ARBÍTRIO DO TEMPO
Tórrida tarde de domingo, o sol brilha de forma angustiante iluminando até mesmo os mais abstrusos cantos. O gorjeio dos pássaros soa mais alto que o normal, se destacando no vazio do cosmos. A brisa leve e fresca que percorre suavemente a pele resfria suor e lágrima que aos poucos escorrem acariciando o corpo de forma incômoda. As árvores sustentavam a regateira agitação de suas folhas diante as módicas aparições do vento, esse que exalava vida e cor pelo cenário palco de desolação e amargura a cada espetáculo. Isolado e acima de todos, conserva histórias, segredos e conhecimentos únicos que jamais serão ouvidos, sequer descobertos, pelo menos neste mundo. Apesar de vazio e sem uma forma de vida conhecida capaz de ouvir e retornar tudo o que está sendo proferido, Miriam despejava ali confissões e desabafos para seu eterno namorado, vedado precocemente na cripta da família Cosbi.
O cemitério havia se tornado refúgio para sua solidão. Encontrava ali a única forma de alentar a aflição que alojava seu peito, embora não amenizasse a dor que sentia ao se lembrar do rosto da pessoa que lhe fez sentir e atinar o significado do amor. Embora sem respostas, as horas de conversa com o espírito quimérico daquele com quem compartilhou momentos de amor e ódio eram construtivas. O medo que sentia um dia do desconhecido havia partido junto com a esperança de ser feliz novamente.
Estar a centímetros do corpo que proporcionou prazeres recíprocos e aos poucos perceber que jamais poderá lhe tocar novamente, atiçava o anseio de chorar e o aperto que feria seu peito toda vez que tentava compreender a situação. Ao olhar para os outros túmulos, observava as flores secas e artificias, colocadas na tentativa falha de burlar o tempo, que as desbotavam por capricho sem nenhuma piedade, assim como todas as imagens, lembranças e fotos. Jurava pra si mesma jamais abandonar o jazigo de seu amado, que apesar do tempo, continuava intacto, florido e cheio de vida.
Na tentativa de seguir, tentava se agarrar em memórias hostis para se desapegar daquele que no final da vida não fazia questão de lhe conceder atenção e felicidade. Apesar de não conseguir rematar a situação, por medo de ser ainda mais infeliz, Miriam não vivenciava momentos de satisfação, somente de amargura resultada pela nova personalidade do namorado. Não era mais o homem por quem havia se apaixonado, o gentleman atencioso, autor de belas declarações em simples mensagens cotidianas nada rotineiras havia se tornado um indivíduo seco, sem a necessidade de estar ou se mostrar presente. Se enfurecia ao lembrar dos motivos que lhe fez perder a imagem celestial que possuía daquele ser a quem lhe consignou alma e corpo.
As últimas lembranças que possuía ao lado daquela vida eram de decepção e desapego indeferido por seu coração. Apesar das diversas demonstrações por ausência de amor, não conseguia se imaginar longe e feliz, a imagem de “homem perfeito” era maior que seu orgulho e amor próprio. Havia sempre a esperança de que um dia tudo iria mudar, que os arrependimentos, as promessas de mudança e amor verdadeiro fossem veridicidade e as várias oportunidades dadas valeriam a pena. Mas não aconteceu, a cada erro Miriam se apegava mais, os pedidos de desculpas banhados por lágrimas e alegações de não conseguir seguir sem ela a comovia de forma intensa, capaz de fazer com que tentasse seguir novamente mesmo sofrendo com as reminiscências e ausência de confiança.
Mesmo aceitando ser vítima de um amor amargurado, se sentia culpada por tudo estar daquela forma. Quando as lembranças eram mais fortes que sua incapacidade de seguir sozinha, a necessidade de alguma satisfação a obrigava desabafar tudo o que entristecia seus pensamentos. Ignorante, não reconhecia o sofrimento, agia friamente a deixando de lado, obrigando Miriam implorar desculpas e prometer que tudo seria como antes - mas sem felicidade. Voltava com a desculpa de que com ele seria mais fácil se desapegar, já sabendo que o próximo erro poderia ser breve. Mas à medida que o tempo passava ela novamente se tornava refém do amor, se decepcionando como se fosse a primeira vez.
Mas tudo teve um fim, menos seu sofrimento. O medo de terminar e jamais voltar a ver aquela pessoa que tanto amou havia se tornado realidade, o destino tentou ajudar Miriam da forma mais drástica, mas não foi capaz de amenizar sua infelicidade, agora havia a prendido em lembranças.
Sentada sobre o chão, encostada no sepulcro, terminava seu discurso de desabafo, se irritava ao perceber que mesmo morto a resposta diante sua infelicidade era a mesma: o desprezo em silêncio. Em breves momentos de lucidez, percebia a inutilidade de tanto apego. Mas sua vida ainda se ligava as lembranças utópicas, a ruptura desse elo só seria possível com sua morte. Conformada com sua cruz, esperava o destino decidir o momento certo. Enquanto não chegava sua hora, continuava a fazer companhia a seu fardo agarrada a esperança de que seu espírito ficasse feliz com sua fiel companhia mesmo após 63 anos de sua partida.