SOMBRIA
O cheiro dele lembrava o café coado nas primeiras horas da manhã, quando a noite ainda resistia a abandonar seu posto e entregar ao dia o destino dos homens. Ela acreditou que as sombras se dissipariam no calor que se espalhava pelo ar e pela casa toda. Achou que sua noite havia terminado e que mesmo sem ter dormido o muito que precisava seria capaz de fazer frente aos apelos da vida; queria e precisava viver! Olhou para ele com o canto dos olhos, ainda impressionada com seu tamanho e gravidade. Tudo nele era tão denso!
Sabiam quase nada um do outro e, ainda assim, era como se o conhecesse desde sempre. A voz soava familiar, o riso raro provocava lembranças de um tempo inexistente, que nunca tinha de fato vivido, mas parecia real, presente em sua vida feito as dores e as alegrias que andavam por aí. O amor parecia ter vindo afinal ao seu encontro. Desejou-o como terra quer chuva, como o fogo que precisa ser contido antes que incendeie tudo e ao mesmo tempo mantido para que não se apague. Amar assim é uma bênção e uma maldição, ela pensou. O peito doía; cerrou os dentes e deu-se conta de que um fio de sangue escorreu manchando a camisola rosa e delicada. A ironia do momento a surpreendeu: nunca se viu rosa nem delicada e ali estava entregue a sentimentos que pareciam cravar-lhe o coração com farpas finas, rasgando suas certezas. Ergueu-se rápida, esfregou os olhos. Dias difíceis tinham passado, dias difíceis ainda viriam e a vida, ela sabia bem, podia ser de todo jeito, podia surpreender a cada momento. Já tinha pensado em si mesma como incapaz de ser feliz, mas a ideia lhe pareceu tentadora. O cheiro dele lembrava o café forte e generoso; imaginou-se rodando a caneca nas mãos, aquecendo-se e enchendo-se de coragem para um novo dia.
Então percebeu que essas eram as suas dúvidas e as suas certezas. Mesmo com a impressão de conhecê-lo desde sempre, não sabia nada sobre ele. A familiaridade pressentida podia ser a cria doce do seu desejo de amar e ser amada; podia não ser mais que a intenção de ser feliz. Os olhos se encheram de lágrimas e uma sensação de desamparo jamais vivida a cobriu como a noite sem fim.
Raquel Domingues Pires – 31/10/2013.