ZORAIA
Na manhã de 27 de dezembro de 2013
Faltam dez dias para começar o ano de 2012. Geraldo, ao se despedir, inclina-se diante de mim, profundamente... profundamente... Num relâmpago, volta-me à mente o gesto do stáriets Zózima, prosternado aos pés de Dimitri e, aos ouvidos, a explicação posterior do religioso, a Aliocha, sobre o significado do próprio gesto, a Aliocha, seu jovem discípulo, irmão de Dimitri: “Ontem, inclinei-me diante do profundo futuro sofrimento dele.*” Incoercível, me vem à lembrança também a figura de Ivan, o terceiro irmão. Ah, Dostoiévski, depois de tudo o que escreveste, restou-nos muito pouco para dizer dos abismos nas almas dos homens.
Abro o portão, sorrateira, para que ninguém me ouça chegar. Imóvel, sozinha perante o Céu, procuro o Cruzeiro do Sul. Penso em Zoraia, a Mãe, que manteve, sempre, o segredo de seus três filhos, no próprio coração. O segredo que tem meu nome.
"Estática diante da janela, Zoraia saboreia, por antecipação, o momento exato da chegada dos filhos, juntos, simultâneos, como em tempos imemoriais: um deles, vindo do Centro Velho; o outro, do Morumbi. Rubem, o que escreve literatura como se fora cientista, o estrangeiro da família, telefona-lhe com frequência, quase sempre em horários disparatados para uma senhora de noventa e dois; visitas, não mais do que três vezes ao ano. Daniel também aparece pouco, só quando a profissão de médico e o exercício amador da poesia lhe dão trégua. Zoraia jamais reclama de nada, ainda quando, nos tempos de Márcia, a ausência deste filho lhe pesasse qual degredo. Aliás, não reclama nada de qualquer dos dois. Vê-los juntos hoje, fato miraculoso, como miraculosa a volta de Daniel para Vânia, a mãe de suas duas filhas. A menina mais velha, Marjorie, preocupa a todos, por seu ensimesmamento maior do que o do pai e do que o do tio, somados. Apenas Alice, a mais jovem, tem acesso aos mistérios da irmã. Quanto a Rubem e a Daniel, diferem um do outro como um poema concreto se distingue de um soneto de Petrarca; uma orquídea rara, de ramo de flores silvestres; um Hopper, de um Rafael; um fiorde norueguês, do rio Tejo; um atabaque, de uma flauta; ... um violino, de outro violino ... um silêncio, de outro silêncio ... ainda que certas visões, num átimo, lhes torne tudo Único. Rubem, o retrato vivo do pai: os traços de índio, o cabelo escorrido, o corpo sem pelos e no sangue, muito daquela outra América que não pôde resistir ao domínio espanhol; Daniel, a pele clara, a expressão do olhar igual à de Zoraia e no sangue, muito daquela outra Europa que, pouquíssimo, quase nada aportou aqui. Opostos complementares, na mesma Moeda Real."
"Rubem pouco vê os filhos, Luisa e Pedro, que se foram com a mãe, Olga, para a Itália, três anos após o divórcio dos pais que, durante quase um lustro permaneceram, por acordo tácito, na mesma casa, até a maioridade de ambas as crianças, na crença de lhes garantir algum pecúlio emocional. Ainda bem que a casa conseguiu proporcionar a todos confortáveis exílios, ao menos no decorrer dos dias úteis. Hoje, a velha herança familiar pertence a outrem e sobrevive algures, sem marcas do passado. Zoraia sonha com um bisneto, embora não imagine de quem ele lhe possa vir. Cada dia solicita, ao seu Deus, o tempo necessário para vê-lo nascer."
"Enquanto aguarda os seus meninos, observa a paineira na pequena praça diante da casa, paineira soberba, plantada há incontáveis anos: foi em 1° de março, dia do aniversário de Geraldo, um mês antes do Golpe de 64. Por qual dos três? Por Geraldo com 17, por Daniel, com 21 ou por Rubem, com 22, todos já com os sonhos e abismos a preenchê-los, a exorbitá-los, desde a infância pela vida adentro. Era vê-los partilhando planos, labirintos, espectros, e muito se lhe acalmava no coração de mulher. Geraldo, o filho que permaneceu, que prometeu a si mesmo vir a escrever algum dia, ainda que sob a forma de fragmentos, o possível dos interditos da família... dos encantamentos... e, principalmente, o possível da presença dela, da mulher que ninguém esquece. Semente tão pequena, ninguém a imaginaria árvore de tal porte, a paineira, árvore sagrada do povo Maia, com as flores de outono, magníficas. O olhar do marido diante das flores despertava, no íntimo de Zoraia, paisagens inusitadas, de alheios ancestrais. Naquele tempo em que a pequena semente se ia a germinar sob o solo, a escuridão se espalhava, poderosa, desde os subterrâneos, invadindo os campos, as plantações, as cidades, os mares, os céus, em todo o País. Escuridão densa, autêntica, genuína, dentro da qual se podia sonhar Auroras, jamais a Mascarada dos dias atuais. Infinita Graça o pai dos meninos não ter vivido o bastante para vê-la, a esta Travestida. Zoraia, os olhos tão verdes, a descendente de persas e de bascos, recorda; Zoraia, a brasileira, a filha de portugueses, aquela que também entremostra, volta e meia, vislumbres de vertigens e de orientes percebidos por ninguém. Zoraia, a que guarda no peito, sem que seus meninos o saibam, o nome comum do maior segredo deles, o nome da mulher que, por imposições do destino, não pôde ser de nenhum dos três."
"A mãe cruza as mãos sobre o peito, cerra os olhos como em prece à Senhora de Fátima, à Senhora de Aparecida, à Senhora de Guadalupe. Quem sabe esteja a juntar, num Aleph, os pontos infinitos de seus polos, tanto quanto as Ausências. A manhã vai pelo meio. Cecília, enquanto ainda ensaia o voo para os céus próprios, vai preparando o almoço, almoço especial para este dia, de reencontro entre os irmãos. À noite, quando tudo se torna ou simula-se O Mesmo, os quatro cálices de vinho do Porto se erguem no brinde à paz do domingo, antevéspera de mais um Ano Novo."
* Personagens e cena de OS IRMÃOS KARAMAZOVI, de DOSTOIÉVSKI.
REPUBLICAÇÃO