Pessoas espalhadas, dispersas, livres nessas horas noturnas; horas quentes e agitadas na movimentação incessante dos inquietos temporais... Todos, mergulhados nas veredas incertas de seus passos diários, buscando distrações quaisquer... Essas são horas não registradas, são simplesmente momentos sentidos, vividos, corriqueiros, refletindo os diversos olhares, espalhados dentre as mesas ocupadas na agitação do bar, onde ela - a puta - jogada numa cadeira sofre sua dor. Esta meretriz chora sem se envergonhar. Pouco se importa com quem possa estar assistindo ao seu espetáculo gratuito e real; realidade que arde em si, sem fingimentos, pois seus sentimentos de mulher dolorida são demasiadamente cruéis...
A música ao fundo (recheada de frases líricas) achocalha seu desolado ser. Canção verdadeira que soa vibrante ao adentrar seu intimo, rasgando palavras secas e duras em lamentos similares ao seu. Seu peito sangra, pulsa mais forte e alguma vontade de morrer paira sobre sua mente inconsolável...
- Ele me abandonou...
As lágrimas transbordam. Seu coração apertado e dolorido vagueia apaixonado. Suas lembranças trazem as mãos, os toques, os beijos do seu amado amante que, como ninguém mais, sabe lhe fazer verdadeiramente mulher...
Outra música ecoa junto ao vento suave que passeia pela face do ar, aumentando sua tortura dolorida em frases dilacerantes. Em sua solidão, seu amado sobrevive imaginariamente, e faz seu peito pulsar forte em gotas sangrentas de desilusão...
Ocorreu há pouco! Em minutos passados o homem de sua vida destruiu seus planos. Sua efabulação romântica se desfez depois duma conversa direta e implacável. Só por isso que, agora, seus avermelhados olhos lacrimejam... Desiludida mulher! Desiludida mulher!
Nestes instantes, talvez esta desolada mulher até se arrependa de ter posicionado seu amado numa corda bamba. Esta apaixonada criatura acreditou em palavras masculinas, em sedutoras palavras, juras amorosas capazes de ultrapassar momentos de carinho vividos em quartos de hotéis perfumados na fragrância do sexo.
Transcorrido o acontecido, esta fêmea lamenta ter sido tão radical, arrepende-se por ter acreditado vencer a batalha, armada somente com o poder da sedução. Pura ilusão! Pois seu idolatrado homem disse não; impiedosamente disse não, ao ser pressionado para assumi-la. A jovem iludida pontuou que o queria para sempre, que deveriam resolver logo a questão, morar juntos, constituir lar; um lugar onde seriam felizes...
- Isso é loucura. Eu não posso largar minha mulher. Que absurdo! Então é melhor acabarmos com tudo...
Tais palavras afetaram drasticamente a sonhadora prostituta embrenhada no desespero da paixão. Ela caiu em si, desvendando as promessas fingidas. Afinal o mesmo havia lhe pedido algum tempo para resolver a relação conjugal e logo estariam juntos, felizes para sempre...
- Mas você disse que me queria! Que me amava! Que seríamos nós dois. Você mentiu...
- Sandra, que loucura! Olha, não dá. Não dá mesmo. Acho melhor terminarmos por aqui. Eu não posso fazer o que você quer. Você realmente acreditou que eu deixaria minha esposa pra ficar com você? Que loucura!
Espessa nuvem negra sobrevoa a visão desta desiludida mulher. Ele se foi. Ele sumiu. Talvez até já esteja pensando em arrumar outra prostituta para diverti-lo. Alguma outra que forneça o que a esposa não fornece em casa. Agora sabe que o código das putas é válido, ou seja, não devem mesmo se apaixonar por homem nenhum – principalmente se for casado.
O garçom traz mais uma cerveja e outra música romântica atinge seu peito. A noite segue lenta e tumultuada. Seus olhos avermelhados tentam esquecer a ilusão construída em meses de sonhos; puros e perfeitos sonhos...
- Amiga. Eu até quis te avisar que ele não largaria a esposa pra ficar com você. Isso já aconteceu comigo. Eles são todos iguais, não nos valorizam, querem apenas sexo, diversão, fugir de casa...
- Eu quero morrer Valéria...
- O melhor que você tem a fazer é tentar esquecer. A vida segue. Nessa vida de puta não temos valor. Não se iluda. Há quinze anos que vivo nessa jornada. Já vi de tudo. Sim, claro, já aconteceram casos em que homens assumiram relações com putas, mas isso é raro. Toma sua cerveja, chore sua dor. Você está dolorida. Eu entendo. Mas não perca a cabeça. Não vale a pena. A vida continua. A vida continua. Calma amiga, calma. A vida continua...
- Garçom! Traz mais uma cerveja.
A música segue rasgando o coração da puta que sofre o abandono do homem que lhe prometera outras expectativas de vida...
Enquanto isso, dois rapagões observam a sofrida mulher. Os mesmos estão ansiosos para levá-la a algum motelzinho nas redondezas da Praça Mauá, na cidade do Rio de Janeiro, às margens do Museu Mar, entrelaçados na revitalização urbanística que abrange toda a região portuária...
Valéria transcorre seus dedos por entre os cabelos de sua colega Sandra, e, em seus olhos, algum brilho distante percorre suas lembranças... Imagens de um longínquo tempo ressurgem em sua mente; tais imagens brotam trazendo a presença marcante, forte e saudosa de um homem muito, muito especial... Robson aparece, e, ambos, completamente pelados, num quarto qualquer, sobre lençóis amarelados enroscam seus corpos embriagados no labirinto do prazer... O jovem casal não pensa em mais nada a não ser usufruir o calor prazeroso que dilacera seus corpos, seus sexos pulsantes, suas vontades extasiantes nessas horas de entrega em que o mundo inexiste lá fora... Eles se amam e se entregam e se mergulham e gozam e jorram-se. Extasiam-se no que a vida não pode lhes roubar (não nestes instantes) intensos e infinitamente marcantes... O furor de suas entregas camufla quaisquer outras banalidades...
Foi naquela noite; áurea noite, que Robson a levou para o quarto, e na noite seguinte outra vez, e mais outra noite; outras noites, e a química, a entrega, os sonhos florescendo no jardim romântico de Valeria, que foi cultivando dia após dia a vivacidade daquele amor regado de colorida paixão no luar da sedução. Robson entrou em seu mundo e jurou-lhe o maior amor do mundo. A vida seria diferente. Os dias não seriam os mesmos. O futuro era um quadro perfeito e repleto de felicidade. E o amor só aumentava. Os desejos eram como nascentes que formavam vastos rios sem fim...
Até que ele não mais apareceu, se foi, sumiu e seu coração despedaçado teve que aprender a conviver com a solidão e a desilusão... Foram anos de sofrimento, de espera sem qualquer explicação; inútil espera; inúteis sonhos... O tempo correu. A vida seguiu e ela teve que seguir adiante (guardando para sempre, no coração, as saudosas lembranças de uma grande paixão)...
Após a viagem imaginária no redemoinho do tempo, Valéria continua acariciando os cabelos de Sandra, dizendo:
- Vai passar Sandra. Eu juro amiga. Vai passar... Chora! Pode chorar! Chore que vai passar. Eu sei que vai passar...
As lágrimas de Sandra já diminuíram. Seu olhar enxerga a si mesma sobre a ponte Rio-Niterói. Seus cabelos balançam ao vento... São momentos de indecisão... As águas escuras formam ondas que dançam um tanto lentas... Seus pensamentos falam de fuga, de fim, de adeus, de talvez se...
No bar, ao fundo, a música segue rasgando a noite. O movimento segue incessante, e tantas outras peripécias sucedem-se no contínuo transitar do tempo...