Debaixo de sete chaves

A fumaça dificultava muito a identificação do caminho a ser seguido. Os corredores da escola nunca pareceram tão confusos quanto agora. Lara não sabia ao certo se as sombras que atravancavam o caminho eram de corpos, carteiras ou pessoas fugindo. Ela andava o mais rápido que podia, procurando pelo laboratório de química. Sabia que essa seria sua única salvação. Atrás de si, deixava um rastro de sangue proveniente do corpo inerte de sua melhor amiga, Andressa.

Começou a ficar zonza devido à fumaça e ela perdia aos poucos o controle sobre seus movimentos. Depois do que pareceram horas correndo por intermináveis corredores cinzentos, ao som de gritos de horror e vidros quebrados, finalmente chegara ao laboratório de química. Por sorte; ou destino, a epidemia não parecia ter chego até lá, ainda. A porta estava fechada e não apresentava marcas de sangue. Tateou nos bolsos à procura do molho de chaves que pegara – roubar parecia uma palavra errônea nesse contexto, visto que o zelador não estava mais em faculdades mentais plenas para notar o sumiço das chaves – na zeladoria e abriu a sala.

Arrastou o corpo da amiga para dentro da sala e trancou-a. Com os bancos, fez uma barreira diante da porta e das janelas para impedir que as criaturas entrassem. Somente depois de certificar-se de que todas as entradas estavam bloqueadas, pode preocupar-se com Andressa.

Seu corpo mal permitia sua identificação. Logo abaixo do pescoço, uma mordida causara um rombo em seu peito, por onde o sangue havia jorrado aos montes. Seu rosto possuía inúmeros arranhões e hematomas, sinal de que ela ao menos lutara por sua vida. O resto do corpo, apesar de não apresentar mordidas ou arranhões, estava de tal maneira banhado em sangue que por si só causaria repulsa em qualquer telespectador.

Lara tivera de controlar-se para não vomitar inúmeras vezes. Controlar o enjoo era fácil; difícil era conter a angústia. Ver sua melhor amiga estraçalhada não era o seu plano para uma sexta-feira. As lágrimas escorreram por seu rosto, deixando duas linhas retas em contraste à poeira em suas bochechas. Seu choro, entretanto, foi interrompido por gemidos e engasgos vindos de Andressa. Por um segundo de embriaguez, Lara acreditou que ela ainda estava viva. Que por trás de todo aquele sangue, o coração de sua amiga ainda batia e que ela veria seus olhos verdes e brilhantes de novo.

Mas a esperança foi arrancada de sua mente no momento em que Andressa sentou-se no chão da sala e seus olhos eram completamente brancos e sem vida. Da boca saía um melancólico assovio gutural que quebrava o silêncio e causava arrepios.

Lara precisou de alguns segundos para recuperar-se do choque e só conseguiu se movimentar depois da amiga fazê-lo. Foi engatinhando para trás, com os olhos vidrados na coisa que costumava ser Andressa, e a boca aberta num grito que nunca foi externado. A criatura, que antes movia-se vagarosamente de quatro, de repente posta-se em pé e começa a dar passos significativamente mais velozes que o engatinhar de costas de Lara.

A garota, num sobressalto, salta para trás e ouve um forte baque seguido por um vidro estilhaçado e uma dor de cabeça infernal. Sua cabeça chocou-se contra o armário e um erlenmeyer espatifou-se no chão ao seu lado. O assovio do zumbi se intensificava cada vez mais e as gotas de sangue que pingavam do seu peito foram traçando uma linha cada vez mais próxima de Lara, até mancharem seus tênis brancos. A garota agarrou um caco de vidro e com um grito, levantou-se e empurrou a criatura pela cintura, derrubando-a ao chão. O zumbi deu um grito insatisfeito e tentava a todo custo agarrar os cabelos de Lara e morder seu rosto. Vendo não conseguir conter o zumbi, a menina enterrou o caco de vidro em sua barriga. Um guincho – de dor? – preencheu a sala. Lara sabia que tinha que agir rapidamente, pois aquele golpe não mataria Andressa.

Andressa, Andressa. Ela não podia matá-la. Lembrou-se de todos os anos que passaram juntas, da risada da amiga. Prometera nunca a abandonar e não o faria. Nem no apocalipse. Olhou em volta à procura de algo para contê-la. No canto mais escuro da sala, tinha um aquário com os ratos que utilizariam para os experimentos das próximas aulas. Para prender a tampa, uma corrente com um cadeado destrancado. Aquilo teria de servir.

Correu buscar a corrente, enquanto a criatura se contorcia no chão, tentando levantar-se. A garota aproximou-se cautelosamente dela, enquanto o zumbi se ajoelhava e a fitava ameaçadoramente. Dando a volta por trás, conseguiu prender a corrente com o cadeado em volta do seu pescoço. A criatura agarrou sua perna e tentou mordê-la, mas dando um forte puxão na corrente, Lara conseguiu fazê-la desestabilizar-se e cair.

Ao longo de três dias, Lara conviveu com a amiga, agora zumbi, dando-lhe os ratos como alimento e para si mesma, as barras de cereal que possuía na bolsa. O barulho no resto da escola parecia ter silenciado. Provavelmente, todos os humanos já haviam sido devorados e agora os zumbis dominavam o local. Como precaução, Lara havia limpado o rastro de sangue que levava até a sala, para não atraí-los. Funcionara, pois pelo vidro da porta ela vira inúmeras vezes zumbis apenas passando por elas. Eles não tentavam invadir.

Finalmente ela decidira que era hora de partir. Afastando um banco e a cortina, olhou pela janela. Por um instante, achou que estava nevando. Mas seu cérebro buscou uma alternativa mais racional. Eram cinzas. Ao longe, os prédios queimavam e lançavam suas chamas dançantes pelos céus afora. Lara pegou uma máscara de gás do armário, vestiu-a e desfez a montanha de bancos em frente à porta.

Já na rua, segurando a corrente com a melhor amiga presa, olhar para o céu era muito diferente agora. Era fim de tarde e o sol penetrava com muita dificuldade a barreira de poeira. Pelas calçadas, corpos estraçalhados. Lara caminhou por um tempo, até encontrar um pequeno prédio. Subiu pela escada de incêndio. Lá de cima, o sol era visível. Até mesmo algumas nuvens eram perceptíveis. Achou ter ouvido um pássaro, mas provavelmente era sua imaginação. Esse tipo de som não era comum na terra apocalíptica. Depois de passar três dias trancada dentro do laboratório, ver os raios dourados pousando sobre as pontas dos edifícios era algo realmente lindo. Ela não sabia como sobreviveria aos próximos dias. Ela não sabia se sobreviveria. Mas Lara sorriu ao olhar pro lado e ver que não estava sozinha. Andressa estava com ela.

Carol Santucci
Enviado por Carol Santucci em 01/11/2013
Reeditado em 01/11/2013
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