Rosas Brancas

Seria um folhetim, porém não tem no site essa classificação, e as novelas são tão pouco publicadas como são pouco lidas. Qualquer crítica será muito bem vinda. Obrigado. Boa leitura.

CAPÍTULO I

O Motivo

Contar-lhe-ei dum ocorrido que não sai-me da memória. Talvez por isso necessite – e queira – tanto compartilhar. Penso que não me cabe esconder, por pertencer àquele tipo de coisas que devem ser contadas ainda que já sejam sabidas. Necessitamos ouvir alguns segredos, algumas histórias, ou a mesma história contada de formas diferentes, para melhor enfatizá-las. Não sei se tua necessidade calhará de ser saciada nesta, contudo farei o que me cabe, creio que não lho fará mal algum, ou quantas forem histórias em demasia.

De antemão digo que não sei bem do que se trata. Deveria ser um romance, porém, passado tanto tempo, vendo melhor, imagino que talvez tenha faltado um pouco mais de amor. Que fique registrado que não foi por falta de vontade, ao menos da minha parte. Tome como quiser. Quantos são os romances que hoje não tem amor nenhum. Injustiça tirar a beleza da minha história por um bocadinho de amor que tenha-lhe faltado.

CAPÍTULO II

Do Ano

Não lhes direi ainda o ano, pois há quem tenha preconceitos com histórias antigas. Não quero que meu romance seja mal visto só porque se passou quando não se tinha cor nas TVs, ou quando se usava a pena no lugar das maquinas, ou qualquer outra coisa que não seja costumeiro dos dias de hoje. Passou-se no tempo que passou. E aqui reside minha maior tristeza: passou no tempo. Para minha sorte, tenho-o guardado na memória como se fosse ontem. Para aqueles que necessitam, irei contar o mais pormenorizadamente possível. De antemão lamento uma ou outra cena que não lhe dê a emoção original. Tenham certeza que nada me dói mais do que não poder reviver tais emoções. Cabe a ti suscitar as faltantes com o que tens de amor sobrando, ou reservado para histórias que, como esta, são escritas por quem já às têm em falta. E digo-lhes que nada é pior que faltar-lhe amor.

CAPÍTULO III

Lamento Primeiro

Registro que para assegurar maior fidelidade, melhor seria se o contasse em sonetos. Alexandrinos perfeitos. Com harmonia plena nas rimas, dissonâncias. Ou fosse por decágonos de versos brancos. Haicais, quintilhas, ou qualquer outra forma autêntica de verso. As paixões combinam melhor com os sonetos, ou talvez estes combinem melhor com as paixões. Apenas queria registrar meu lamento por não poder contar em versos. Quem sabe mais a frente não consiga um dístico simples, do contrário, fica como está, ainda que me faça diferença, faz pouca, ambos tratarão de passado.

CAPÍTULO IV

Das Idas a Praça

Conheceu-me numa praça. No mês de outubro. Já a conhecia desde agosto. A praça era em formato oval muito espaçosa, com dois bancos emparelhados em cada uma das parábolas, no centro, um pequeno chafariz cercado por arranjos florais.

No mês de agosto eram rosas-brancas. Trazidas da Rússia, segundo assegurava-me o jardineiro com quem proseava frequentemente em minhas visitas.

Dizia ele que nenhuma aparição era tão frequente como a minha. Dizia nestes mesmos termos, dando-me a impressão de aparentar ser um morto-vivo, assombração, algo do tipo.

Sempre falava-me de algum emprego, talvez por crer que pelas minhas frequentes visitas me faltasse um. Ainda que tivesse dito por inúmeras vezes que já o tinha.

Não era muito frequentada, contava algo em torno de cinquenta pessoas por dia, ao menos no espaço do dia em que ali estava. No começo ia por ir, sem muitas certeza ou interrogações, quando dei por mim, já não conseguia mais não ir. Certa vez, depois de enraizado o costume, experimentei não aparecer, e após não ter ido o dia inteiro, não me entendi com o sono, com a vida, faltou-me algo. Pela madrugada, não resistindo, acabei por ir. Fiquei alguns minutos e tornei à cama, quando só consegui dormir vencido pelo cansaço, após mais de um quarto de hora. Ainda assim, senti que faltava-me algo que, por aquela altura, seria impossível ter. Desde então notei que algo me prendia àquela praça que, por sorte, prendeu-me até o dia que a vi, por além das rosas brancas.

CAPÍTULO V

Das Flores

Nunca tive nada por flores ou pela natureza em geral, mas desde janeiro, quando passei a frequentar a tal praça, tomei uma ligeira simpatia por elas. Isto porque havia aqueles arranjos centrais, que mudavam a cada dois meses. E excepcionalmente no aniversario de duzentos anos da praça, vieram da Rússia rosas de cor branca, como homenagem de aniversário. Os arranjos anteriores não me foram muito importantes, tampouco os seguintes, apenas no mês de agosto tive uma simpatia maior por rosas, sobretudo as brancas, em especial às russas.

CAPÍTULO VI

A Metafísica das Distrações

Convém dizer antes do próximo relato a extensão metafísica que possuem as distrações. Por muito não significam nada, porém às vezes dão nos cabo de tudo. Fazem pouco caso dos casos e criam casos onde nada existe. No oitavo dia do mês de agosto, dia que antecedeu minha descoberta, vi passar uma menina, tão semelhante que acomodei em dizer serem a mesma pessoa, para satisfazer meus devaneios. Passou, quase despercebida, com um vestido rosa, passadas largas, chamando-me muito atenção. Certamente teria me apaixonado se tivesse tido a chance de vê-la dez segundos mais. Como passou num espaço de tempo tão rápido, sobrou-me amar o vento daquele tempo, em que tão depressa, apagou uma chama que timidamente nascia.

Dez segundos separaram-me de ter um amor para sempre.

Até hoje não sei se são a mesma, nunca perguntei. Eis aí uma distração que pode ter mudado minha vida para sempre.

CAPÍTULO VII

Das Rosas Brancas ao Vestido

Aqui começa a história que tenho a contar; eu, no auge dos meus vinte e oito anos, apaixonei-me pela primeira vez.

Talvez tardiamente, mas vejo mais sentido quando ouço dizer que foi muito cedo. Que fique registrado que nunca ouvi.

A praça encheu mais do que o natural naquele dia, em virtude do aniversário talvez, e, além das rosas brancas, do outro lado da praça, havia uma menina, de vestido branco, a confundir-se com as rosas, como se fundissem uma à outra. Lendo um livro que em causa da maldita distância tornava-se irreconhecível, intercalando a leitura com olhares dispersos, como se refletisse sobre o que lesse, melhor dizendo, como se disfarçasse por trás da leitura a vontade de pôr-se no nada, para fugir de alguns pensamentos, e quem sabe, encontrar outros. A beleza era tamanha. Muito igual à menina do vestido cor-de-rosa do dia anterior. Fiz-me crer serem a mesma, só que esta deu para apreciar por mais de dez segundos. Pouco mais de duas horas. Neste tempo; apaixonei-me, desprezei tal afeto, como se necessário me não fosse, como se não o fizesse sentido. Temi. Repensei. Apaixonei-me outra vez. E repeti o processo até a hora em que se levantou para partir. Quando mesclei medo e amor como se só pudessem ser concebidos juntos, e amei-a como se estivesse esperando esse momento para amar o que não amei durante toda a vida. Nos segundo de suas passadas, amei-a como se fosse ali meus últimos segundos de amor em toda minha existência.

Certo que já havia entrelaçado-me com uma ou outra menina. Nada com um valor digno de registro. Nada que houvesse contido amor. Talvez por amei-na tão sofregamente. Nada de errado com nenhuma das outras meninas, mas apenas entrelaçamo-nos, e, por muito, não requer isso gota alguma de amor.

Minutos depois veio ter comigo o jardineiro e indagou-me: -- ‘Beleza única! Quer que lhe providencie alguma?’ Olhei-o meio atônito – ainda apaixonado –, distraído, sem entender muito que dizia, quando ele corroborou dizendo: -- ‘Percebi que as admirou o tempo inteiro, não sabia que gostava tanto assim de rosas. ’ Senti-me mais aliviado. A conversa passou a fazer mais sentido, discorremos um pouco sobre as flores, de que eu nada entendia, quando por fim, deu-me uma pequena muda. Levantamos e seguimos nossos destinos, eu a casa, ele sabe-se lá para onde, ele sem pressa, como se nada devesse ao tempo, ao mundo; eu, mais vagaroso ainda, como se pouco me importasse ambos, estava a deleitar-me com o melhor estágio das paixões, seu antecomeço.

CAPÍTULO VIII

O Antecomeço

O Amor é de todo incrível, mas se tem alguma parte que destaca-se das outras é, sem dúvida, o antecomeço. Quando estamos ansiosos a entregar-nos ao amor, quando vivemos os primeiros medos, as primeiras incertezas, quando temos o maior dos ímpetos, a maior das coragens. Talvez esteja até a falar bobeiras, contudo, não ligo, ao menos não por ora. Quem ama pode dar-se ao luxo de titubear em explicações, respostas, e outros pormenores romanescos.

Afinal o amor nos conforta na mesma medida que nos perturba.

Pouco me importava estar certo ou não, valia-me unicamente que aquela menina havia mudado meu caminhar rumo a casa, e, dali em diante, minhas idas a praça nunca mais foram as mesmas.

CAPÍTULO IX

A Menina do Vestido Branco

Se faz-te falta a descrição da minha amada, detalhar-lhe-ei na medida do possível, conforme o necessário. Talvez aqui, mais do que em qualquer outra parte, necessite de um verso.

Era o espelho da candura, com trações e gestos doces e leves, tinha uma trança única longa e negra, e ares de liberdade em seus olhos apaixonantes. Se soubesse algo sobre poesia, se tivesse decorado algum soneto, qualquer que fosse, o usaria, na falta, deixo vagas as demais feições. Tinha um riso muito agradável, de maneira que, do outro lado da praça, sentia sua felicidade, e acabava por deixar-me ser feliz. Se tu, leitor, tiver em mente algum verso, use-o, ainda que fale sobre cavalos, nada define melhor a beleza do que uma poesia.

CAPÍTULO X

A Primeira Noite

Guardei minha rosa num vaso antigo e o coloquei na janela do meu quarto onde fiquei por alguns minutos pensando em qualquer coisa. Deitei-me desprezando o sono, e de quando em quando deitava olhares à janela, a rosa, ao nada, e a tudo que aquilo me dizia.

Aquela noite foi-me diferente de todas as anteriores, semelhante apenas as noites de criança quando dormir tem sempre um significado diferente.

Talvez aqui falte-me mais do que antes a tal da emoção. Que reconstitua quem achar necessário. Cabe dois minutos ou mais para ter lembranças de noites inesquecíveis, talvez você as descreva melhor do que pudesse ter feito.

CAPÍTULO XI

De Agosto a Setembro

Para não enfadar-lhe, e para que meu romance, já meio acinzentado, não perca ainda mais brilho devido ao cansar de sua vista, contarei ao correr da pena como foram esses novos dias. Serei breve, talvez mais do que devesse, contudo, se sentir que algum pormenor tenha faltado trarei a tona mais à frente; os demais, cabem a ti achar importantes ou não, e suscitá-los na medida que bem achar que deves.

Primeiro é necessário lembrar que estava apaixonado aos vinte e oito anos pela primeira vez. O que fez-me voltar ao tempo. Era como se faltasse algo na minha juventude, algo que me fez desprezá-la, e ter por ela lamento nenhum quando se foi. Talvez até cedo demais. Quando por fim me aproximava daquela fase da vida que não se é nem novo nem velho, que não se pode ter nada de muito moço porque não cabe a um homem de trinta, e também não se pode querer desde já a velhice porque ainda muito nos falta; estava a apaixonar-me, e, por fim, ter uma juventude normal. Ou quase isso, uma vez que ocorrera tardiamente.

Dizem que nunca é tarde para amar. Discordo. Deve-se amar cedo! Todo amor que se pode ter depois dos quinze vem tardiamente. O que não quer dizer que não seja necessário, mas a hora de ter o primeiro – e todos os demais possíveis – é cedo! O quanto antes! Se tal primeira vez ocorresse quanto estivesse a beirar os cinquenta, não seria de mal grado, o que não significa que tivesse vindo ao tempo certo. Passar cinquenta anos sem amar, ou quase isso, Deus meu!; que ninguém em canto algum do mundo deseje isso para quem quer que seja!

Espero que tenhas entendido; o amor é atemporal, mas quanto antes vier, melhor.

Estava a sentir coisas que jamais experimentara, ao menos não com tamanha avidez. Os dias subsequentes eram marcados por esperas repletas de ânsias, que não se satisfaziam sequer quando a via na praça.

Aparecia uns dias, outros não. Esteve mais presente do que ausente. Foi-me incrível. Eu cá, ela lá, a ler, pensar, falar sozinha ora com o jardineiro. Dia ou outro escrevia, mas não passava muito disso. Eu fazia pouco de tudo no mesmo tempo em que não fazia nada. Fazia o que ela fazia, no tempo dela, como se estivéssemos juntos, no mesmo banco, a partilhar da mesma vida.

Nesse tempo tive dezenas de idéias-sem-pernas, como diria o outro. Não as lamento. Faziam-me pouca falta. Mais valia tudo que me dava. Se você, leitor, não estiver bem apaixonado, ou se já não tiver vivido coisa semelhante, talvez não entenderá; se estiver, agradeça.

Era notório que vivia algo novo. Que tinha nova vida. Passei a sorrir mais. A perder as palavras. Era pego constantemente embriagando-me em devaneios, distrações propositais. Que acabei por dividir com alguns dos meus mais próximos naquela época, o jardineiro e Alice.

CAPÍTULO XII

O Jardineiro

Dorval não era só jardineiro, era o encarregado da praça.

Era um cearense curvo e muito simpático, com pouco mais de sessenta anos, e com uma serenidade na voz, na alma, de confortar qualquer um. Conhecia aquela praça como ninguém, bem como as pessoas que a frequentavam. Trocávamos sempre algumas palavras todos os dias, contava-me muito velhas historias da praça, e, de quando em vez, falávamos de política, literatura, bem como outros assuntos que hoje pouco se conversa. Não era homem dos mais letrados, mas fazia grande esforço para ler jornais, livros, ainda que com extrema dificuldade.

Tinha uma devoção encantadora por Nossa Senhora. Lembro-me duma vez ter me dado uma belíssima imagem da santa, trazida de sua terra.

Nunca falara, jurara, ou opinara sobre nada acerca de minha vida, sequer perguntou-me alguma vez o porquê das minhas idas a praça, apenas falava muito sobre empregos, sabia que tinha formação em medicina, e todos os dias contava algo sobre um hospital ou outro que necessitasse de algo a respeito.

Sem dúvidas era bom homem. Posso dizer que era-me um grande amigo. Às vezes sentava, dava-me uns tapinhas nas costas, olhava as flores e saia.

Tinha uma imensa paixão por flores, sabia tudo, sobre todas as espécies.

Sabia que tinha uma filha que de quando em quando mostrava-me por uma foto contida num medalhão, falando com voz saudosa e suave de como era boa menina. Uma linda moça. Gostava de tê-lo por perto, era um bom homem, sem sombra de dúvidas grande amigo.

CAPÍTULO XIII

Da Medicina ao Francês

Cabe um pequeno parênteses para falar sobre minha vida profissional. Formei-me em medicina: médico-cirurgião. Empenhei-me arduamente nisto. Queria fazer algo pelas pessoas, por mim. Nesse tempo, consolidou-se minha infelicidade, minha apatia.

Não que os estudos tenham-me feito infeliz, fiz-me infeliz por conta própria. Metia-me em casa a estudar sem descanso. Nesse tempo, aprendi francês e espanhol, sem saber muito o porquê. Mais tarde, já formado, abandonei a medicina, não consegui exercê-la, talvez por algum medo, talvez por todos. Fato é que abandonei. Ainda que soubesse tudo, deixei de lado.

Fiz questão de esquecer tudo que aprendi. Não consegui. Contentei-me em não falar nada a respeito, uma vez ou outra dizia que era formado, só por dizer, não dizia nada mais. Quando me perguntavam em que trabalhava, dizia que lesionava francês. Ninguém entendia. Também nunca entendi. Acabei por dar aulas particulares, para poucos alunos, o suficiente para manter minhas despesas. Não gastava muito, cinco, seis alunos por mês bastavam.

Minha turma da época era composta por quatro alunos que se reuniam em minha casa duas ou três vezes por semana. Nada muito organizado, os alunos escolhiam quando queriam as aulas, e quando achassem bastante a enceravam. Para bem dizer, era uma bagunça, mas se eles aprendiam, nada mais importava muito.

Assim consegui sustentar minha vida.

Não me arrependo de ter feito medicina, tampouco tenho arrependimentos por não exercê-la. Gosto do francês, mais do que do espanhol e até mesmo do que do português. Pena não fazer nada além das aulas como melhor uso. No mais, lia uma revista ou outra sobre qualquer coisa. O pior é que dessas insolências também não tenho arrependimento algum.

CAPÍTULO XIV

Alice

Dentre meus alunos da época cabe um destaque para uma menina chamada Alice. Muito nova, algo em torno de dezessete anos, idade comum dos meus alunos. Dentre todos os alunos que tive foi a única com quem tive um afeto maior. Ficava após as aulas e trocávamos algumas palavras, quando não ocorria de chegar mais cedo. Era uma menina muito boa, tinha gosto por literatura, principalmente poesia. Dizia-me que certas coisas perdem por não serem poesias, e outras, que nada valem, passam a ter maior valor. De quando em quando me recitava alguns versos que embora não os compreendesse mais a fundo gostava de ouvi-los.

Era cheia de vida, gostava de falar sobre tudo e chegava bem perto disso.

Se não fui um completo amargo, muito se deve a algumas pessoas que se não foram capazes de adoçar-me, conservaram em mim uma dose de simpatia, algumas esperanças, e sonhos meio empoeirados.

Sem dúvida aprendi mais com ela do que a ensinei.

Alice foi dos meus convívios – ela e o jardineiro –, a primeira a notar que havia mudado, ou, que estava sofregamente a desejar mudanças. Foi-me muito amiga, deu-me ânimo, ajuda, e fez por mim mais do que o necessário. Expressou seu contentamento por ver-me feliz, e assegurou que seria ainda mais feliz, com ou sem ela. Dei um dissimulado sorriso pois nunca havia falado sobre ela com ninguém mais que não fosse minha rosa. Incrível como certas coisas não precisam que sejam ditas, mais incrível ainda é como certas pessoas percebem em nós mudanças, desejos, que lutamos para disfarçar até quando estamos sozinhos.

CAPÍTULO XV

As Flores de Outubro

O mês de outubro ficou marcado pelas mudanças. Daria outras lembranças, mais capítulos, outras memórias, e tudo mais que pudesse escrever. Aqui não cabe, disse que não me estenderia mais do que o necessário, ademais não sei se capaz seria de reconstituir os ocorridos tais como se deram. Registo então, apenas que descobri seu nome, por intermédio do Jardineiro, que falou-me com um duplo disfarce; como se não quisesse dizer e como se não soubesse que era de meu interesse ouvir. Com o mesmo cinismo, disse outras coisas, passaram a conversar muito, como era habitual entre ele e os assíduos visitantes da praça. Alice acompanhou-me em algumas idas de vez em quando, o que deu sentido mais claro as minhas visitas. Jamais esquecerei aquele mês de outubro do ano de... quando senti um gosto maior por tudo. Pensei até em tornar a medicina, em ler bons livros em francês, espanhol, enfim, dar cabo de minhas inutilidades.

Enfim nos conhecemos e iniciamos o antecomeço do nosso romance. Uns diriam que foi pouco tempo para conhecer e apaixonar-se. Que foi uma paixonite boba dessas que ocorrem dezenas diariamente. Mas veja; vinte e oito anos sem nenhum romance, com todas as chances possíveis, diria que um mês foi tempo de sobra. Não que o encurtaria se fosse possível, apenas digo que foi tempo suficiente. E que não digam que nos amamos por um mês, amei-a por vinte e oito anos, ela, por quantos anos não havia amado, simbolizados falsamente por esses trinta dias -- ou trinta e um como ocorre em outubro. Amamo-nos no tempo em que amamos. Tolos são os que contestam o tempo, será sempre incalculável a medida dada de amor seja por oito anos seja por alguns segundos.

Tamanho era meu amor que sequer abati-me ao saber que já era comprometida. Confesso que cheguei a cogitar que jamais ficaríamos juntos, mas, minuto algum, pensei em deixar de amá-la.

Calhou que nos últimos dias daquele mês teve alguns problemas em seu relacionamento. Passei a ajudá-la, confortá-la, sem que pensasse que estivesse trabalhando contra meus próprios planos. Confesso que não tinha plano algum, bastava-me amá-la; talvez meu maior plano fosse garantir que seguiria assim.

Tinha um entrelaço semelhante ao que foram os meus, vazios, sem nada mais que laços entrelaçados. Pouco me importava. Sentados no mesmo banco, ouvi-a dizer o que queria, deixando a comendar o rumo da conversa, respondendo que sim, que não... falava tudo, menos de amor. Ou ao menos não do nosso. Do meu, que seja.

Fomos bons amigos, talvez por isso amou-me também.

Não sei quantos anos tinha de amor faltante, pareceu-me pouco, parecia ser das que sempre foram muito amadas, talvez apenas nunca tivesse tido um amor semelhante ao de alguém que, por vinte e oito anos ininterruptos não amara. Para sorte dos dias de hoje as pessoas não passam seis meses sem amar, talvez a única coisa ruim seja a extinção dos amores guardados por algum tempo, seja alguns anos ou poucos meses.

Sentiu-se contagiada por meu amor que, por aquela altura, transbordava; era o amor de muitos anos, com a beleza dos poemas e das flores. E que registre aqui meu desejo a você, que pacientemente me escuta: que não faltem flores nos seus romances, e, principalmente, poemas.

As coincidências – ou casos pensados – deram fim ao nosso antecomeço, passando, por fim, ao romance de fato...

CAPÍTULO XVI

Quatro de Novembro - O Romance de fato...

Aqui começa – e termina – meu romance de fato.

Nossas conversas passaram a ser diferentes, acompanhando a mudança na troca de olhares, que agora faziam-se mais frequentes, tudo ia se ajeitando para não parecer o destino repentino demais. Quatro de novembro, à noite, de um dia escurecido pela antechuva, dizia-me que tinha por mim um amor único, pelo grande amigo que tornei-me. Não importa muito que disse, importante era a forma que dizia, terminando as frases como se quisesse calar de vez, como se estivesse à espera de que a calaria com os beijos agendados no mês de outubro que, tardiamente, vieram a ocorrer em novembro. Suavizando a cada palavra, como se lhe faltasse ar, como se lhe faltasse vontade de dizer. Já estava tudo dito. Tudo que era necessário, desde outubro. Talvez tenha se arrastado ao mês seguinte por nossa dissimulada vontade. Segurou-me as mãos e disse que sentia falta de algo, no segundo seguinte foram-se embora vinte e oito anos... Com o beijo que simbolizaria nosso romance. Já estava tudo marcado, ocorrido, um beijo meramente formal, para darmos por oficial o que já tínhamos um do outro a tempos.

Caberia aqui contar tudo o que vivi nos anos anteriores, juntamente com o que pensei da vida para os anos seguinte, o que vivia naquele presente momento era inexplicável. Com essa junção de historias, certezas, amores inexistentes, imaginários, uma futurologia profunda, e tantas coisas mais, caíram alguns pingos de chuva, passou um tempo inútil, e fomos embora.

Não a acompanhei até sua casa, sabe-se lá o porquê, fui a minha, pensando e pensando, também não me pergunte no quê.

Nos dias seguintes, parece que temeu. Arrependeu-se. Enfadou-se. Surtou. Dispenso explicações de possíveis ocorridos. Certo é que até o inicio de dezembro passou a ir menos à praça, tivemos menos contato, menos amor. Não da minha parte. Dispenso possíveis especulações de emoções alheias, poderia pormenorizar aqui todos os ocorridos dos tais dias e dar-te o necessário para que, por conta própria, chegasse a uma conclusão satisfatória, porém me é indiferente, no final tudo chegaria a uma conclusão de termino, seja de amores ou de tempos. Não são tão importantes quanto os amores os tempos, mas, talvez sejam mais que necessários, não sei bem explicar, contudo sinto que faltou-nos tempo, e, por conseguinte, amor.

Despediu-se sem despedir em algum dia de dezembro, dia quatorze talvez, que seja.

Meu companheiro, o jardineiro, notando suas ausências, certo dia, deu-me alguns tapas a mais do que os três costumeiros, olhou-me, dessa vez por mais tempo, quis dizer-me qualquer coisa, deu-me silêncio, e foi-se, com passos vagarosos e serenos como era de sua natureza. Agradeci tudo que disse naquele doce silêncio, com sorriso sincero, observei algum tempo ao lado das flores, e acenei em despedida, sem saber se voltaria tão cedo à praça.

Acabei por voltar todos os dias, até hoje, e no mesmo banco em que ocorreu tudo, estou a escrever o que lês nesse exato momento.

No Natal, apareceu, e foi a última vez que a vi...

CAPÍTULO XVII

Feliz Natal e Um Próspero Ano-Novo

Dorval convidou-me para ceia que teria com a filha mais tarde, recusei, do mesmo modo que recusei ir com Alice, no mesmo dia. Queria ficar na praça, e ainda que não quisesse, ficaria. Pediu-me para olhar as rosas, naquele mês eram vermelhas, nacionais. Pediu que carinhosamente desejasse a elas um feliz natal entre as badaladas do relógio, abraçou-me e foi a Igreja rezar antes de ir à ceia. Camila mais tarde veio ter comigo, quando tive ali um ressurgimento do nosso – meu – amor. Disse que seriamos grandes amigos, eternamente e tantas outras coisas que pouco importa. Não às cumpriu. Nunca mais nos vimos. Não ligo. Falou-me com muito amor, tinha apenas de diferente daquele dia de novembro a voz, que dessa vez era de despedida. Agradeceu-me por tudo, e foi-se. Não deu tempo de dizer muita coisa, confesso que não tinha também muita vontade de dizê-las; tinha era de amar, que tive até hoje, melhor dizendo; tenho ainda.

Foi um dia bonito, não posso dizer que não tive um natal feliz. Fiquei na praça até depois de meia noite, e na devida hora, desejei as flores o feliz natal que me fora confiado.

Virou o ano, e Alice veio ter comigo, para uma segunda despedida, iria viajar a França. Tomara que tenha lhe ensinado muito bem o francês...

CAPÍTULO XVIII

O Dito Poema

Alice veio até minha casa dando-me beijos e abraços calorosos, com uma visível tristeza, falando em voz de despedida. Tinha um amor visível nos olhos, mas – infelizmente – falava em voz de despedida. Disse coisas lindas, recitou alguns versos, agora em francês, talvez para dar-me orgulho. A tradução tira um pouco do brilho, junto com o tempo, e a despedida, eram versos dum escritor francês chamado Balzac, que só o conhecia de ouvir falar. Deu-me também alguns livros em francês, que nunca li, não sei o porquê.

Se te fazes diferença saber qual era o verso, então ai está os que me lembro:

‘É possível amar e não ser feliz é possível ser feliz e não amar, mas amar e simultaneamente ser feliz, isso seria milagre. ’

‘É tão absurdo dizer que um homem não pode amar a mesma mulher toda a vida, quanto dizer que um violinista precisa de diversos violinos para tocar a mesma música. ’

Sequer sei dize se eram realmente versos, talvez fossem apenas citações, trechos dum livro qualquer, enfim. Versos avulsos não fazem muito sentido. Talvez sequer fossem para fazer. Quem sabe só quisesse dizer com essas palavras tantas outras que não conseguia, e para dissimular o fracasso ou não mostrar-me compaixão, acabou por usá-los como pretexto. Como ela mesma dizia; tudo fica mais bonito em poesia. Como gostava de ouvi-la recitar versos, gostei. Não foi a pior das despedidas. Desejei a ela o melhor no seu futuro, espero verdadeiramente que tenha tido.

CAPÍTULO XIX

Histórias da Vida

A vida tem disso, histórias que necessitam de serem contadas e outras de serem ouvidas. Duns tempos para cá tenho buscado ouvir algumas histórias, ocorreu de ouvir diversas vezes a mesma, espero em breve ouvir a que bem necessito; até lá, vou ouvindo todas as que me contam, sem problema algum.

CAPÍTULO XX

Enfim ao Ano

Pouco importa o ano, e se for tão importante assim, digo que amei no ano em que amei. As demais informações não são muito importantes. Ao menos não acerca de meu romance.

CAPÍTULO XXI

Minhas Reticências

Que fique registrado aqui meu agradecimento pela existência dos romances. Todos eles! Seja qual for a medida de amor que lhes cabe ou que lhes seja faltante. Vinte e oito anos e nenhuma paixão, diria eu que vivi uma vida sem sentido, ao menos até bem depois da sua metade, se não fosse por aquele mês de outubro, pedaços de novembro, e tudo que ficou de lá até então. Hoje penso que não amei tarde, nem cedo, pouco me importo também com a quantidade, vale-me apenas que amei, e se não tiveres alguma vez na vida amado sequer entenderá, o amor independe do tempo e da dose, e só é decifrável por vias de amor.

FIM

Luís Moreira
Enviado por Luís Moreira em 15/01/2014
Reeditado em 16/06/2014
Código do texto: T4650600
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