Chovia…- Versão longa

Não nos avisaram que o mundo estava a acabar, simplesmente começámo-nos a aperceber de tal através de sinais que eram estranhos, mas que lentamente fomos inserindo nas nossas rotinas diárias, não o confessando a não ser a nós próprios, mas tendo a convicção crescente de que o fim se aproximava.

Apesar de toda a gente saber que o fim estava próximo, todos se mantiveram serenos, a ordem da sociedade não foi abalada e tudo continuou a funcionar quase até ao fim…

Não sabíamos a data precisa, sabíamos apenas que tal iria acontecer em breve…Quando o silêncio se apoderou da noite da minha cidade eu sabia que algo de estranho se passava.

Antes de tudo começar a acontecer o som dos carros que não paravam de circular vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, o som das pessoas que não paravam de viver ouvia-se, sentia-se no ar, mas a partir de determinada altura mal a noite caia todos se recolhiam em casa e o único sinal da vida estava na luz da própria cidade, que continuava luminosa, mas agora com uma luz fria, impessoal, sem qualquer tipo de marca humana.

Desde garoto que me habituara a viver um pouco à noite, que me habituei aos sons da noite, e por isso achei algo sobrenatural o tal manto de silêncio que cobriu também a natureza, pois esta deixou de se manifestar durante as trevas, só voltando a dar sinais aos primeiros raios da madrugada.

Mais ou menos na altura em que me habituara ao silêncio pleno da escuridão esse mesmo silêncio passou para o dia. Tudo se manteve, as rotinas, a ordem social simplesmente as pessoas deixaram de falar umas com as outras, agindo como fantasmas que se olhavam como fantasmas, sem qualquer tipo de expressividade, mergulhadas num conformismo que não as levou a contrariar esse fim, aceitando tal com alguma naturalidade, mas em silêncio, num luto antecipado por esse fim.

Mas se existe algo que caracteriza a espécie humana esse algo é a comunicação e a sua necessidade de socialização, sendo por causa destes dois factores que os humanos sempre foram algo barulhentos, infinitos sons que eram também próprios de povos e culturas mais reservadas.

Bastava apenas que existissem dois humanos para esses sons aparecerem, sons que eram proporcionais ao tamanho dos nossos ajuntamentos, sons que mais tarde foram acompanhados pelos sons das nossas realizações, sons mecânicos, eléctricos, electrónicos, sons infinitos que tinham pura e simplesmente tinham deixado de se ouvirem…Apenas as nossas realizações continuavam a emitir ruído, pelo que a sensação de se estar nas cidades era semelhante àquela que se tinha numa fábrica, onde apenas as máquinas se faziam ouvir, se faziam sentir…

E foi então que depois do silêncio veio a chuva.

Começou a chover dias a fio, sem parar, até este momento, o momento em que tento falar contigo. Primeiro suave e quente, como uma chuva de primavera, depois, num crescendo e fria, como a chuva fria do inverno, foi-se adensando de tal maneira que o céu ficou para sempre escuro e a quantidade de água que caia era de tal ordem que a partir de determinada altura foi impossível sair à rua, sendo que cada pessoa iria passar os últimos momentos com quem estava antes da chuva começar a cair e, porventura, as impedir de passarem esse fim com quem realmente gostavam de partilhar os seus derradeiros momentos.

E assim aqui me encontro eu contigo.

E o mais estanho é seres a pessoa com quem eu quero e ao mesmo tempo não quero de todo passar este tempo.

Não queria antes de ficarmos encurralados, desejo tal agora.

Não queria porque vivemos, sentimos, demasiado os dois, com tal intensidade que de repente de desejada, a nossa companhia passou a ser detestada de tal ordem que apesar do afecto que nos ligava, a sua intensidade acabou por nos separar.

Queria-te dizer isto bem olhos nos olhos, na profundidade dos teus belos olhos ouvindo em retorno a tua bela voz grave a dizer “continua” quando a emoção me tolhesse as palavras de afecto que devem ser ditas, que já deviam ter sido ditas antes, mas que foram ou adiadas ou evitadas porque nunca sentira a necessidade de o verbalizar…Mas não vais dizer, nunca vais dizer nem me ouvir, porque estás adormecida a meu lado, porque adormeceste mal a chuva aumentou a sua intensidade, na tentativa de te protegeres do que está prestes a acontecer, e eu digo isto quase em silêncio para não te acordar, para que não sintas o fim quando ele chegar…

Apaixonei-me pela tua enorme sensibilidade, pela tua dureza terna, pelo brilho do teu olhar que é dos mais belos que conheci.

Depois foi o que nós sabemos: uma vida a dois levada até ao limite, o limite que acabou por determinar a impossibilidade de dois serem apenas um, porque nos esquecêramos que quem se ama nunca deve tocar no limite, no seu limite, porque ao fazer tal ou se reforçam ou se desfazem os laços criados, e nós pela vontade de os querermos tornar perenes acabámos por tudo destruir…

Amo-te…nunca o disse desta forma tão clara, amo-te até ao limite, até para lá de qualquer tipo de limites…Amo-te mais do amei qualquer outro ser em qualquer outra altura, amo-te de uma maneira avassaladoramente bela neste momento, mas amo-te sem esperança de mais, porque os nossos actos e o tempo determinaram o nosso fim, mas se calhar nada disto está correcto e amo-te apenas assim se calhar porque os deuses acharam que era bonito eu amar-te…

A chuva aumentou de repente de tal ordem que não me consigo ouvir nem a falar nem a pensar, nada sinto, nem me sinto a mim próprio, sinto apenas a mão que te coloquei suavemente sobre a cabeça, a última coisa que sentirei…

E nestes últimos segundos agradeço aos deuses pelo único dom que me deram: pelo dom de te amar até ao meu ultimo instante…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 28/10/2013
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