As cartas nunca lidas (EC) - Republicação


 
Lá na Rua das Flores na casa 12 o jardim lateral era de um viço só. Poucas vezes passava-se ali sem direcionar um olhar que fosse. Praticamente impossível. Haviam tantas espécies cultivadas que garantia um florir anual como se quem houvesse planejado tivesse pensado cuidadosamente nas floradas ininterruptas. Era mesmo um encanto aos olhares. A cada temporada mudava de tom, mas sempre havia mudas florindo.
E o aroma? O que era aquilo? Passar, parar um pouquinho, aspirar, garantir um prosseguir com aquele aroma por muito. Por vezes fortemente adocicado noutras mais cítrico, nalgumas discreto amadeirar. Era o jardim mais conhecido da cidade. No entorno alguns prédios modernos, construções arrojadas erguidas. Na redondeza uma clínica que reunia estética, ortomolecular e variadas especialidades da medicina moderna, um gigantesco supermercado de rede conhecida e outras arquiteturas que conferiam a rua algo de extremamente moderno, futurista, quase cibernético/ ficcional. Bem ao meio diferindo absolutamente, a casa do jardim toda florida, no amplo janelão da frente às flores do vaso azul eram trocadas diariamente e cuidadosamente ornadas. Tudo com gosto primoroso. Lá no alpendre a cadeira de balanço era intacta, podia-se ver ao lado a mesinha colonial, a cesta de vime com novelos de linhas coloridas, alguns desgastados livros, ao entorno telas inacabadas estranhamente compunham em harmonia a cena: Os prédios modernos, a casa 12, o jardim, as flores, tudo parecia enquadrado. Era outra realidade.
            Respeitava-se a vontade do morador que não aceitara qualquer proposta de compra. E foram muitas e tentadoras. Afinal a cidade expandiu, tornou-se reduto de famílias emergentes, era um belo lugar. André resistiu e lá morou desde que seu pai Carlos partiu muito doente. Seu trabalho permitiu que fosse transferido, construiu uma clínica de recuperação de drogados nas proximidades e exercia sua profissão de médico renomado na área de psiquiatria. De lá não quisera mudar. Aos 50 anos separou-se, os filhos foram estudar fora, mas ele ficara. Algo o prendia a casa 12.
Seu avô pouco antes da morte revelara que seu tataravô Pedro, comprara aquela casa tão logo retornara a cidade vindo de longo tratamento de saúde e já aos 90 anos soube que a moradora anterior lá tinha vivido até bem pouco, falecera devido às doenças agravadas e muito abalado ficou ao saber que ela se chamava Claraluna que vivera solitária na casa 12 por um ano e meio quando foi encontrada na cadeira de balanço por um vizinho com um pequeno bilhete preso as mãos cujo destinatário não era mencionado, mas Pedro soube e nem precisaria, por isso envolveu-se na compra adquiriu o imóvel lá ficou até a partida.
André herdou do pai o bilhete que avalia como prova de um amor inabalável que resistiu através dos tempos. Clara ao falecer tinha 81 anos, exatamente 70 anos a separavam do ano em que conhecera Pedro. A opção de manter a casa do jeito que sempre fora atravessando séculos era para André a forma que encontrara de preservas os sentimentos por ambos ali vividos e que restavam impressos em cada vão, cada tábua de madeirado chão, cada antigo sofá cada tela na parede. Fora em épocas distintas, mas de intensidade muito igual. Lá houveram pensamentos impregnados de amor. Sonhos foram escritos construídos e desconstruídos. Feitos e desfeitos. Dores indescritíveis sentidas. Mas nunca o desistir do amar.
            Depois de Clara era Pedro quem se punha na janela, quem transitava com toda a dificuldade pelo jardim. Quem colhia flores e colocava no vaso da janela. Pouquíssimo falava. Silente. Os familiares achavam que falava apenas com o coração. Viveu seus últimos anos lá. No testamento pediu para ser enterrado junto ao corpo de Clara. As famílias acolheram o desejo. Lá fora feita a união impossível em vida. Pediu também pela manutenção da casa 12 e deixou ao filho Carlos também um bilhete. André é hoje o guardião das mais importantes relíquias desta história. Guarda também a casa 12, seu jardim, as telas os livros e toda memória de uma curiosa e impossível história de amor. Repleta de desencontros, mas inteiramente possível no coração na mente de cada um dos enamorados. Porque é o que foram um para o outro apenas, eternos enamorados.
            Neste caso o tempo não corrompeu apenas fortaleceu laços invisíveis impressos de ternura, corações que esperam infinitamente. O amor tem disso.
 

 
 De Claraluna:
 
         “Não sei se acaso lerás estas linhas, mas quem as ler estará de certo lendo meu coração. O tempo, esse que tudo apascenta, se aparta para mim, sei, estou à beira do rio e logo meu barco passará e me conduzirá.
         Nada levarei desta vez que não o meu sentir e pensar.
         Essa será das viagens a que vou com mais fluidez, não há malas, sacolas, sequer sonhos. Como só o intenso do amar.
         Sou feliz aqui, pois vivi os melhores e mais libertos dias sem apartar-me de ti. Não te vi passar infelizmente a minha janela. Quis o destino assim. Mas desde há quase um século transitas na janela dos meus sonhos de infância dos planos secretos da moça que fui e hoje é a melhor imagem que viva em mim está.
         Irás comigo e junto o teu olhar, sorriso de menino que conheci. Não sei do homem que te tornaste, nada de ti sei, mas apostei com meu memorar que se passasses na minha janela te reconheceria. Não passaste, portanto não perdi a aposta. A vida conduz as pedras do jogo. Agora sou eu quem tem de ir, mas o que há de ti em mim é o que me resta perfeito o que moveu meus sonhos senis e agora comigo irão.
         Não sei se saberás de mim. Mas eu te saberei por toda a eternidade,
 Tua,
Clara.”


 
 
 
De Pedro:
(sem destinatário nominado)
 
        “A um passo do fim dos dias, sinto-me dividido entre o alegre e o triste, a iminência da partida é engraçada, rouba-me a razoabilidade ao mesmo tempo em que confere mais leveza para esses últimos dias aqui. Quis à Clara escrever. Seria afinal a última das inúmeras cartas que dedilhei sem levar a termo à destinação, o irônico destino me faria mais uma vez não saber onde entregar esta.
        Ah esse destino, pregou-me tantas peças, levou minha vida por caminhos inesperados, e sequer pude ver de minha Clara a partida e dela perdi-me em materialidade pelo que se pode chamar de infinitamente. Habituei-me a reserva dos sentimentos e nos últimos tempos optei por não falar, assim preservava comigo aquilo que recuperei de tudo que nem tive.
        Na indubitável certeza da partida e na suspeita do não reencontrar resta salvaguardar as memórias, e permanentemente ao teu lado poder estar.
        Ressalvo aqui que fui apanhado de surpresa com tua partida, por longo tempo esperei, e a vida urgiu que desse a ela outros rumos, mas te arquivei em definitivo no rol das melhores lembranças e teu esplendoroso sorriso acompanhou-me a cada dia dessa minha passagem. Não houve um só deles que não me flagrasse imaginando teu rosto de menina, com ares juvenis, e confesso também que a moça que não conheci povoou meus sonhos e desejos da juventude. Foi assim pela vida toda.
        De coração revelo ao Carlos, meu filho que mais comigo se assemelha que fui sim um homem feliz, agraciado pela candura da mulher que desposei e pelos maravilhosos filhos que nossa união proporcionou-nos. Mas, incontestavelmente alguns sentimentos só se vive uma vez, e perpetuei o meu sentir por Clara que irá comigo para todo sempre.
        Os detalhes do meu sonho restante logo serão sabidos, mas asseguro que é possível e pleno de ser realizado. É só o que o mundo material pode proporcionar a nós dois. No mais nossos corações já nos presentearam com amores inabaláveis. Estes sim nos mantiveram vivos, e foram a razão das nossas melhores alegrias. Ainda que silentes impossíveis e distantes.
Afetuosamente,
 
Pedro

 






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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Cartas de Amor
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Roseane Namastê
Enviado por Roseane Namastê em 25/11/2013
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