira, eu juro que nunca tinha tido outra. Desculpa, eu deveria ter contado tudo para você, mas não queria te perder assim, queria ajeitar minha vida antes. Me perdoa.
Eu olhava para o fundo dos olhos dela e via neles meu próprio olhar. Atrás dela, só enxergava o brilho da lua e das estrelas que preenchiam o céu daquela noite.
- Como irei confiar em você? Você nunca prestou não é mesmo? Quantas vai ter enquanto estiver comigo? - Disse.
- Eu prestarei para você e ninguém mais, eu juro. Se esse meu coração pudesse falar, diria que você é a única.
- Não acha que cairei nessa conversa?Nem nos conhecemos tanto assim.
Minha garganta começava a secar e meus olhos começaram a lacrimejar. Eu sabia que não podia deixá-la partir. Seria um inferno para mim. Deixei a rosa no chão, segurei as mãos dela e me ajoelhei.
- A lua é testemunha de meu juramento. Eu amo você como nunca amei ninguém. Você sabe, a vida por si só é complicada e não precisamos dificultá-la mais. Com sorte, isso acontece uma ou duas vezes na vida e se deixarmos passar, morremos nos arrependendo.
Algumas pessoas que passavam pela rua pararam e outros começaram a chegar mais perto. Judith olhou para os lados e viu que estavam nos olhando.
- Você está passando vergonha. Levante daí.
- Não me importo com ninguém nesse momento, a não ser com você e eles, muito menos sem importam conosco. Nossas vidas, assim como tudo que existe, é um ciclo com nascimento, existência e morte. E o que importa na vida afinal, são essas coisas que sentimentos. O amor é um exemplo disso. Se deixarmos esse tipo de coisa passar, não sei se vale a pena nosso percurso nesse ciclo. Acho que estou começando a falar um monte de bobagem, então só tenho a dizer que preciso de você e que não sei se consigo viver sem você.
Ela abriu um sorriso de canto, o primeiro aquela noite.
- Claro que você vive sem mim. Viveu até aqui.
Abaixei a cabeça, devolvi o sorriso de canto e falei:
- É, você tem razão. Eu vivo sem você, porém eu não quero. Realmente, eu não quero viver sem te ter. Juntos podemos fazer a vida espetacular e maravilhosa, mas para isso preciso de você ao meu lado. O que me diz?
- Levante. - Disse ela puxando minhas mãos. Antes, peguei a rosa.
- Deixe a rosa. Eu não preciso dela. Você sabe, tenho muitas. Uma a mais não faria diferença.
- Judith, me escute, quer ser pra você um companheiro de verdade. Não pode disfarçar sua solidão com rosas pela vida inteira. Algumas coisas poderiam ser melhores se nós apenas a deixarmos serem. Então, permita-me ser o homem da sua vida. - Exclamei olhando no mais profundo de seus olhos.
- Você não tinha alergia a rosas?
- Eu tinha, mas não tenho mais. Passou.
- Passou?Não sabia que essas coisas passavam assim!
- Talvez você tenha me curado.
Ela riu, passou a mão levemente pelo meu rosto. Minhas pernas tremeram.
- Então você quer ser meu homem por toda a vida?
- Inteiro seu. - Respondi com entusiasmo.
- Essa chance é única, se desperdiçar, mato você e levo rosas negras em seu túmulo. - Disse ela rindo. Nossos olhares se sincronizaram pela primeira vez naquela noite. Me aproximei dela e nos beijamos. Um beijo macio, doce e infinito. Algumas pessoas que estavam ao redor aplaudiram, outras saíram tímidas sem fazer nada. Judith olhou dentro de meus olhos.
- Realmente eu gosto de você. - Disse ela.
Dei novamente um beijo em seus lábios. Nos abraçamos forte. Ela me deu a mão e começamos a caminhar.
- Para onde quer ir? - Perguntei.
- Não tenho ideia. A noite esta tão linda para irmos a um lugar só.
Apertei com firmeza a mão de Judith. Fomos caminhando sem rumo. Apenas nós dois, de costas para o mundo. Eu me sentia imensamente feliz. Por algum motivo, lembrei das palavras daquele folheto. “A eternidade não existe, é apenas uma ilusão confortável”. Nisso eu acreditava. Com o tempo, tudo se vai. Sentimentos acabam virando belas recordações. Esquecemos rostos, esquecemos ilusões e decepções, esquecemos quem fomos ou quem queríamos ser. Tudo isso passa por nós e depois desaparece com o final de nossa existência. Mas não existe um verdadeiro final. Um final de tudo. O que existe é o eterno recomeço do ciclo que falei outrora. Nascimento, existência e morte.
Enquanto caminho, vejo o brilho das estrelas refletido nos olhos de Judith. Vejo seu suave cabelo ao vento. Seus lábios perfeitamente desenhados. Vejo ela rindo para mim e lhe dou um abraço. O ar fresco da noite envolve nossos corpos e nada mais me importa. Nada mais importa...
FIM