Abelhudice na Madrugada de Natal

Já apontava às duas e cinqüenta da madrugada do dia 25 de Dezembro do ano de 1951, todos os membros da família já haviam ido se deitar, exceto meu irmão,sua recente esposa,a Beatriz,e eu,que ainda estávamos ao redor das sobras do que fora a ceia de Natal daquele ano.Meu irmão,já meio sonolento,estava quase dormindo no sofá da varanda,Beatriz,no entanto,queria aproximar-se mais de mim,razão pela qual me enchera com tantas perguntas,tantos interrogatórios...

—Então,é formada em Teatro?

—Sim...

—Assistiu a estréia da primeira telenovela?O que achou?

—Sim... Pra falar a verdade, não gostei, aliás, eu jamais trocaria a emoção do espetáculo ao vivo, como é o caso do teatro, por algo que, tenho absoluta certeza, será esquecida em breve. A meu ver, a telenovela foi criada por pessoas que têm preguiça de ir ao teatro, tornando ao pobre telespectador um ser sem cultura, que durante as noites, limita-se a sentar num sofá em sua sala de estar, de frente a um objeto de luxo e desnecessário.

Ela ficou um pouco surpresa e desconcertada com o meu comentário, acho que fui um pouco rude demais, isso fez com que ela mudasse rapidamente de assunto.

—Seus namoros não costumam ser duradouros, não é mesmo?

Por um instante, mirei bem os olhos daquela intrometida, praticamente a fuzilava com olhos, estava bufando por dentro, já pronta para atacar... Repentinamente, uma calmaria, uma brisa suave acariciou o meu rosto, refrescando meus pensamentos; não podia dar aquele gostinho a ela, afinal, era o que ela queria me deixar mal, pousando-se de santa diante de todos, respirei fundo e respondi:

—O que eu posso fazer... Acho que tenho açúcar no sangue.

Ela deu um sorrisinho de canto, sem graça, calou-se. E continuei eu:

—Claro que já foram muitos os que eu já namorei, mas apenas um conseguiu conquistar o meu coração; infelizmente eu o afastei de mim.

Seus olhos arregalaram-se, sua abelhudice foi tamanha a ponto de eu não resistir e dar continuidade àquela lorota, apenas pelo gosto e satisfação em deixá-la curiosa.

—Se eu lhe contar um segredo que guardo a sete chaves em meu coração, me promete que não contará a ninguém?

—Lhe dou a minha palavra... Juro.

Não consegui conter o maldito riso diante da expressão daquelazinha, prossegui:

—Há exatos sete anos atrás, conheci um rapaz, cujo nome era Rodrigo; era alto, magro, olhos da cor do mel, de cor meio indefinida, cabelos negros, encrespados e sempre bem penteados, e, apesar de ser um típico simplório, era muito atraente. De origem humilde, trabalhava como operário numa grande indústria de tecelagem paulistana. Seu único defeito,no entanto,fora ter se apaixonado por mim; tai, esse foi o motivo pelo qual ele desgraçou a sua tão perfeita vidinha...

—Como assim, desgraçou a própria vida?

—Calma, ainda irá entender. Prosseguindo, o Rodrigo, sempre ficava me espionando na frente do colégio, do outro lado da rua, até que um dia, não consegui conter a curiosidade, fui até a ele e perguntei o porquê de ele me olhar tanto. Ele hesitou um pouco em responder, mas eu, esperta como sou, percebi que ele estava apaixonado por mim, sorri então para ele, que ficou tão vermelho de vergonha, não resisti e beijei aquele lindo rosto...

Sou novamente interrompida:

—Estava apaixonada por ele também?

—Não, é claro que não. Eu nem o conhecia direito!...Ah se eu pudesse voltar atrás...

—Estava dizendo... Ah é, me lembrei; passei então a brincar com aquele ingênuo rapaz, depois das aulas, nos encontrávamos nas pracinhas aos redores do colégio, ficávamos fazendo planos para o futuro, planos que, para mim, não tinham nenhuma relevância. Passaram-se cinco meses, desde que nos conhecemos, Rodrigo queria vir pedir a minha mão oficialmente ao papai,eu chorei,fiz cena, disse a ele que ele não poderia vir até ao papai, disse que nossos mundos eram muito diferentes, o meu pai o mataria assim que adentrasse em nossa casa...

—Mas seu pai não é desses tipos que ainda existem por aí, para ele, somos todos iguais, independente de qualquer coisa.

—Sim, é verdade, mas eu precisava arranjar desculpas para o afastar de mim; eu era muito jovem para me casar!

—E ele, o que disse?

—Nada, apenas me deu um último beijo e, aos prantos, despediu-se de mim e foi embora. Por várias semanas, o via escondido por detrás das árvores da praça,chorando por mim;estava sofrendo muito,dava para se notar.

—Não sentiu nem um arrependimento pelo que fez com o pobrezinho?

—Sim... Confesso que quando o vi indo-se pela última vez, senti um nó na garganta.

—Por que não saiu correndo atrás dele para contar toda a verdade?Se ele a amasse tanto como disse dantes, iria perdoá-la, poderiam se casar...

—Não pudera. Tinha que deixá-lo ir... E assim, os dias e as semanas foram se passando, eu não imaginava que chegaria aos extremos do coração tentando esquecê-lo; o tiro saiu pela culatra!

—Tem tido notícias dele?

—Infelizmente, soube que ele havia feito da bebida sua fiel companheira e, por ir trabalhar embriagado, começara a se envolver em muitas brigas e confusões, motivo que o levou a ser dispensado do emprego. Até que, numa trágica noite,totalmente embriagado,furtou um veículo,se envolveu num acidente e acabou perdendo a sua pobre e triste vida.

Percebi que,Beatriz,disfarçadamente,enxugava o canto dos olhos,invadiu-me um súbito de compaixão e,afinal,ela não era de todo ruim.

Fez-se um pouco de silêncio,Beatriz respirou fundo e perguntou:

—Faz muito tempo?

—Cerca de três anos atrás...

Fez-se silêncio novamente, até podíamos ouvir o balançar das folhas das árvores... Fui surpreendida por um gentil abraço.

Meu irmão, após um longo cochilo, levantou-se meio que atordoado, chamou a esposa e foram se deitar; apaguei as luzes, deitei-me ali mesmo, no sofá da varanda, fiquei a contemplar o brilho das estrelas, aquele lindo luar da madrugada... O sono começava a chegar... Antes de pregar os olhos, um último suspiro:

— Boa noite meu amor!

Gabi Alves
Enviado por Gabi Alves em 19/01/2014
Reeditado em 03/07/2014
Código do texto: T4656381
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