As descobertas

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Oi, meu amor! Bom dia!

Nossa! Eu escrevi ‘meu amor!’. Meus pais não sabem, ou se recusam perceber, mas cresci. Será que cresci mesmo... Será? Hoje, depois da noite que tivemos, sinto que nunca mais verei o mundo com o mesmo olhar. Nem as mulheres! Perdão pela timidez – nem sei como tive coragem de pedir aquele beijo, o meu primeiro, mas a troca de línguas que tivemos me fez perceber que duas bocas pensam melhor que uma! Nossos lábios trocaram confidências que ficarão gravadas nas ranhuras dos meus sonhos.

Fazia tempo que te observava. Desde que nos vimos pela primeira vez – nem sei se foi no mesmo instante, acho que vi você antes que me percebesse – fui engolido pelo prazer da descoberta. Você só me observou de verdade no dia em que eu, enquanto olhava você passar, bati com a cabeça no poste e machuquei minha testa, não foi? Pode ser sincera. Achei maravilhoso quando me olhou, sorriu de mim, mas perguntou se estava tudo bem. Sua preocupação serviu como anestésico. Tudo que consegui sentir na hora foi meu coração palpitando de alegria. Os corações pulsam e palpitam – e o meu, apesar de timidamente, palpitou pela primeira vez naquele dia, no dia em que você, finalmente, percebeu que eu, o menino atabalhoado que bate a cabeça em postes, existia. Obrigado!

Foi bom descobrir que morávamos no mesmo bairro e rua. Gosto de números e verifiquei que entre as nossas casas existem aproximadamente 1.024 passos, medidos na sua passada! Quando você sai atrasada para o colégio, passa em frente ao portão da minha casa com menos de mil passadas... Tem dias, adoro quando ocorre isso, que você vem desfilando, bem devagar, e dá 1.040 passos. Parece que chama os olhares – não observo as outras casas, mas, certamente, o tempo para e espera por você. Desculpe minha ousadia, mas teve uma vez que o seu vestido branco estampado, com flores rosas, vermelhas e violetas, subiu ao sabor de leve brisa. Foi repentino, mas pude ver os seus joelhos! Você enrubesceu, olhou para os lados, buscando testemunhas... Quase que grito, alto e bom tom: ‘Ei, princesa, eu vi tudo!’ Fui covarde ao silenciar, sei que fui. Você me perdoaria? Deveria ter gritado e revelado que era testemunha.

Quem seria essa menina a quem – até – o vento obedece e se curva? Uma deusa! Não, o artigo indefinido deixa o constrangimento da dúvida. Dentro de mim, ingenuamente, o que brotava era a certeza de que Deus, em Sua infinita benevolência, estava me revelando a minha deusa, a menina, potencialmente mulher, a quem amaria por toda a vida. A cena, recorrente dentro da simplicidade da minha imaginação adolescente, era meiga, leve e mágica: você, o vestido, a brisa, suas mãos apressadas, tentando esconder o intocável paraíso delirante... Homem é bobo demais, não é? Eu falei homem? Devo rir de mim mesmo, desse assustado e noviço menino que brinca de ser adulto.

Depois que calculei o tempo que você leva até passar pela minha casa e o número de passos que dá antes de cruzar o portão verde e desgastado da residência onde moro, fiquei, por vários dias consecutivos, maquinando, contando o andamento, imaginando cada um dos seus passos e ensaiando o exato momento de esbarrar em você e dar bom dia... Nunca tive coragem de executar tal emboscada. Covardia? O amor nos faria covardes? Não acredito nessa possibilidade. Prefiro acreditar no medo que o desconhecido nos revela. Quando imaginava sua reação, depois do cumprimento, não enxergava nada além disso – sentia que meus lábios seriam incapazes de pronunciar qualquer palavra além das planejadas. Imaginar que nosso diálogo findaria num ‘bom dia’ tinha o sabor de observar você partindo, sem olhar para trás, sem se sentir presa a nada, sem sentir saudade. Os infantes sofrem demasiadamente e desconhecem o poder do silêncio e a magia existente no olhar. Meus olhos falariam por mim – eu não sabia disso.

Por que nos esbarramos ontem na quermesse e nos individualizamos diante do turbilhão de apressados anônimos? A vida é engraçada e nos prega cada peça! Viver seria interpretar? Se for, o papel de apaixonado não permite ensaios. Ontem, juro que não planejei nada. Quando saí com o algodão doce, feliz da vida, e você bateu a cabeça na minha, tirando-me o algodão das mãos, fiquei paralisado. Teria o amor esse condão paralisante? Se os outros sentem isso eu não sei, mas que as fibrilações do meu coração, ao contrário de significarem iminência de morte, revelaram-me o prazer da vida, asseguro. Enquanto a guloseima infantil me caía das mãos, erguia-se o homem, digno de orgulho, tamanha a ousadia do espanto. Tive o doce ceifado das mãos e, no entanto, estava feliz e sorridente.

‘Pelo menos fiquei com o doce nas mãos, não foi?’ – Lembra quando disse isso, sorrindo? Suas feições, demonstrando preocupação, e seu sorriso foram tão afetuosos que me esqueci da pancada na cabeça. Duas cabeçadas e dois encontros... Não mangue de mim, tá, mas queria que me visse agora, encabulado, com a face vermelha de vergonha.

Fui ousado, apressado? Sei que batemos as cabeças, mas foi um contato inofensivo – não daria para desparafusar nenhuma lucidez! Onde, meu Deus, busquei tamanha coragem para pegar você pelo braço, levar você para um lugar reservado, distante de curiosos olhares; perguntar se estava bem e começar a falar, sem parar? Poxa! Em minutos eu falei tudo: que sabia onde você morava, quantos passos havia entre nossas casas, das ‘emboscadas’ nunca levadas a termo, dos sonhos que me povoavam as noites e dos medos que me atormentavam.

Ficaria a noite inteira falando se você não tivesse me interrompido. Posso confessar outro segredo? Sua voz me deixou frente a frente com a felicidade. Eu nunca imaginei que ouviria de você o que me foi dito. Quando me revelou que também me observava; que, apesar de nunca ter contado os passos, também sabia onde eu morava e sentia minha presença todas as vezes que passava, não olhando para o lado onde eu poderia estar por causa da timidez, meus olhos brilharam! Então já nos buscávamos no silêncio da timidez? Éramos cúmplices e não sabíamos? Talvez meu coração se acelerasse e pulsasse da forma que pulsava, não por ele, unicamente. Creio que nossos relógios corporais do amor, assim como nossos pensamentos, interligavam-se na harmonia do consentimento. Amar é comunhão, é sede de campos energizados pela fluidez da busca. Nossos olhares não se tocavam, pois não se prolongam no espaço diminuto da ortogonalidade... Mas você passava e levava consigo todos os meus sonhos de felicidade.

Inconscientemente, flagrei-me, enquanto escrevo esta carta, percorrendo, com a língua, a geografia da minha própria boca. Meu corpo parece incompleto, sentindo a falta do seu. As confidências gravadas nas ranhuras dos meus sonhos cresceram. Hoje, sinto que as raízes plantadas germinaram e darão frutos; entendo que os sonhos, agora que deixaram de ser apenas meus, mas são e estão em nós, merecem o toque da realidade e a vida, como ciclo, precisa reproduzir sonhos, criando novos sonhadores.

Ainda não lavei meu corpo depois que tive o deleite de abraçar você. Nem a roupa eu tirei! Meus braços doem – será que dormi me abraçando, fantasiando que era você? Estou cheirando minha camisa e o seu cheiro me inebria. Passaria a vida inteira assim, sonhando e revivendo cada segundo da noite que tivemos, mas não posso demorar. O dia amanheceu e, pelo horário, você já deve estar se aprontando para sair. Será que hoje, sabendo que estarei na calçada esperando você passar, virá apressadamente, ou quer surgir mansa, encantadora, desfilando e sentindo cada fio da meiguice que meus olhos lançarão até ficarmos novamente olho no olho, um sentindo a respiração ofegante do outro; quero que hoje meu coração pulse no mesmo ritmo do seu – e bem forte!

Nossas vidas, enxertadas pelo amor que aflora, precisam da descoberta. Com você descobri o sabor do beijo. Por você, a primeira palpitação do homem que nasceu em mim... E com você, sem pressa, quero me descobrir e desvendar as belezas da vida e os encantos de estar a dois.

Hoje, quando encontrar você na calçada, e falta pouco tempo, quero te ofertar, além da singela lembrança desta carta que faço, a mais linda flor do jardim cultivado pela minha mãe, a única mulher que amei antes de você. Sinto que haverá transferência de amores, pois o sentimento pueril da criança que fui precisa dar espaço para que o amor de homem prevaleça.

Iguatu-CE, 14 de novembro de 2013.

15h26min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 14/11/2013
Reeditado em 26/11/2013
Código do texto: T4570755
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