PRA SEMPRE

Atendo o telefone.

_Alô?

_Rodrigo? E aí, tudo bem?

_Fala, Leandro! Tudo certo. E aí?

_Então, cara. Falei com a Clara.

Ele havia me dito ontem que falaria com a Clara. Que precisava dar um jeito naquela situação. Como estava não podia mais ficar. Já havia perdido muito tempo na vida, um dia a mais que fosse só seria mais desperdício ainda. Eu, que sei de toda a história, ou da história dos dois, só pude concordar. Ainda mais depois de tudo que aconteceu nos últimos meses.

Leandro e Clara foram da mesma turma desde a sexta série, quando ele ganhou meia-bolsa para estudar no único colégio particular da nossa cidade naquela época – um agrado da direção para te-lo no time de futsal da escola. Ele se sentou ao lado dela no primeiro dia de aula, se apresentaram, começaram a conversar, e a partir de então passaram a viver sempre juntos, estavam sempre no mesmo grupo para os trabalhos, e quando era permitido fazer prova em dupla, todo mundo sabia que ninguém faria par com eles - a não eles próprios. Todos os dias ele a acompanhava até a sua casa depois das aulas, e não era raro poucas horas depois se encontrarem novamente, com a intenção – nem sempre estritamente necessária – de estudar na biblioteca.

O tempo foi passando e aquela amizade acabou se tornando namoro. Foi nessa época que nos conhecemos, quando ele entrou como boy do escritório em que eu trabalhava – e trabalho até hoje. Leandro era um garoto prestativo, responsável e inteligente. Logo ficamos amigos e passamos a freqüentar as mesmas festas nos fins de semana, e assim acabei conhecendo também a Clara. Os dois tinham grandes projetos juntos. A intenção era entrar pra universidade, ele queria fazer Educação Física, ela era apaixonada por literatura e sonhava com Letras. Depois de formados, casariam. E incluíam dois filhos em seus planos – se fosse um casalzinho, melhor.

Um dia, porém, discutiram por uma coisa a toa. No baile de formatura do Josué, pro espanto de todo mundo, ele apareceu sozinho. Estava visivelmente chateado. Lá nas altas horas da madrugada, depois de ter tomado todas, saiu agarrado com a Telma, irmã do Josué. Até aí, tudo bem, ficou por isso mesmo. Ele acabou se entendendo novamente com a Clara, o que todos sabíamos que iria acontecer mais certo ou mais tarde, eram apaixonadíssimos um pelo outro. Mas o que não soubemos – porque o Leandro não contou pra ninguém – e que viemos a saber depois, junto com a cidade inteira, é que a Telma tinha ficado grávida naquela noite. Aí então o mundo desabou sobre a sua cabeça. Seo Agenor, seu pai, um homem muito religioso e austero, impôs que ele assumisse a paternidade e que se casasse com a futura mãe de seu filho. Clara também não o perdoou, e sabendo daquela exigência do seo Agenor, resolveu sair de cena, abandonou a casa dos pais e foi para o sul morar com a irmã. Desesperado, a contra gosto, mas sem alternativa, Leandro se casou. E seu filho Lucas nasceu seis meses depois.

Com essa reviravolta toda em sua vida, ele sumiu do nosso meio. Nunca mais saiu com a turma, deixou de jogar bola, arrumou outro emprego pra ganhar um pouco mais – agora era necessário tratar de sua família – mas, por conta disso, abandonou os estudos – os “planos” agora eram outros. Passei a vê-lo somente por insistência minha, que sempre arrumava um jeito de dar um pulo lá na sua nova casa – uma casinha popular que conseguiu alugar de um parente da Telma. Ele não dizia nada, jamais se queixou ou falou qualquer coisa a esse respeito, mas eu via em seus olhos todo o arrependimento que o consumia. E só o tempo conseguiu amenizar a sua amargura.

Às vezes ficávamos sabendo que a Clara estava na cidade visitando os pais, mas eles nem uma vez sequer voltaram a se ver. Também soubemos que ela tinha começado a trabalhar na firma do seu cunhado lá no sul, e que estava namorando o filho do sócio da firma, com o qual, passados alguns anos, veio a se casar. Ainda lembro do olhar perdido de Leandro logo depois de receber essa notícia, num sábado em que víamos um jogo na TV lá em casa, o Lucas brincando de bola com meus sobrinhos no quintal. Ficou evidente que Clara ainda vivia em seu coração.

E o tempo foi passando, com a gente tocando a vida do jeito que dava. Acabei me casando também, tive uma filha, e era rotina nos reunirmos para um almoço ou um churrasco aos domingos; eu, Leandro e nossas famílias. Apesar de nunca ter existido aquele amor entre eles, a Telma acabou sendo uma boa companheira. E acredito que seria assim que viveríamos até o fim dos nossos dias, se não fosse pelo que acabou acontecendo depois.

Um belo dia soubemos que a irmã e o cunhado da Clara estavam de volta à cidade. O sócio de seu marido naquela firma do sul dera-lhes um grande calote, sumindo no mundo com uma bela bolada. Eles se viram obrigados a falir, mas foram ameaçados de morte pelos antigos empregados e, por via das dúvidas, resolveram se mudar. Nesse meio tempo, o casamento de Clara ficou seriamente abalado – também, pudera: o próprio sogro dando golpe na sua irmã... Depois viemos a saber que sua relação de fato nunca tinha sido lá essas coisas. O marido jamais permitiu que Clara estudasse ou trabalhasse, e não pude imaginar como ela conseguiu viver assim sendo a pessoa tão dinâmica que era antes. Também não tiveram filhos – parece que o cara era estéril. Bom, o que interessa é que, nem um mês depois, veio a Clara também, de mala e cuia, dizendo que daria um fim em seu casamento. E então, passados quase vinte anos, ao ver o caminho livre de novo, despertou-se no peito do meu velho amigo aquela antiga paixão adormecida. Confesso que não me surpreendi com a atitude condescendente da Telma diante do pedido de separação, pois ela sempre soube que tudo havia ficado muito mal resolvido depois da sua gravidez inesperada. E mesmo que nunca tivesse sentido algo mais profundo e verdadeiro pelo pai de seu filho, também não tinha porquê, naquela altura da vida, não deixa-lo tentar ser feliz ao lado de quem ele realmente jamais havia deixado de amar.

_E ela? Perguntei.

_No começo ficou nervosa, disse que eu não devia ter me separado. Não queria que eu desfizesse a minha vida por causa dela. Aí eu me abri de verdade. Falei tudo que ficou engasgado aqui na garganta todos esses anos. Rasguei o verbo. Ela começou a chorar e me abraçou, choramos um monte juntos, nem sei por quanto tempo. No final ela me pediu um tempo pra resolver os problemas, o marido dela não quer largar, o divórcio vai pro litigioso.

Ele deu uma pausa. Enfim, concluiu:

_Mas acho que a gente vai se acertar...

Pude imaginar o brilho que deveria estar irradiando dos olhos dele naquele momento.

_Pô, Leandrão, tomara. Vocês merecem, depois de todo esse tempo...

Vinte anos. “Uma vida”, pensei comigo.

_É, foi muito tempo. Mas dessa vez eu não vou deixar passar. Resolvi que vou ficar com ela, e nada nesse mundo vai impedir isso acontecer. A Clara sempre foi a mulher da minha vida, cara. Desde menino eu sabia que era com ela que eu queria viver, pra sempre...

Senti a voz dele embargada. Então me calei, comovido. Afinal, o que são vinte anos diante de “pra sempre”?