Chovia…

Não nos avisaram que o mundo estava a acabar, simplesmente começámo-nos a aperceber de tal através de sinais que eram estranhos, mas que lentamente fomos inserindo nas nossas rotinas diárias, não o confessando a não ser a nós próprios, mas tendo a convicção crescente de que o fim se aproximava.

Não sabíamos a data precisa, sabíamos apenas que tal iria acontecer em breve…

Quando o silêncio se apoderou da noite da minha cidade eu sabia que algo de estranho se passava.

Antes de tudo acontecer o som dos carros que não paravam de circular, o som das pessoas que não paravam de viver ouvia-se, sentia-se no ar, mas a partir de determinada altura mal a noite caia todos se recolhiam em casa e o único sinal da vida estava na luz da própria cidade, que continuava luminosa, mas agora com uma luz fria, impessoal, sem qualquer tipo de marca humana.

Depois esse silêncio passou para o dia, e apesar das pessoas continuarem com as suas rotinas pura e simplesmente deixaram de falar umas com as outras, agindo como fantasmas que se olhavam como fantasmas, sem qualquer tipo de expressividade, mergulhadas num conformismo que não as levou a contrariar esse fim, aceitando tal com alguma naturalidade, mas em silêncio, num luto antecipado por esse fim.

E depois começou a chover, dias a fio, até este momento, o momento em que tento falar contigo.

Primeiro suave, como uma chuva de primavera, depois, num crescendo, foi-se adensando de tal maneira que o céu ficou para sempre escuro e a quantidade de água que caia era de tal ordem que era impossível sair à rua, sendo que cada pessoa iria passar os últimos momentos com quem estava antes da chuva começar a cair e, porventura, as impedir de passarem esse fim com quem realmente gostavam de partilhar o seu derradeiro exalar.

E o mais estanho é seres a pessoa com quem eu quero e não quero de todo passar este tempo.

Não queria antes de ficarmos encurralados, desejo tal agora.

Não queria porque vivemos, sentimos, demasiado os dois, com tal intensidade que de repente de desejada, a nossa companhia passou a ser detestada de tal ordem que apesar do afecto que nos ligava, a sua intensidade acabou por nos separar.

Queria-te dizer isto bem olhos nos olhos, na profundidade dos teus belos olhos ouvindo em retorno a tua bela voz grave a dizer “continua” quando a emoção me tolhesse as palavras de afecto que devem ser ditas…Mas não vais dizer, nunca vais dizer nem me ouvir, porque estás adormecida a meu lado e eu digo isto quase em silêncio para não te acordar, para que não sintas o fim quando ele chegar…

Apaixonei-me pela tua enorme sensibilidade, pela tua dureza terna, pelo brilho do teu olhar que é dos mais belos que conheci.

Depois foi o que nós sabemos: uma vida a dois levada até ao limite, o limite que acabou por determinar a impossibilidade de dois serem apenas um…

Amo-te…nunca o disse desta forma tão clara, amo-te…

Amo-te mais do amei em qualquer outra altura neste momento, mas amo-te sem esperança de mais, porque os nossos actos e o tempo determinaram o nosso fim, mas se calhar nada disto está correcto e amo-te apenas se calhar porque os deuses acharam que era bonito eu amar-te…

A chuva aumentou de repente de tal ordem que não me consigo ouvir nem a falar nem a pensar, nada sinto, nem me sinto a mim próprio, sinto apenas a mão que te coloquei suavemente sobre a cabeça, a última coisa que sentirei…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 28/10/2013
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