No balbuciar das pestanas, alguns raios de sol já iluminavam os pensamentos.
Acordes, ao longe, envolviam-me e conduziam meus passos em direção às escadas.
 
Ainda sonolenta, confundia-me entre os tons do violino, as notas do piano e o trautear dos pássaros.
 
A cada passo a curiosidade me instigava a prosseguir. Meus sentidos seguiam veementes, como se se lançassem a um livro fechado, que a espera d'algum dourado toque , abre em pétalas todos os seus segredos.
 
Foi então que na cozinha o avistei...
Camisa branca, uma taça de vinho tinto n'uma das mãos, enquanto a outra se apoiava no balcão.
 
Sentei-me na escada a observá-lo. Mal podia acreditar no que meus olhos viam...
 
Não corri ao seu encontro. Minha inquietude poderia acabar com aquele momento sublime. Afinal, as mãos trêmulas, o lacrimejar dos olhos, tudo me condenaria. Eu me condenaria n'um abraço impetuoso.
Então respirei profundamente, como quem tenta acalmar um torvelinho no peito, e me voltei a cada detalhe.
 
Com destreza afiava a faca na chaira. Movimentos fortes ao afiar e ao cortar as cebolas e os tomates.
Dentre os pimentões, dispostos na travessa da bancada, escolheu os amarelos. Talvez pela suavidade que seu prato levaria. Cortou também salsinhas e cebolinhas enquanto algo permanecia de molho em água.
 
Uma generosa quantia de manteiga foi à panela, no fogo, onde colocou as cebolas para refolgar. E o aroma invadiu o ambiente...
Tudo estava perfeito; a música, o cheiro, seu olhar-poesia, o meneio dos lábios ao degustar o vinho. Tudo nele me era intenso e prendia minha atenção.

 
Então ele logo escorreu o que estava de molho n'água.
 
De longe tento descobrir do que se trata. Penso ser peixe. Sim, é peixe. Postas de bacalhau dessalgadas.
 
Seus dedos passam pelas postas, desfiando... acarinhando.
Tão doces e firmes são os seus gestos que mal consigo desviar os olhos de suas mãos. - Ahhh... essas mãos em meus contornos - penso, com medo de soltar a voz.
 
O bacalhau vai à panela junto aos tomates e os outros temperos. Ele retira do forno batatas soute e as rega com azeite de oliva. Pega uma fatia de pão e derrama um pouco do azeite. Leva à boca. Enquanto morde, escorre o líquido no canto de seus lábios. Quase posso sentir meus lábios tocando os dele... lambendo aquela gota de oliva já adocicada por seu palato...
 
O vinho volta aos seus lábios que parecem se agradar com o simples frescor das uvas valsando em sua língua.
Despeja meia taça na panela. Leva aos lábios novamente, enquanto tudo em mim se embriaga em seu dossel !
 
- Como ele entrou em minha casa... ? Seria apenas uma visão, um sonho... ? Ahhh... Seria um lindo sonho se assim o fosse...
Teria eu deixado alguma porta aberta para o sonho entrar ? Qual bendita porta havia cegado meus dedos ? A porta da varanda ou a do coração... ?
Ah ! Não importa ! Ele está ali, como sempre esteve aqui em minha alma... tão sensual , tão à vontade, tão vivo, tão meu...
 
Ele finaliza o prato com natas, e um lindo sorriso capaz de seduzir o tempo, que súdito, queda-se para contemplá-lo. Assim como eu, que só desperto com o som suave de sua voz melodiosa...
 
-  Psiiiu... Sei que está aí...
Sabe que não é um sonho, não é mesmo ?
Precisa vir provar desse molho, precisa provar dos meus lábios...
 
Venha... preciso provar do teu amor...




 





Ao som de...


 
 
Denise Matos
 
DENISE MATOS
Enviado por DENISE MATOS em 21/01/2014
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