REDENÇÃO
Acordei várias vezes na madrugada. Sentia- me seca por dentro. Uma sede insaciável se aliava a insônia de meses e meses. Desci até a cozinha, com passos lentos. Com a mão débil segurei sem muita vontade o copo de alumínio com o emblema do Corinthians brilhando sob a lâmpada do corredor. A cozinha permaneceu na penumbra, escondendo sombras e acolhendo meus fantasmas. Tentando me sentir refeita, subi novamente as escadas na esperança de encontrar no caminho o meu sono perdido. Antes entrei no quarto iluminado pela luz do abajur de cabeceira, também enfeitado com o emblema do Timão. Então me aproximei da cama, ajeitei o edredom que havia escorregado para o chão de tábuas enceradas e cobri o pequeno Miguel que dormia feito um anjo, revestido pela inocência própria das crianças. Naquele momento sublime, pensei o quanto os meninos de sua idade vivem alheios à malícia e a maldade que desvirtuam a alma humana à medida que a pessoa cresce. Fiquei por alguns segundos ali parada, dei um beijo bem leve em sua fronte e segui meu itinerário de toda noite, repetido toda madrugada dentro de nossa casa. Abri a janela do meu quarto e contemplei a lua brilhante e solitária, esquecida entre as estrelas. Sorvi a solidão que me invadia. Entrou um vento fresco acariciando meu rosto, gelando minhas lágrimas que insistem em cair feito cascata. De volta a minha cidade natal, com o acolhimento dos meus pais sinto certo conforto. Dói muito escrever sobre o fato que marcou a minha vida e de meu filho para sempre. Talvez a força para expor os fatos esteja somente na minha profissão de escritora. Se não fosse esse o ofício que abracei não só por amor, mas também por alento, deixaria esta história se diluir no tempo, arquivada em um cofre seguro que é o relicário do meu coração.
Tudo começou há muitos anos, na época de faculdade. Passei no vestibular para direito e frequentava a Universidade de uma pacata cidade do interior. Eu morava em outro estado vizinho e fazia o percurso no ônibus interestadual. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Por sorte e com louvor fui aprovada no concurso para escrevente judicial, do Tribunal de Justiça, e isso me deu força para enfrentar o curso que muito me encantava. Lei e Justiça: Naquela época eu acreditava que ambas funcionavam igualmente para todos os cidadãos. Quando estava no terceiro ano da faculdade conheci Miguel Vitorino que viera transferido de outra universidade. A primeira vez que ele adentrou o recinto foi durante a aula de direito penal. Esbaforido, a mochila jogada nas costas, assoprando os teimosos fios de cabelos do seu rosto. Trazia um volume do código penal comentado nas mãos, que desastrosamente caiu derrapando nos pés do professor, um delegado de policia da Comarca. O professor já conhecia Miguel e comentou:
- Conheçam o artista, pessoal: Miguel Vitorino! Meio sem jeito, ele deixou a mochila no chão e foi assentando- se do meu lado, único local com uma cadeira vaga. Não sei se foi coincidência ou destino, mas a simpatia foi mútua e instantânea.
As nossas profissões também coincidiam, eu, escrevente judiciária no fórum de uma comarca em Minas e ele, investigador da polícia civil no interior de São Paulo onde estudávamos. Moreno, alto, corpo esguio, compleição magra porém seus músculos chamavam a atenção. Olhos castanhos, grandes e amorosos, sobrancelhas cerradas, boca encantadora, nariz masculino que deixava seu rosto marcante, as covinhas em volta da boca davam- lhe um charme especial, e seu riso era música para os meus ouvidos. O perfil merecia ser esculpido em Carrara. Nossa convivência passou rapidamente de franca amizade para um romance de novela. Quando o apresentei aos meus pais, ficaram um pouco reticentes. Miguel chegou com a mochila atravessada nas costas, juntamente com seu inseparável violão. O almoço naquele dia seria muito especial. Meu pai me disse:
- Julia, ele é cabeludo!
Eu fiquei calada, rezando para que a empatia fosse recíproca, porque meu pai é um homem gentil e justo. Reconheceria com certeza as qualidades do meu namorado. Eu estava certa, Miguel era um anjo, pois assim que sorriu cumprimentando meus pais, as barreiras caíram, foi o sábado mais maravilhoso da nossa vida. Terminamos a faculdade e nos casamos. Miguel estudava muito, seu sonho era ser delegado de policia. Abriu mão de muitas coisas, menos de cortar seus longos cabelos tão rebeldes que soltos estavam sempre em desalinho. Então prendia com uma fina tiara, ou trazia amarrados. Miguel adorava cantar, compor, escrever poemas... Eu me sentia muito feliz quando ele era vítima de nova inspiração, corria e pegava o violão e fitando dentro dos meus olhos aguardava minha opinião quando finalizava a música. Miguel trabalhava na delegacia de furtos e roubos, era inspetor de polícia.
Eu o admirava cada dia mais, pois Miguel deixava bem claro seus princípios e não aceitava qualquer tipo de pagamento para favorecer alguém que contrariasse a lei ou sua consciência. A sociedade muitas vezes faz vista grossa e aceita a prática de subornos e corrupção praticados por algumas autoridades policiais, Miguel, porém condenava veementemente os colegas que tinham esse tipo de comportamento. Jamais testemunhei qualquer atitude de meu marido que o desabonasse. Ele colocava sua honestidade acima de tudo, o que nos impedia de ter mais do que seu salário permitia, enquanto que outros que ocupavam o mesmo cargo, mesmo nível salarial, enriqueciam a olhos vistos. Muitas vezes ele se desentendia com algum colega por causa da sua recusa em receber propinas e também por criticar severamente os colegas que defendiam como corriqueiro esse horrível hábito. Não admitia a corrupção como algo aceitável. Quando nos casamos nos mudamos para a cidade onde Miguel trabalhava, e com a mudança fui obrigada a me desligar do meu emprego que não me possibilitava uma transferência, então comecei advogar. Nossa vida era bastante tranquila, apesar do trabalho arriscado que meu marido exercia. Logo no inicio do casamento, engravidei. O nosso filho crescia em um lar que havia amor e principalmente cumplicidade. Miguel depois de muito esforço e estudos contínuos concretizaria seu sonho ao ser aprovado no concurso para Delegado de Polícia. Assim que terminou o estágio na Academia de Policia assumiu o cargo em outro estado da federação.
Mais uma etapa se iniciava. Eu cerrei as portas do meu escritório de advocacia. Aproveitei que nessa época já possuía inúmeros textos engavetados e tomei a decisão de fazer algo que eu mesma acreditava ser um sonho, e corri atrás de publica- los e assim vivi a maravilhosa emoção de segurar em minhas mãos meus próprios livros. Publiquei meus contos, meus poemas, meus romances. A minha felicidade estava completa! Abandonei definitivamente, sem titubear a carreira de advogada. Miguelzinho estava com quatro anos de idade e estudava no turno vespertino. Eu me ocupava dele pela manhã, ajudando nas tarefas escolares, levando para a natação e escolinha de futebol em dias alternados. Não tínhamos muitas amizades, porque o oficio de Miguel é rigoroso. Sabíamos que era fundamental um delegado não se expor demais e assim evitar dissabores. Eu nunca me incomodei com isso, pois a maior parte do tempo passava escrevendo. Bastava- me a companhia de meu marido, meu filho e de uns poucos amigos.
Organizávamos nosso lazer em família, Miguel cuidava da churrasqueira, enquanto eu preparava os acompanhamentos do churrasco. Ouvíamos de Raul Seixas a Roberto Carlos. Mas o Rock’n roll era a música oficial. Para meu deleite, Miguel cantava suas próprias canções dedilhando com maestria seu querido e inseparável violão. Nessa época Miguelzinho também acompanhava o pai e soltava sua vozinha infantil e me emocionava sobremaneira. Meu filho sem amiguinhos para brincar se divertia com o antigo autódromo que herdara do avô. Éramos felizes e sabíamos!
Miguel foi se familiarizando rapidamente com o oficio de delegado. Estudava muito, conduzia com firmeza as investigações que envolviam todos os delitos e crimes do lugar. Foi nomeado Delegado Titular da Delegacia de Polícia da Comarca. Respeitado por todos os cidadãos e admirado pelos subordinados a exceção daqueles que mantinham comportamento avesso aos princípios que Miguel honestamente seguia. Quando completou três anos de atividades comemoramos com um jantar para os colegas da delegacia, alguns advogados e nossos amigos, o Major Saul e o Capitão Salvatori, ambos policiais militares. Eu não nutria qualquer simpatia pelo tal capitão, e não se tratava somente de antipatia, meu sexto sentido detectou algo errado com ele. Ouvi histórias escabrosas sobre ele, até meu amigo Mario Simon, escritor, jornalista e repórter investigativo foi alvo da perseguição por parte do capitão por causa de uma reportagem envolvendo tortura policial. O fato ocorreu quando o filho da faxineira de Mario foi preso em flagrante delito portando algumas gramas de maconha e acusado de furto na residência de um empresário local. Conhecendo o jovem desde criança, Mario conseguiu provar que ele não tinha envolvimentos com drogas e com um álibi provou que o preso não estava na cidade no dia em que a casa foi invadida. A polícia agiu com excessos o que ocasionou vários desdobramentos, culminando com o processo movido pelo ministério publico para investigar a ação policial que ensejou a ação contra o estado por danos morais e materiais. Restou provada a inocência do rapaz, mas ele perdeu o emprego e ficou mal visto na cidade. Causava- me repulsa o tal Capitão Salvatori , mas no momento ele era um convidado e eu o tratei educadamente. Entre os convivas estava o inspetor de polícia, Nicanor, um homem de cinquenta e poucos anos, moreno de cabeça grisalha e espessas sobrancelhas que marcavam os olhos castanhos escuros, sempre atentos a tudo à sua volta. Eu tinha a impressão que ele estava sempre esperando ser vítima de um ataque pelas costas, ou aguardando para se abaixar de alguma bala direcionada a ele. Caso houvesse uma porta, estava sempre sentado de frente para ela, jamais dava as costas, ocorrendo o mesmo com as janelas. Mesmo achando suas atitudes extravagantes ele era bastante simpático e Miguel confiava totalmente nele. Estava prestes a se aposentar por tempo de serviço. A cidade provinciana e acolhedora passou a fazer parte de nossa vida, mas não é bom uma autoridade ficar tanto tempo em um único lugar e uma mudança seria benéfica porque viria acompanhada de uma promoção e consequentemente de um bom aumento salarial. Miguel, então, requereu a transferência e aguardava ansiosamente a resposta da nova localidade que assumiria. Fazia dois meses que meu marido esperava seu deslocamento, pois seu pedido fora aprovado. Não era só a ansiedade com a troca de Comarca que afligia o delegado Miguel. Eu passei a perceber alterações em seu comportamento. Era inicio do mês de dezembro. O dia amanheceu nublado, havia chovido muito na noite anterior. Eu me levantei com uma vontade de tomar café e com ideias para um novo romance que começara a escrever. Miguel acordou cedo nesse dia e encontrei- o na sala, sentado na poltrona de couro, ambas as mãos na cabeça, olhando para o chão. Senti sua tristeza e sua preocupação, e me doeu imaginar que ele estava com problemas e não se abrira comigo. Nunca tivemos segredos um para o outro. Quando sentiu minha presença ele me olhou e sorriu. Mas seu sorriso era triste! Eu, então estendi minhas mãos para ele:
- Vem, quero te dar um abraço. Abraço cura tudo!
Ele se levantou e num amplexo apertado ficamos unidos por alguns instantes. Ele respirou fundo, de mãos dadas fomos para a cozinha.
- Amor, eu só preciso de um café e de um beijo. Ele me disse isso me puxando de encontro ao seu corpo.
E nos beijamos com paixão, um beijo cálido e demorado. Eu sentia seu coração pulando no peito, acelerado. Fiquei assustada. Depois desse episódio a calmaria voltou a reinar em nossa casa, não percebi mais nada de anormal em Miguel, até que no sábado pela manhã ele recebeu um telefonema.
- Tenho que sair Julia. Talvez demore.
- Mas e o nosso churrasquinho, amor? Perguntei.
- Amor, inventa algo pra você e Miguelzinho. Na volta eu como alguma coisa. Te amo! Fica bem!
Nesse instante as badaladas do relógio da Praça da Matriz anunciavam que eram nove horas, seguidas de uma música que ecoava pelas redondezas:
- “ Ainda se vier noites traiçoeiras e a cruz pesada for, Eu estarei contigo...”
Havia algo errado. Mais uma vez meu sexto sentido me alertando. Senti uma angustia sem razão me comprimindo o peito...
Por volta das dezesseis horas Miguel retornou à nossa casa.
- Oi amor!
- Você está com fome? Perguntei.
Ele me respondeu:
- Estou com fome de você. A única coisa que preciso é de sua companhia. Ele tomou um banho, estava muito pensativo quando saiu do chuveiro enxugando a cabeleira.
Carinhosamente tocou meu rosto e me levou para nossa cama. Beijou meu rosto, meu pescoço, meus seios, muitas vezes, e sussurrou doces palavras de amor em meus ouvidos. Havia súplica em sua voz. Ao mesmo tempo em que sentia imenso prazer em nosso amor eu sentia calafrios percorrendo meu corpo, como um aviso de perigo a nossa volta.
Abracei-o fortemente e disse seu nome repetidas vezes, querendo que ficasse assim, eternamente colado a mim. Quando relaxamos, Miguel me puxou para junto dele e me disse:
- Julia, descobri um esquema criminoso que envolve parte do meu pessoal e policiais militares. Vou enviar oficio à corregedoria e também oficiar o Ministério Público. Preciso fazer isso logo e apressar minha transferência, pois temo pela sua integridade e de nosso filho.
- Pode me contar o que está acontecendo, Miguel? Perguntei mais aflita que curiosa.
Ele continuou deitado de costas, eu do seu lado, com a cabeça em seu peito, ouvindo sua respiração acelerada:
- Vislumbrei apenas a ponta do iceberg, deve haver coisa bem pior camuflada. Vou contar parte do que descobri e você vai entender, mas direi o suficiente para não envolver você nessa história sórdida.
Concordei com um aceno de cabeça e fiquei ouvindo meu marido:
- Faz alguns dias, o Nica e o Mário marcaram comigo na redação do Jornal para me mostrar algumas reclamações que o Mario recebeu e que a partir dai resultaram em uma investigação mais detalhada contra certas atitudes de um pessoal da policia. Mas não foi só pra isso que me chamaram é que o Mario passou a receber ameaças.
- Eu sei que você percebeu minha preocupação, mas eu não achei de bom alvitre incomodar você com isso porque é um assunto que dizia respeito somente ao Mario Simon, que mesmo sendo seu colega, poderia ser algo sem consistência, você entende, amor?
Acenei que sim, sem compreender muito bem. Miguel então continuou:
- Eu e o Nica desde então nos colocamos de sobreaviso, dando uma espécie de segurança ao Mario enquanto ele continuava com a ideia de descobrir mais coisas.
Então, eu recebi um telefonema de Nicanor, pela manhã. Ele estava de plantão e me disse que o assunto era sério. Eu cheguei à delegacia e um jovem me aguardava na companhia de Nicanor e do Mário jornalista.
- Ouça essa história, Julia!
Eu disse:
- Aham!
E Miguel continuou pausadamente
- O rapaz, um agricultor teve sua motocicleta apreendida pela policia militar. Até então, eu não estranhei porque se o veículo está em atividade suspeita ou perante uma blitz não tem a documentação em dia está sujeito à apreensão. Eu sei que você sabe disso, amor, mas estou esmiuçando assim pra que você acompanhe minha linha de raciocínio. Concordei novamente com um aceno de cabeça, enquanto olhava pra ele, ali deitado, os longos cabelos ainda úmidos, começando a fazer alguns cachos miúdos. Notei que estavam aparecendo alguns fios brancos, esparsos. Uma onda de ternura inundou meu coração. Ele, porém continuou falando:
- Tem algo errado nesta história, Júlia! Ocorreu a apreensão da moto de fato, mas não foi lavrado nenhum B.O. (Boletim de Ocorrência), ou TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência), consequentemente não localizei o REDS no sistema. O que achei mais inusitado, que demonstrou a confiança de que jamais seriam desmascarados é que o veículo não se encontrava no pátio da delegacia onde obrigatoriamente todos ficam retidos aguardando as providencias cabíveis por parte dos proprietários e da justiça.
Miguel me contava esses detalhes, mas eu sabia que em sua mente ele já estava estudando um jeito de botar tudo às claras.
- Julia, o Mário me confidenciou que já está investigando esse tipo de coisa há um bom tempo e se interessou pela história porque tem certeza que existe ligação desse caso com outros. Ele ouviu um informante dizer que correm boatos envolvendo falsas apreensões. Inclusive me deu detalhes de um caso envolvendo veículos clonados. Você conhece o Mário, ele tem usado seu faro de repórter para seguir o rasto de um automóvel CUJA PLACA FORA CLONADA em outro estado. Ele inclusive procurou a Policia Civil da tal Comarca para averiguar.
Miguel coçou a cabeça, e fez um movimento com a boca, gesto que ele repete sempre que está ansioso. Então continuou, enquanto deu um suspiro fundo:
- Esse negócio do Mário estar tão envolvido é outra preocupação, meu amor, porque ele tem recebido telefonemas ameaçando sua integridade física. Tem chegado e-mails com ameaça de morte. Ele tentou descobrir de onde foram enviados, e detectou o pior: eles são provenientes de IPs privados, oficiais.
Embora sentisse meu coração apertado ouvindo a dissertação de Miguel, eu não fazia comentários ou perguntas, apenas ouvia atentamente o relato. Eu temia que uma interferência, uma simples pergunta ou comentário o retraísse fazendo com que desistisse de se abrir comigo. Compreendi a dimensão do problema. Criminosos que se escondem atrás da farda ou do distintivo são mais perigosos porque se escondem atrás do poder, e pior de tudo tem muito a perder quando são desmascarados.
- Julia! Ele disse com a mão acariciando meu queixo (e embora olhasse diretamente para o meu rosto, o seu raciocínio estava longe dali)...
- O Nicanor pegou o fio da meada porque havia feito diligencias para localizar o veículo do rapaz. E não preciso nem dizer, você conhece bem a peça, não engole injustiça e ao ver as unhas do agricultor cheias de terra e o cara dizer a ele que pagou com sacrifício o veículo e que estava com a documentação em ordem, nosso amigo puxou no sistema os dados do proprietário e da motocicleta Não deu outra, amor, não havia nenhum motivo pra apreensão, quanto mais para travar a restituição. O Nica me falou que a moto estava em outro lugar fora da delegacia, na residência do investigador Fabão.
Bancando o dissimulado, sem dizer que sabia da real situação, o Nicanor ficou reclamando da vida ali pelos cantos da delegacia. Chorou que estava precisando de grana, que já estava na hora de deixar a honestidade ferrenha apenas pro “delega” Miguel. E antes teve o cuidado de despachar o dono da motocicleta com o aviso de retornar imediatamente assim que fosse chamado e que não falasse com outro policial senão ele.
- O Nica, ficou furioso. Ocorrer esse fato justamente na minha escala de folga? Ele teve a certeza que havia algo podre no ar. Sem pestanejar decidiu que ia atrás de evidencias e me passaria os detalhes da investigação. Pergunta daqui e dali, sondou dois carcereiros novatos sobre a prisão de um motorista embriagado e soube que nenhum advogado havia aparecido pra liberar o cara, mas que o Fabão havia mandado soltar que estavam providenciando o alvará de soltura e ele se responsabilizou pela liberação do motorista. O Nica falou com o escrevente que lavrou o BO e constatou que não havia histórico de uso do bafômetro, ou recusa. A carta de habilitação fora devolvida, mas quanto ao automóvel não constava nada. Ele deu uma olhada no pátio, nada.
- Julia, o Nica estava com a pulga atrás da orelha. E ficava cada vez mais interessado no deslinde das questões. Ele sentiu que precisava descobrir mais antes de falar diretamente comigo e duas horas depois foi falar com o Zé Vicente. Você se lembra dele, amor? Aquele que tem um casal de filhos loirinhos?
Eu acenei, com meio sorriso, confirmando que me lembrava dele.
- Então, Julia, o Zé Vicente está trabalhando de dupla com Fabão desde o inicio do ano. Lembra que ele veio transferido por causa de problemas funcionais em outra cidade?
- Sim, amor, eu me lembro. A esposa e os filhos estranharam a cidade... Um dia me encontrei com ela por acaso na farmácia... Ela chorou. Lembro sim. Tão tristinha ela. Eu respondi vagamente, enquanto continuava abraçada a ele, sentindo o calor febril de seu corpo, excitado pelas revelações de um caso que ele tinha certeza traria consequências severas para todos os envolvidos, direta ou indiretamente a ele.
- Pois, é... Miguel fez um muxoxo e continuou:
- Usando de malandragem, o Nicanor perguntou sobre o veículo apreendido, disse que o dono estava disposto a pagar pra ter de volta a motocicleta. O Zé Vicente se interessou pelo assunto e saiu ligando pra alguém do seu celular.
Logo em seguida o Fabão chegou se mostrando bem a par dos acontecimentos.
- E ai, parcerão? Beleza, Nica? Você não disse que precisa de uma grana? Eu e o Zé topamos dividir contigo, Nicanor. Mas, véi, ninguém pode saber disso. A gente, sabe que você é chegado do delegado, cara, mas não pode sujar, senão fica ruim pra nós, tá entendendo?
O Fabão estava eufórico com a possibilidade de ter mais um aliado, ainda mais sabendo da influência do Nica.
- Tá ai um bom negócio. Logo você aposenta, tem que ter uma grana extra, cara, né não? O esquema é o seguinte:
- Arrancamos um dinheiro do otário dono da motocicleta. Ela tá irregular, chassi raspado. A gente devolve, mas ele não circula nem um quarteirão, avisamos uns amigos da PM e trazemos de volta, ai é só fazer contato com o comprador no estado vizinho. A gente faz a documentação como se fosse encaminhada pra leilão. Tudo limpo. Não tem erro, cara!
- O Chassi tá raspado, você conferiu? O Nicanor perguntou.
- Tá tudo irregular. Quando o cara volta pra saber da moto?
- Amanhã. Respondeu o Nica.
- Você pode trazer o veículo pra cá, pro rapaz fazer uma vistoria? Ter certeza que é a moto dele.
- Claro, parceiro! O Fabão respondeu.
Miguel, estava corado de indignação, enquanto alisava meu braço que estava sobre seu peito:
- Amor, o Nicanor estava P da vida com a história, mas precisava ganhar tempo e pensar no jeito de me avisar, mas não podia se precipitar, querendo ou não são nossos colegas. Assim, ele ligou pro dono da motocicleta que chegou eufórico, coitado esperando a restituição.
- Você sabe onde é o chassi da sua moto?
Perguntou- lhe o Nicanor.
- Sei sim, senhor!
- Então vem ver, mas se abstenha de fazer qualquer comentário e principalmente faça vistas grossas pra tudo que acontecer. Depois conversamos somente nós dois.
Quando o lavrador observou o chassi, viu que estava raspado. E compreendeu que a policia que havia adulterado. Ele ficou pálido e fez menção de dizer alguma coisa, mas o Nica fez um sinal negativo e o rapaz compreendeu.
- Julia...
Eu apenas mexi com a cabeça, concordando que ele continuasse:
- O Fabão chegou e fez então a proposta: “ Que o rapaz pagasse certa quantia em dinheiro e levaria o veículo.” O valor correspondia a pelo menos 70% do valor real do bem. Um absurdo!
- Mas o Nica disse que o rapaz não tinha dinheiro no momento, que faria um empréstimo e retornaria outro dia pois queria a motocicleta de volta.
O Fabão e o Zé Vicente concordaram e prometeram aguardar. Eles tinham certeza que iam lucrar.
O Nicanor mandou o jovem procurar o Mário Simon na redação do jornal e me ligaram aquela hora da manhã.
- Amor, eu não guardo pau pra bater em cego, você sabe! Eu já fui logo apertando o Fabão e ele me disse que não está sozinho no esquema.
- Pelo amor de Deus, Julia, gente graúda envolvida! Da cúpula da PM, delegados de outro estado! Aqui o Capitão Salvatori encabeça as apreensões. O Zé Vicente, mais três detetives e outros policiais militares fazem parte da quadrilha.
- O Fabão mencionou o lugar, onde escondem os veículos, fez até um mapa.
Miguel se levantou, foi até o banheiro e pegou a carteira que ficara sobre o móvel, mas não encontrou o que procurava. Retornou para o quarto um tanto nervoso dizendo.
- Puta que pariu! Deixei o mapa na minha mesa na delegacia. Não sou de vacilar. Vou ter que voltar lá...
Eu estava gelada por dentro quando perguntei:
- Onde é esse lugar!? É um desmanche aqui na cidade?
- Sim, exatamente amor! Mas fica em uma propriedade rural que funciona como ferro velho de fachada. Lá fazem as desovas de automóveis, motocicletas, caminhões. Os carros são cortados, as peças retiradas e separadas para venda clandestina. O Fabão confirmou que ocorre desmanche de veículos roubados aleatoriamente e encomendados. O esquema é grande envolve o comércio de peças roubadas, propina, roubos e furtos de veículos. Falsificação de documentos para leilões. O esquema de corrupção envolve ladrões, comerciantes, policiais civis e militares e está se alastrando cada vez mais ...
Miguel me dizia isso, profundamente desolado, magoado com aqueles que recebem para defender a população dos criminosos e pelo dinheiro se corrompem e passam a fazer parte do crime:
- Julia, veículos roubados em todo estado... Nas cidades vizinhas de outros estados... Desaguam aqui... Vem parar justamente aqui, pelas mãos de policiais corruptos...
Miguel não se conformava com a situação:
- Você tem noção, meu amor, do que irá acontecer? Não posso assumir outra delegacia sem derrubar esse esquema que está prejudicando gente de bem. Temos que nos mudar daqui com minha consciência tranquila, de dever cumprido. Julia, você é minha mulher, a pessoa que mais me conhece nesse mundo, eu tenho e vou encerrar a carreira criminosa de um bando que desonra a corporação militar e a policia civil.
Um calafrio percorreu outra vez minha espinha, e senti um tremor interno que me abalou, me deixou com medo, e em pensamento comecei a rezar.
O relógio da Matriz bateu as horas, e logo em seguida a mesma música que ouvira pela manhã ressoou nos auto- falantes:
-“ O mundo pode até fazer você chorar, mas Deus te quer sorrindo...”
Miguel estava terrivelmente sério. Creio que não ouviu as badaladas, nem a música que vinha da torre da Igreja:
- Julia, eu te contei tudo isso porque hoje à noite, vamos sondar o local, eu, Nicanor e o Mário. O Fabão fez um mapa do local como te disse. Não tem erro... Por enquanto tenho certeza que ele não vai me trair porque se fizer isso vai sobrar pra ele, se dedurar que estou por dentro do esquema vão saber que ele que deu com a língua nos dentes. O bando certamente não perdoa os ‘cagoetes’.
- Ficaremos de campana. O Mário está encarregado de filmar e fotografar tudo. Depois de ter certeza das provas, providencio o flagrante em outra data.
Meu coração saltou no peito, tive um mau pressentimento, ouvindo Miguel dizer:
– Os canalhas se aproveitam de pessoas simples que não oferecem resistência ou escolhem os que estão com a documentação dos veículos em dia. Roubam, assaltam, matam os pobres motoristas e depenam os veículos. ‘Trabalham sob encomenda’, o Fabão soltou essa... Como se isso fosse uma transação comercial legal. Essa quadrilha comanda uma fábrica de dublês. Infelizmente desconheço o alcance de seus tentáculos...
- Julia, eu não terei paz, não ficarei tranquilo enquanto esses bandidos não forem mandados para a penitenciaria. Eu, pessoalmente quero dar voz de prisão a eles.
Ouvi as batidas fortes de seu coração. O meu próprio estava gelado. Minha alma estava apreensiva. Miguel, me apertou de encontro a ele, alisando meus cabelos:
- Minha querida, meu anjo bom! Estou mais aliviado de contar isso a você, afinal você advogou tanto tempo e sempre se recusou a defender bandidos, conhece a minha posição quanto a isso. A sociedade merece todo meu empenho. Selou seu desabafo com um amoroso beijo em minha boca, que deveria, mas não acalmou meu coração.
Ficamos ainda abraçados, calados, nos acariciando por um bom tempo. De vez em quando Miguelzinho, batia na porta dizendo:
- Mamãe, estou com fome!
Miguel também sentiu fome. Jantamos e ficamos na sala assistindo à TV. Não consegui comer nada, sentia um nó na minha garganta. Eu olhava a tela, mas não sabia que programa estava passando, meu pensamento estava voltado para o esquema que Miguel havia armado e aguardava a hora dos amigos ligarem para coloca- lo em prática.
Passava da meia noite quando o celular do meu marido tocou. Ele dormira no sofá na sala, com a cabeça no meu colo, enquanto eu silenciosamente orava por ele.
Miguelzinho dormia tranquilo no outro sofá, sem se incomodar com a televisão que estava ligada e com o som bem baixinho.
- Amor, o Mario e o Nica chegaram. Vamos de camionete com Mário, um veículo só não chamará atenção.
- Deus te proteja meu amor. Que os anjos cuidem de vocês. Eu disse bastante convicta.
Miguel me beijou e disse:
-Eu te amo, Julia! Você e o nosso filho são o meu tesouro. Cuide bem dele e não me espere, tente dormir. Não se preocupe é mais uma diligencia só isso.
Miguel já havia atravessado o portão de casa, quando me chamou e eu fui ao seu encontro. Ele então me abraçou bem forte, me beijou e disse:
- Julia, se algo der errado, se, amor, eu sei que vai dar tudo certo. Mas, se, não diga nada do que eu te contei para ninguém. Caso seja necessário, fale por alto, não se preocupe comigo, amor. Você tem que pensar em você e no nosso filho. Ok?!
Eu só balancei a cabeça concordando, ele me deu outro beijo. Nisso o Mario buzinou, estavam se atrasando.
Eu fiquei do lado de dentro do portão, olhando pela grade meu marido se afastar.
Duas horas e meia se passaram, mas me parecia um século! Eu não consegui sequer cochilar por alguns minutos. Por volta das três e meia o telefone tocou. Com o coração disparado eu atendi e ouvi a voz angustiada de Miguel.
- Julia, peça ajuda eles balearam o Mário, o Nica... Meu Deus, o Nicanor tá morto. Estou escondido no mato, mas fui alvejado. Estou próximo ao trevo...
Mas, Miguel não completou a frase. Entrei em pânico, ouvi vários estampidos e a ligação caiu. Tentei ligar de novo, mas estava fora de área. Liguei para o 190 e contei o ocorrido. Imediatamente chegaram várias viaturas em nossa CASA. Os investigadores também tomaram nossa residência, como se a delegacia agora fosse ali.
Miguelzinho acordou assustado, perguntando pelo pai. Ele tivera um pesadelo.
Os policiais me crivaram de perguntas. Desesperada eu não sabia informar o local. Poderia ser qualquer trevo... Na hora me lembrei do Fabão. Ele sabia do esquema, conhecia o local do tal desmanche. E era exatamente lá que Miguel e os outros ficaram de campana.
Mas não encontraram o detetive em lugar algum. Ele apareceu uma semana depois, em elevado estado de decomposição. O major Saul me mantinha informada da situação, mas não se mostrou muito empenhado em continuar as buscas usando toda a corporação. Encarregou uma guarnição do Serviço Especial e me mandou aguardar.
Meus pais chegaram, e me deram o maior apoio, cuidando de Miguelzinho. Sofremos juntos, calados, para amenizar a dor de uma criança.
Um fazendeiro que entrega leite na cidade encontrou o corpo de Miguel e dos outros dois no dia seguinte. Jogados em uma vala usada para evitar erosão. Não havia evidencias dos assassinos. Não havia filmagens, gravações, os celulares das vítimas desapareceram, nada foi encontrado no local. Creio que nem fizeram buscas nas redondezas para encontrar o desmanche. O capitão Salvatori pediu transferência mudando-se da cidade logo após os fatos. O Zé Vicente mais uma vez foi deslocado para outra comarca.
Eu contei a historia para a promotoria pública e instauraram um inquérito administrativo na policia CIVIL E MILITAR, mas até o momento nada foi apurado ou esclarecido.
Perdi meu marido, meu norte. Um pedaço da minha alegria foi enterrado com ele. Passo horas ouvindo suas canções.
Revejo os vídeos de aniversários, de nossa formatura, do casamento. Ao olhar para o meu filho eu vejo os traços do pai em sua fisionomia, em seus gestos, e confesso tenho muito medo do futuro. Temo que a impunidade continue a matar inocentes e dar seu beneplácito aos culpados. As agruras da vida e o tempo chegam para todos, mas é difícil compreender porque os bons sofrem mais e tento com todas as minhas forças encontrar nesse turbilhão de sofrimento um motivo para continuar acreditando na humanidade.
A brisa fresca que entrou pela janela tocou suavemente meu rosto.
Então fechei os olhos e recebi a caricia de um beijo. Senti o perfume de Miguel inundar minhas narinas, um arrepio quente percorreu minhas costas. Abri os olhos e senti o Dedo de Deus tocar meu coração. Meu marido está vivo na eternidade. E nosso filho terá sempre muito orgulho dele. Jamais se esquecerá de que o pai dele, Miguel Vitorino é um Herói!