HOTEL CENTRAL

HOTEL CENTRAL

CONTO

Antônio Baltazar Gonçalves

PRIMEIRA PARTE - OTÁVIO

I

Constância iluminava o salão com seus gestos lentos, diluídos. A maresia nos envolvia numa atmosfera lunar. De costas para as janelas, amplas e abertas para os mares do sul, ela dançava sem tirar os pés do chão.

Econômica no balançar os quadris, não fora o corpo de estatura comum que prendera meu olhar na sua direção - a beleza não pede tais requintes quando seu propósito é nos prender a uma criatura por toda a vida - mas sim, que seus olhos já tinham marcado um território largo ao redor dos meus.

Quando notei sua presença era demasiado tarde.

Nem ouvira sua voz, nem tínhamos saído do baile para as formações de basalto, abaixo da calçada mergulhadas no azul cobalto, ou petróleo, daquela noite que não saiu de mim. Tarde, demasiado. Sua presença ainda ecoa nas circunstâncias dissolutas que pretendo relatar.

Contudo, nada do que falamos depois, porque tive a equivocada presença de espírito de convidá-la a sair para o silêncio da rua e à praia, nada do que falamos depois me pareceu único. Constância representava e sua atuação produzia em mim um contentamento inexplicável.

Compactuei, como o leitor que segue a leitura penetrando o bosque da ficção, aquela mulher é obra perfeita. Sua pessoa, seu modo de tocar os cabelos repetidamente no mesmo ponto, antinatural e perfeitamente concluída. Nem mesmo a cor dos olhos, confirmados tão azuis quanto a água do mar pela manhã, marcou-me tão profundo a memória, a silhueta prateada do seu corpo nu.

***

O equívoco foi imaginar que me esperava, que tinha vindo ao mundo para aquela aparição, como se não fosse dotada de vontade seletiva. Banhada nessa atmosfera, Constância contou-me da saudade permanente que corrói seus dias, da tristeza de pensar no irmão assassinado há dez anos e que tortura a todos da família por não ter uma razão o crime ainda não esclarecido, contou-me de seu interesse quase místico pela literatura citando autores que eu desconhecia e passagens que me pareciam, naquele ambiente quente e sereno do quarto de aluguel beira mar, cenas de filmes antigos. Constância impediu que eu fizesse o que só a luz pôde enquanto narrava cenas de sua vida mais que íntima e, antes que pudesse beijar as linhas do seu corpo, ouvi a mesma boca sussurrar que fora vítima de abuso quando ainda tinha seis anos e que seu irmão de doze anos entrava no quarto contíguo ao dos pais na madrugada, silenciando no escuro os protestos abafados que só agora ganhavam força contando-os para mim, “nem sei por que digo essas coisas para um estranho”. Lembro de ouvi-la com a mesma lucidez de ver suas lágrimas discretas assim diluída e iluminada de poesia e muita dor. Não pude tocar e desfazer essa irrealidade inebriante de seu corpo na minha frente e penetrar a carne e corrompê-la, ainda estão nos meus olhos as formações dos glúteos, como que glaciais, impiedosamente oferecidos ao toque de minhas mãos inúteis. Quando vim a tomar consciência de que ela tinha previsto cada movimento meu, que tinha percebido minha estupidez diante da sua aparição e que adivinhara-me impotente e desejando aventura, tive a alma dilapidada. E nada mais restituiu-me alento.

Constância povoou desde então as urnas secretas dos porões lúgubres da minha alma, esteve sonolenta no balanço das redes armadas em todos os casebres e estirada nos tatames em que procurei esquecê-la na companhia de mulheres as mais exóticas ao alcance. Nenhum beijo, nenhum toque até o momento em que disse, Cubra meu corpo, e nu deitei-me sobre ela. Nada me parece real e ainda hoje, procurando as origens da separação, revejo Constância o tempo todo do meu lado nos últimos anos e percebo que nunca estive tão sozinho procurando nela aquela que, ainda nos primeiros instantes, tinha desenhado tão terna e tão profundo: a mulher que eu pensara conhecer. Vinte dias depois recebi a carta de Constância. Estivemos juntos apenas duas noites, e entre elas a tarde mais azul da minha vida porque não via mais nada à nossa volta senão as marcas em sua pele branca deixadas pelo sol onde o biquíni supunha proteção. As reminiscências do encontro inesperado na noite do baile foram suporte para as sensações da noite seguinte e, se não nos entregamos ao desespero do desejo antes e pairamos suspensos naquele torpor que me esvaiu as possibilidades de avançar em carícias mais ousadas, é porque a certeza do dia seguinte anunciava o tempo de aplacar com ferocidade a ânsia e depor contra sua dor todo prazer desse mundo, entardeceríamos o Atlântico. Constância estava com fome quando chegou ao hotel vestindo Opera Rock e exalando Fireneith, sugeri restaurante da orla perto das lojas e dos suvenires, mas ela, descolada de si mesma e com um brilho nos olhos que poderia incendiar todo o quarteirão disse “prefiro comer enquanto andamos”. Abocanhava pedaços do lanche que eu segurava para nós dois e dava um jeito de lamber meus dedos. Claro que ninguém via eu devorado, digerido em pequenas porções que se alojavam em Constância. Por mais que me esforçasse o que via no fundo de seus olhos eram os meus. Que espécie de veneno teria sua língua segredado na minha? As milhares de partículas de realidade se fundiam ao mar que era apenas um estrondo longínquo percebido na praia iluminada pelos holofotes potentes, partículas bilhar, partículas jaquetas de couro, partículas sirene de ambulância que leva um desgraçado qualquer. Somente eu morreria nos braços de Constância mais tarde, eu ouviria dela “te amo”. No bar do hotel ofereci-lhe um violeta kaly e absinto. Constância sorveu absinto e violeta enquanto dançava, dançava e lentamente sorvia meus sentidos. O que nunca teve significado passou a significar e fazer parte do mundo inventado para que essa criatura estrelasse no meu caminho e, para dentro dela, como se o mundo, tragado de uma vez numa entropia cujo centro de convergência eram os olhos azuis de Constância, ininterruptamente, sucessivamente, irremediavelmente, o mundo sofresse queda vertiginosa para a qual não havia remédio. Quando fui avisado que chegara correspondência me veio de imediato o sorriso do Clemente. Ele que nesses dias debochara da minha esperança de rever Constância dizendo que isso era coisa de cinema e que eu podia tirar o burro da sombra, Clemente agora se morreria de inveja, eu tinha nas mãos uma carta de Constância e pelo volume trazia boas novas adivinhadas com pressa: que se casaria comigo, que seria feliz para sempre mais uma vez, que não se esquecera de eu ser um cavalheiro e saber esperar e nem de como nossos corpos se encontraram e se encaixaram na segunda noite. A segunda noite. Comemos na praia escura apenas iluminada pelos tais holofotes que alcançavam as últimas ondas cansadas, ali onde nossos pés descalços percebiam os segredos do abismo coberto de água salgada. Quando o sono já tinha arrastado os outros eu a levei para o quarto que nos esperava de janelas abertas e nos beijamos longe de qualquer possibilidade de término, de desfecho, de fim. Milhares de palavras seriam desperdício para a tentativa de ilustrar a singularidade de vê-la banhada do azul roubado dos meus sonhos mais secretos, suavemente entrelaçada formando nos meus braços o desenho da paz perseguida até aqui. Na tarde do dia seguinte havíamos combinado uma despedida que não houve, estava lá e procurei em cada táxi que parava, e em nenhum deles Constância me sorriu. Ainda acenei para o vazio na direção de um ônibus que saía rumo ao interior, supus... Na carta ela me disse que só fez pensar em mim nesse período hiato e que eu devia ter-me atrasado para a despedida, que levou com ela o mar absoluto e que, por isso, por onde andava seus olhos só viam minhas mãos acenando para dentro dela, fez uso de metáforas que não entendi muito bem, algo como “sem você as horas passam like a roling stones” e terminava concluindo que tudo ficaria melhor quando eu respondesse a declaração que fazia: Te amo, Otávio. A casa que eu morava na época tinha sido reformada, essa mesma do lado da dos meus pais incrustada na memória do bairro antigo de onde se vê a rodovia Cândido Portinari, essa casa que tinha me recebido de volta há vinte dias com semblante transfigurado, essa mesma que seria demolida para dar lugar à praça onde saio à noite para fumar sozinho ao ar livre, então parecia rir comigo e de mim, eu andando de um lado para o outro com a carta na mão, zombando as paredes repetiam com suas portas bocas alongadas “ela te ama”. Não quis trabalhar naquela semana, não precisava comer nem beber água “te amo, Otávio”. A carta ficara sem resposta até a noite de sexta, portanto três dias muda e vibrando no envelope como tinham vibrado nossos lábios e narinas, as palmas das mãos úmidas apertadas enquanto da boca de Constância o veneno seguia direto para as mucosas da minha alma “te amo”. Mas quando peguei o papel e a caneta para dizer que eu queria morrer ao lado dela, que viveria em outras galáxias e que desde que nasci esperava por ela, apenas repeti o erro de sempre, e disse em trocadilhos infantis que troçava da ousadia dela em dizer tal palavra sem que soubesse, de mais perto, quem era eu, o objeto de tão repentino, e literariamente, declarado amor. Sinto que foi o primeiro erro de fato irrevogável, erro de natureza viral que mesmo extirpado das correntes subterrâneas de uma correspondência afetiva ainda mina secretamente os incômodos dejetos de um aceno rápido, a dúvida insípida não declarada no instante em que o olho esquerdo se abre depois de uma piscadela graciosa, esse tipo de contradição que se revela por toda a extensão das falas que deveriam ser discursos espontâneos, mas que se parecem mais com redação colegial que reflexo dos sentidos organizados em linguagem, a dos abraços, a contradição dos abraços, e dos passos no passeio público num domingo à tarde. Irrevogável porque a resposta foi enviada para Constância que tornou a escrever mais uma vez. Mais lírica, mais feminina, mais ferina, mais Constância. E o tal erro, aquele deboche que desenhei na forma concreta de um Pignatari invejoso, mais era um não aceitar ser amado do que uma tentativa preconceituosa de negar o amor. Eu ainda não sabia que o amor está fora de nós, e dele dependemos que nos escolha para sofrer a desonra e a humilhação de chegarmos inexoravelmente atrasados para a celebração para a qual nos convida, essa dilatação da vida em sobressalto que torna a significar a queda original e dá sentido a que se peque ainda no paraíso. E vai que uma segunda resposta escrevi, dado que Constância reiterava em suas palavras que sentia minha falta na forma de uma presença absurda que não explicava e dizia, citando Caeiro, que nada ficara no mesmo lugar desde então, que em tudo via-me e em tudo ouvia ou chorava à espera do reencontro. Então não pude adiar mais, derramei tinta de onde antes havia apenas números e siglas, emblemas e signos esvaziados, de onde nunca havia brotado margaridas, crisântemos, rosas e jasmins, de onde nem um pé de alecrim ou erva doce, caninha da índia, hibiscos brancos vermelhos amarelos dobrados lisos pequenos, nada... nada havia brotado com a força que vinham as palavras que eu escrevia sem medo na certeza que depois disso só a felicidade duradoura. A casa de então já foi demolida e o bairro cresceu. Resolvi que Clemente seria o portador dessa segunda carta minha à Constância uma vez que passaria, em viagem, muito perto dela. Clemente devia chegar à Brasília para representar a firma de exportação em que trabalha e retornar, entregando assim, em mãos, toda esperança devotada a essa mulher que ainda hoje me obriga passar noites insone escrevendo e lendo e escrevendo como se escapassem os versos de Drummond, Deus me deu um amor no tempo de madureza. No portão Clemente me sorri com a expressão mais debochada, espelhando aquele erro primeiro, aquela ânsia do amante disfarçada de escrúpulo. “Então?” perguntei sem necessidade, e ele: “não encontrei ninguém no endereço, ela se mudou”.

O amontoado de impressões deu passagem para sensações novas de delírio, a cada instante as configurações que provocaram em mim a febre já faziam o contrário, por mais de uma semana aceitei o fato de que o amor tinha sido tão eterno quanto breve, e a suspeita de que Clemente estava mentindo só veio animar os sentidos depois que tinha emagrecido pelo menos três quilos. Desse acúmulo alternado em camadas de abandono e dependência, compaixão e desejo que minaram secretamente as edificações do edifício “eu”, desse acúmulo pinçava uma dor nova que ainda não era mais que desconforto e desprezo, embora relendo a segunda carta ficasse sempre reiterado meu destino ao lado de Constância. Aquele primeiro erro, que afinal era apenas o último grito da arrogância adolescente e da soberba do quase adulto, não pude desfazer e, sempre que retornava à agência dos correios, lembrava a tarde que postei a resposta e via o funcionário carimbando o envelope a dizer “é como se a pessoa já tivesse recebido” e a sorrir para mim como se pedisse que o levasse para casa, sempre, e de todas as maneiras que eu recomponha a imagem, sempre é tarde. E pensava que em algum lugar Constância lembrar-se-ia rindo de ter inspirado compaixão com sua lábia destilada em meus ouvidos. No tempo em que durou o desconforto da negação “ela se mudou”, recebi Clemente duas vezes em casa para jantar, falamos de quase tudo que os jornais publicaram na semana, das conspirações internacionais assistindo Hitchcock, do tempo ruim no sertão de Minas, da guerra no Oriente Médio, das acompanhantes que ele usava como se fossem camisas novas. Até o momento em que a amizade e todos os anos juntos a Clemente avultava em hombridade e companheirismo, refutei a farsa e computei na conta de Constância a habilidade de manipular e seduzir, capacidade que, aliás, desde Eva tem sido o prazer das mulheres e das serpentes nas horas de tédio em todos os jardins. No entanto, no mesmo “em algum lugar” ela estaria certa de que eu, apenas eu, poderia aliviar o peso de sua beleza não traduzida. Relendo “vidas secas”, imersa na caatinga, estaria estupefata assistindo à cena em que Fabiano atira na cachorra Baleia: ele insiste mais um passo, as arribações mal agouram o levante, abaixa e apanha um graveto, põe na boca, masca, segue lento, Baleia geme de dor de fome, Fabiano aponta e não atira, vira-se bruscamente e aponta a arma para Constância que teme seguir a leitura. E a lembrança do paraíso me fez resoluto, inquiri de Clemente uma descrição do logradouro para onde ele teria levado a carta não lida por Constância, a segunda minha. Ele, reticente, escreveu uma epopeia só pausada pelos tragos no cigarro, reforçou a dificuldade em Brasília, as estradas mal cuidadas, a distância e o cansaço e não pode, com clareza, especificar a cor da parede da casa e se havia uma azaleia frondosa no jardim, Clemente mentiu e eu queria saber o porque. No entanto, por respeito ao tempo da amizade, não confrontei suas intenções e o xeque avisado ao cavalheiro cheio de boas intenções, ainda não fora xeque mate. Depois que ele foi embora naquela noite, embriagado porque o fiz beber e falar mais que de costume, pensei que tinha um quadro completo da situação: enciumado e temente que eu desaparecesse no universo descoberto em Constância, Clemente agiu na espreita de uma oportunidade para dissuadir-me da empreitada. Imaginou que facilmente me perderia enredado nas tramas e nas circunstâncias que cercavam essa mulher que parecia ter-me lançado feitiço, Clemente via na história os fios das teias que moiras do nosso tempo conservam entre os dedos, e chegou mesmo a advertir que eu corria risco. Na atmosfera densa mais um cigarro, outro e a manhã anunciada nos tons de violeta iluminou minha sina. Decidi partir em busca de corrigir qualquer falta, qualquer erro, partir em busca de vê-la mais uma vez. Aliviado pela decisão pude descansar, lembro perfeitamente que não sonhei as poucas horas que dormi, mas - e disso também tenho certeza porque enquanto jogava as roupas na mala incluí um volume de Proust - o fantasma de uma duvida seguiu cada gesto meu até o fim da tarde, e uma certeza: uma premissa equivocada pode levar a conclusões distorcidas embora verdadeiros os argumentos. Partimos imbuídos de certeza eu e Constância, que foi assim sozinho ao lado dela que a estrada se abriu na madrugada para os faróis dos meus olhos.

II

No meio do caminho uma neblina inesperada separou-me da estrada e ainda nela conduzi lentamente os pensamentos para o acostamento, como se os dirigisse e ao carro. Recomponho esse caminho percorrido madrugada afora na direção de rever Constância, e os sinais emitidos por Clemente me instigam ao limite dos raciocínios mirabolantes e das intrigas sórdidas das novelas tão em voga adaptadas para televisão. A autovia a perder de vista nas curvas mais demoradas, iluminada pelos faróis da contra mão, sugeria formas bizarras e mesmo pessoas seguindo em fila penso ter visto. Depois de cento e trinta quilômetros os sentidos entorpecidos de fixar os olhos nas faixas da pista esquecem a sinalização, desligo o som, não há nada além de asfalto, serra e abismo. Então a neblina anunciada devorou a visibilidade que já era diminuta. Inesperadamente engoliu o acostamento e as faixas já não sinalizavam segurança de modo que, depois de derrapar, diminui a velocidade e encostei quase batendo numa árvore. Não posso afirmar com razoável certeza onde estava, sei que não pude ir à parte alguma até que amanhecesse, e vi desenhar na neblina o perfil dos eventos desde a visão de Constância no baile com suas amigas.

Clemente na saída do bar, “bebia vodca”, disse e desapareceu atrás dela. A segunda parecia sombra de Constância e por isso desistiu da festa quando nos retiramos. Mas a terceira não tem rosto e ainda agora, nessa cegueira branca absoluta que cerca tudo, não projeto a razão de não lembrar seu rosto. Soube que a negra beija bem e é dada a jogos no amor prático nos quais Clemente é exímio praticante, no entanto a terceira moira por assim lembrar os avisos dele, esvai no instante mesmo que um pensamento mínimo se aproxima dela.

Aceitei o convite para o baile porque Clemente produziu o evento para arrecadar fundos numa ação conjunta do Rotary e a loja maçônica da quarta revelação em que ele é sênior. Quando Clemente me perguntou onde tinha ido, porque sai antes do fim do baile, já sabia onde e com que eu estivera, a lista dos presentes fora conferida por ele, e mesmo os convidados dos convidados estavam na programação. Clemente sabia da existência de Constância antes que eu a visse. Teria ele tocado nela? Um sopro frio invadiu meu corpo. Fora do carro, na neblina espessa, o pio agourento de uma coruja cortou o ar, era a vítima pedindo ajuda já sem esperança. E sem saber de nada eu me entregara à ideia romântica de que eu e Constância estávamos no baile por ação do amor, que a trama era mais bela que toda arte de Penélope, que moiras de uma nação cigana e moderna haviam predestinado nossa história mágica e azul à beira mar sob a luz da lua. As agulhas desse pensamento fincaram na carne e duas vezes cego esperei imóvel amanhecer. Clemente havia dito o quanto se divertira depois dos discursos entediantes, depois das homenagens e do documentário que foi produzido com as crianças protagonistas da fome no sertão do Jequitinhonha para justificar a ação e o programa, mas não disse uma palavra sobre a terceira amiga nem de Constância até que chegasse a primeira carta.

A neblina declina sua força e esvai na mesma proporção que meu desejo de rever Constância, e um sentimento novo vem sorrateiro ocupar acento. Naquela noite enquanto Clemente bebia sem dar conta que eu estimulava a bebedeira para que dissesse alguma coisa sua fisionomia mudava como a superfície de um lago onde, e só agora posso ver, refletia minha própria face. Clemente zombara dos meus sentimentos desde o primeiro instante, soube do afeto e, claro, dos detalhes da narrativa de Constância para confundir compaixão e amor, tudo veio daí. De onde mais a pérfida iniciativa da não entregar a segunda carta minha para Constância? Clemente, não satisfeito de sua orgia nos bastidores do evento beneficente, se deu a tramar uma segunda possibilidade: pelas mãos de Constância me levaria até seu bacanal, o convite estava sempre aberto e negado desde o primeiro. Envolveu as três amigas de Constância, mesmo a terceira que mantem o rosto perdido na minha lembrança como se nessa neblina, e o que deu de errado? Fomos além de uma noite, Constância alongou-se em minha alma e fez de um canto entulhado mobília para a sua, semeou em meu espírito o desejo de cultivá-la, de me alimentar o corpo e não extinguir. Teria percebido isso e nutriu mais que os planos de um orgia passageira, prendeu mais um fio na trama das moiras incansáveis, contornou Clemente e desapareceu. Constância havia previsto cada movimento e em nenhum deles considerou as possibilidades. Ferido onde mais sangra, dou partida ao carro e volto para o caminho em busca de concluir, seguindo as premissas diluídas na neblina, os eventos que narro buscando a clareza de espírito e a honestidade pretendida para convencer os senhores da minha inocência.

São José do Rio Preto, oito horas da manhã do vigésimo quinto dia contados e saídos um do bojo estéril do outro e por isso apenas um só dia, vinte e cinco longos dias de febre sem descanso, de delírio sem anestésicos, apetite ou pausa, seiscentas horas até o momento de rever Constância, e ali está o arbusto azaleia do gramado, mas a casa, a casa não. Quando me fez imaginar sua infância, a cidade que se desfazia em ruas sem asfalto, os irmãos, o pai e a mãe, Constância tinha ambientado as cenas em uma casa modesta de um bairro modesto numa cidade mítica de sua memória, a simplicidade que exalava cape dien não habita esse endereço, e na minha frente agora as colunas clássicas de capitel jônico imponentes ostentam orgulho de classe e desdém operário, de modo que me afastei, não sem prejuízo da visão, dois quarteirões e esperei alguma movimentação, um indício de que, apesar da equivocada descrição, o endereço na carta fosse realmente o logradouro visitado por Clemente quando, à meu pedido, e de volta de Brasília, se negara a entregar a segunda carta. Pouco antes do meio dia o imenso portão foi aberto, entraram dois carros e deles desceram cinco pessoas, talvez tenha reconhecido a amiga de Constância pelo estilo. Acima do segundo piso da casa uma cortina balançava para o lado de fora da janela de madeira aberta. Antes que entrasse, a terceira amiga de Constância retira da bolsa o celular, atende e passa a sorrir olhando vagamente na minha direção. Nesse momento, senhores, aceitei o porvir e dei o primeiro passo, acenei chamando por Constância e logo aquela mulher veio adivinhando meu suor, alongando suas pernas em compasso aberto de modelo bailarina na minha direção. Desculpem o transtorno de saltar o tempo na narrativa aqueles que se apegam aos detalhes cronológicos e factuais, que se retorçam procurando nos laudos e depoimentos o que já não tem importância, embora eu pudesse lembrar o nome de cada rua por que passei não vale a pena incluir mais que o sobressalto de ser recebido como parte da história, como pessoa à quem se deve explicações, Sou Vera, amiga de Constância, lembra? diz estendendo a mão e declara, Não esperávamos mais que viesse.

Sou levado pelo braço quase abraçado a Vera em silêncio e, sem emendas para narrativa, para os fundos da casa. Subimos a escada que dá para um quarto amplo no fim do corredor em cujas paredes me vi emoldurado em oito espelhos, por duas delas distribuídos a luz suave dança vindo de fora, a cortina branca faz o ambiente saltar pela janela. Me sinto diluído, liquefeito, invisível e nesse estado reconheço o corpo de Constância também líquido, diluído e azul como da primeira vez que a vi. Constância está em coma, a voz de Vera soa de muito longe. Coberta por uma gaze transparente ou véu, tule para ser preciso, inerte imóvel paralisada totalmente por inteiro, as palavras que têm tanta força e criam mundos agora se repetem também inertes, imóveis, paralisadas totalmente por inteiro submersas nessa atmosfera oceânica. Velo uma eternidade de pé ouvindo o mar arrebentar dentro da cabeça, naquela praia lisa de areias ordenadas dorme quebrado meu sonho como num navio arremessado contra as vagas, tudo se mistura como num poema e só não confesso minha dor porque preciso tomar de empréstimo as palavras de outrem. Não sei por quanto tempo fiquei ali sem pensar em nada, apenas respirando o mesmo ar que penetrava, como se espírito, as narinas de Constância, e quando decidido toco a pele de sua mão sou levado para o alto de uma montanha num átimo de secundo, a nossos pés as nuvens pareciam sólidas e no silêncio intraduzível dançamos por não sei quanto tempo, vinte e cinco minutos, vinte e cinco dias, vinte e cinco anos. Quando recobro os sentidos percebo tudo em volta com mais clareza, Vera tinha se ausentado, há movimentação no corredor, um homem se aproxima, outra porte se fecha, Constância parece sorrir de olhos fechados.

A premissa não estava diluída na neblina, coerente, apenas faltando argumentos, peças. Eu não quis saber que Clemente estava a serviço no tráfico da heroína e que o caráter beneficente do baile era fachada, que as três moiras eram na verdade uma Salomé, que ao entregar a cabeça de Constância na bandeja para Clemente promoviam o mercado ascendente nas classes mais abastadas. Constância levitava entorpecida quando a vi no baile, quando despi seu corpo e nele a lua marcou a sombra das minhas mãos. Quando pedi a Clemente que entregasse em mãos a segunda carta foi como dar ao algoz arbítrio para o golpe final: tinha que se desfazer da sua conexão uma vez que a droga já tinha sido distribuída, na volta de Brasília deixara limpo o gabinete do senador amigo seu e não cumpriu o combinado, ao negar a correspondência entregou o alívio da última dose. Percebo Vera que se aproxima no corredor, o homem imaginado a pouco é mesmo Clemente. Vera está nua e no rosto, cobrindo qualquer expressão, uma máscara não esconde os olhos e neles a distância que separa a lua da terra. Preso ao pescoço por um anel de ouro um lenço que desce pelo braço alongado acentuando longilíneos os dedos da mão esquerda, a ponta do lenço comunica a extensão incômoda entre Vera, Clemente e eu.

A única pergunta que faria é porque manter Constância nesse estado, mas tenho a resposta, e é o pavor de imaginar Clemente violando o corpo de Constância noites e dias e noites intermináveis nesse quarto que impele minha mão quando pego da arma e primeiro estouro o peito de Vera e depois o riso que vem melado na cara dele. Encostado a uma réplica do busto de minerva que ampara o último espelho no corredor, Clemente apanha no bolso um garrote e joga na minha direção, depois gira em falso e se apruma, avança dois passos bêbados, ouço gritos no quarto contíguo e no piso inferior, Clemente tomba como um cão, mas de joelhos. E antes que fale, arremesso sobre ele o desgosto amargo do metal que amplia sarcástico o riso mudo. Como um cão.

III

Cerrei os olhos depois de ouvir o portão principal do presídio se fechar atrás de mim, e quando os abri, minhas pálpebras eram pálpebras de neblina. Fina malha que cobriu tudo e fez um arrepio percorrer a coluna até a planta dos pés. Meus pés foram levados e meu corpo só percebeu o espaço da cela quando o ruído da trava eletrônica fincou nos meus tímpanos um cravo também agudo e permanente. Engoli o silêncio como pedra de gelo depois que o uísque acaba, sem raiva e sem esperança. Disseram-me que a esperança deve povoar nossos sonhos para que a vida se torne menos agrura, me disseram isso quando estava nas ruas e nas ruas a esperança estava ao alcance de um braço, dos olhos, à uma pernada. Não aqui. A cela é pequena, estamos em três, o inferno não poderia ser mais apertado. Quando notei a presença dos homens que me observavam sem por os olhos em mim, percebi que a esperança é um estado de espírito que não pode ser compartilhado com quem está convicto de sua ausência asfixiante.

O baixinho, branco e forte é chamado de Paulinho, primeira conversa que tive com ele, me contou que seu pai estava doente de tristeza porque tinha roubado alguns cavalos na fazenda da família para trocar por drogas. Depois, desesperado por não encontrar saída, arriscou um assalto. Disse que esperava a sorte de levar uma bala e ver o fim daquela angústia. Mas não foi assim, o Paulinho entra na loja de conveniência, treme com o revólver na mão, ameaça estourar todo mundo, e que ninguém falasse nada, pega o dinheiro do caixa que, heroicamente, resolve defender a honra e reage convulsionando o braço rumo à gaveta. Paulinho atira, mata e foge. Três quarteirões depois a polícia o prende. Ele me contava isso, acrescentando que o pai não vinha visita-lo e que os cavalos foram recuperados pela polícia, que a família do funcionário herói morto nunca iria perdoa-lo e que, quando sair, tem de pagar o traficante que ficou sem as drogas e sem os cavalos. O Paulinho tem apenas uma distração: na academia da penitenciária faz escorrer o sal da pele, limpa os rins e ninguém sabe se ele chora ou ri. Disse que veio parar aqui depois de um bonde interminável, de cadeia em cadeia sua transferência estava assinada quando chegava, “ninguém me quer em lugar nenhum”. Assim viu as luzes das cidades por onde o comboio passava, inúmeras cadeias, casas de detenção e três presídios, as luzes pontuando a distância entres os postes da iluminação pública como se as avenidas fossem pista de aeroporto, entrada e saída, sem tempo de trocar de roupa ou tomar banho. Dormiu três horas na cela do segundo presídio mas foi acordado por um batismo macabro: um rapaz recém chegado sabia demais e tinha falando o que não devia para quem precisava por as mãos em outros bandidos, o candidato que ia ser batizado precisava demonstrar que era de confiança, papo reto. A execução foi na frente do Paulinho e a cabeça do linguarudo cagüeta fez um barulho seco, duro e surdo quando rolou no chão molhado do sangue adolescente. “Talvez meu pai venha na próxima visita”, ele nunca recebeu o pai aqui e quando o Sergio sugeriu que ele mandasse uma carta fiquei sabendo que era analfabeto. Frequentou a escola, sabia assinar o nome e ler nas placas à distância que estava de casa e mais nada. O Sérgio é o terceiro na cela, um preto de pele lustrosa, de gosto refinado e manias estranhas. Os dois combinaram de escrever uma carta e eu fingi que isso não era da minha conta. Da minha conta foi acatar a orientação do meu advogado, escrevi minha própria apelação no que chamaram “caso constância” e, uma vez que a pena foi comutada de quinze para cinco anos, me convenci de que o caminho para manter o foco e não enlouquecer aqui dentro seria escrever a história de alguns detentos - elaborar sua defesa junto aos tribunais de primeira instância. A maioria deles está entregue à própria sorte e a justiça morosa os abandonou. Assim configurei uma perspectiva de liberdade, escrevi todos os dias apelações cheias de esperanças e, mesmo que fossem alheias, de outras dores e faltas, sempre foi a minha que depunha no papel Um dia fui convidado para ensinar alguns detentos analfabetos, aceitei também o convite de seguir Jesus na igreja porque tudo isso conta pontos no jogo da destituição do caráter. Fé e esperança são mercadorias barganhadas aqui como em toda parte. Depois que o Sérgio escreveu a carta para o Paulinho ele pediu que eu lesse, fiz de conta que não era comigo e torci o nariz porque é assim que os homens fazem quando não é conveniente um abraço. Na carta o Sérgio dizia o quanto “eu estou arrependido de tudo que fiz e fiz vocês passar, da vergonha e da humilhação por ter um filho desgraçado e ladrão, mas quero falar pra vocês que eu não sou ladrão não, fiz o que fiz porque não estava certo das ideias, estava doente e agora Jesus me curou, diga pra a Celinha que penso nela todo dia e que vou ajudar a mãe dela quando eu sair, pai eu te espero ver aqui, dá um abraço no Caio e na mãe, eu sinto amor por vocês, assinado Paulinho”. Fiz com a cabeça um sinal de aprovação e não corrigi nada porque precisava esconder minha cara no escuro, na cama virei para o canto e me deleitei mais uma vez ao lembrar o espasmo de dor de Clemente quando a bala do meu revólver estraçalhou o peito dele. Ocupado, permite mais rápido a passagem dos meses, dos anos. Cinco anos, livre.

O Paulinho apertou o cenho para disfarçar na despedida, já o Sérgio eu não vi naquele dia porque estava na enfermaria intoxicado de aspirinas.

Li nos jornais hoje de manhã a entrevista que meu editor achou oportuno publicar, na fotografia pareço constrangido. Estou de volta às ruas e tenho a impressão de ser vigiado. A entrevista foi acordo do editor com meu advogado, vão aproveitar a ocasião e lançar no próximo mês uma coletânea de contos. Liguei para o hospital, soube que Constância saiu do coma.

SEGUNDA PARTE - CONSTÂNCIA

I

Desde que voltei para esta cidade, ando literalmente entre camadas de tempo. É como se eu atravessasse continuamente a membrana que separa um dia do outro, um mês do outro, um ano do outro. Às vezes, tenho a impressão que estou numa década e noutro segundo, ao girar a cabeça e notar um jardim do outro lado da rua por exemplo, parece que estou noutra década com pessoas tão alheias do tempo quanto eu sempre estive. Quando atravesso uma rua, é como se partisse de onde estão meus pensamentos, meu coração e a vontade, e chegando ao outro lado já estivesse em outra cidade. Uma cidade em que eu já tenha vivido noutro tempo. Ali, cumprimento crianças que vão crescer num segundo e se casarão, noutro segundo terão estudando em escolas barulhentas dando trabalho e pouco contentamento.

Desviando dos pedestres apressados que optam pela faixa desenhada no asfalto, ainda é a sensação de estranhamento que faz com que eu não esbarre em ninguém. Se um encontro assim acontece posso acordar do devaneio perdida nalguma lembrança estendendo a mão para ninguém, ou pior, a ponto de abraçar um fantasma.

Desde que retornei para esta cidade, a cidade em que nasci, sinto a mesma ausência. Existe algo de ternura perdida porque muito são lembranças, imagens difusas misturadas, pouco nítidas. Mas tudo isso me perturba porque eu sei que são fragmentos de lembranças que inventei. Invenções muito particulares de cada cidade que eu mesma construí como pude no mapa que é desconhecido de todos, que não existe porque só meu. É o cenário por onde deambulo, como se continuamente acordasse do sono da morte sem me dar ao sentido de que outra vida começara.

Perambulando chego ao Hotel Central. Em busca de respostas aceito as chaves da mesma forma que assinei meu nome no lugar indicado no livro de registros.

Da recepção para o saguão, evito reparar mais do que o necessário no velho recostado à parede fingindo que não assiste à novela. Caminho suspendendo a respiração até que alguém atenda ao telefone público que insiste chamar na esquina, o som é distante mas estridente e cada sequência do ruído faz estremecer uma lembrança soterrada nas camadas das memórias reais que teimo negar. Apresso o passo. O velho ainda está no meu campo de visão, parece olhar paisagem distante, estático como se morto. Volto a respirar porque finalmente ouço a voz de um homem que atende a chamada lá fora e diz: “alô, não, ponto de táxi, certamente do outro lado, mas agora está fechado, boa noite, não tem de que”.

Passo do saguão à copa e peço que sirvam um chá no quarto. Por falta de assunto, reclamo para a copeira de uma dor de cabeça. A luz do banheiro ficara acesa, não receio abrir a porta porque sempre deixo a luz do banheiro acesa. Agora não ouço ruído algum que venha da rua, meu quarto é uma bolha que se desprende lentamente do fundo desse lamaçal. Nenhum ruído, nenhuma luz além dessa que deixei antes de sair, tudo deve estar no mesmo lugar. A fresta que permite a fuga da luz que vem do banheiro filtra para o corredor a certeza e a verdade de o quarto estar no mesmo lugar.

Bebo o chá sem açúcar, não é a cabeça que dói. Padeço de descontinuidade, sei bem, minha morte será sem fim.

Imagino as ruas, a Do Ouvidor e a outra que circunda a praça dos correios, fazendo uma barriga magra em torno dos moleques e dos garis à espera do circular que os levem para casa, para suas casas. Os garis agora descansam sentados na base do obelisco que homenageia os soldados mortos no levante constitucionalista de trinta. Penso que as ruas estão apinhadas de histórias mortas não contadas, contabilizadas apenas em planilhas como números natimortos esperando o registro senil de um cartório de notas onde ninguém saberá as causas da vida.

Gira a chave no buraco da fechadura e minha vontade resvala no tapete, a porta que pensei fechada estava entreaberta. A passadeira desce rebolando os quadris fingindo cantar para distrair a si mesma da pressa e quase deixa cair as toalhas brancas. Estou certa de que ela usa o cubículo de entre os andares debaixo da escada para fins escusos, namora secretamente o porteiro. Sigo-a como posso no escuro, mas dessa vez não surpreendo nenhum casal. Quando cerro a porta do meu quarto de vez e a luz desaparece completamente, desamparada imagino um homem que espera a passadeira no silêncio das prateleiras onde ela guarda os lençóis. Os lençóis em que todos já deitaram um dia. O casal imaginado fecha a porta do cubículo e é como se abrissem um buraco sob os meus pés. Preciso deitar um pouco, já não sei se existem corpos se esfregando no escuro sob as escadas ou se minha solidão dói mais. O ruído que me assombra agora não vem da rua. O barulho nas escadas confirma a minha suspeita, há mesmo uma cena de amor acontecendo entre a passadeira e o porteiro.

Sozinha, tomo o chá. A porta do meu quarto ficara mesmo aberta.

II

Os médicos disseram que vou ficar bem, os médicos disseram tanta coisa. A única certeza que tenho são as vinte e quatro horas de cada dia e nelas, mergulhada num esquecimento quase sólido que aos poucos se desfaz, neblina em manhã de sol, esforço-me em constituir uma rotina estreita. Uma rotina onde se alargue também a memória das margens da alegria de estar ainda viva.

Os médicos também disseram, sobre a memória, que o afeto contido nas lembranças seria de proveito mesmo que delas a consciência não tivesse clareza. As recordações do tempo de menina estão intactas. Os campos cerrados ainda não tomados pelos cafezais, o tempo em que mamãe estava tão viva. Mamãe alegre, banhada pelos tons coloridos da luz refletida na areia da estrada que nos levava todas as manhãs para a Colônia Torta, para o bananal da Colônia Torta onde meu pai ganhava nosso sustento.

No bojo dessas lembranças sei que estão os paliativos curativos do meu estado porque quando sinto o sol daquelas manhãs e recobro o sorriso da minha mãe, sinto aquecer até a última fibra do meu corpo. São momentos que se dissipam sem que eu possa prendê-los. Aliás, quando tudo está por um fio, quando a recordação está por um fio e depois sei que será nada, me esforço por fazer demorar mais em mim o sabor as lembrança até ao ponto de refazer o trajeto e os movimentos da cabeça. Sento como tinha sentado antes e me levanto como tinha feito, mas todos esses momentos precipitam terrivelmente na realidade esterilizada do Hotel Central.

Mesmo assim, apesar de fugaz, essas recordações do campo, de mamãe no bananal, dos doces que vendíamos na feira da praça nas terças feiras, do dourado na vastidão das manhãs de sábado quando eu caminhava na sua frente apontando os ninhos de pintassilgo e indicando a direção da brisa embriagada do perfume das flores das laranjeiras, apesar de fugidias essas recordações são fios luminosos de um bordado que vai ganhando corpo real. Um corpo de tempo, um corpo que se dissipa sem que eu possa suspendê-lo por mais.

É nessa trama, nesse bordado de fios luminosos, que procuro alguma integridade para minha saúde estiver hospedada nesse hotel. Certifico-me das paredes em volta, as paredes do quarto amplo e arejado por duas janelas altas. Amplo até o limite do conforto de saber que ali as recordações estão protegidas e posso retornar para a cama em segurança.

Estou sem medicação, a única recomendação prescrita pelos médicos que auxiliaram meu retorno do coma é a de que me ocupasse em descobrir um sentido para minha vida. Descobrir eu não posso, não posso ou não quero. Por isso resolvi reinventar sentidos até que possa organizar meus pensamentos tão difusos e as recordações fugidias e, nelas, as memórias afetivas que guardo.

E no que consiste meu projeto? Pergunto-me para responder enquanto despenca do teto a última sensação de bem.

Começo por observar o comportamento e as atitudes dos que passam pelo hotel que é meu universo nesse agora, gerúndio sem fim. Criei um catálogo de histórias.

Desde o guarda do estacionamento hesita o dia todo em sentar-se e ficar de pé, em receber os carros abrindo o portão mancando da perna direita para depois acender um cigarro que vai tragar duas ou três vezes e jogar fora porque está no portão outro carro, à espera, para sair do hotel. Desde o guarda até Eunice que é a hóspede mais antiga. Ela mora aqui. Dizem que os filhos são advogados jovens que ingressaram numa multinacional de São Paulo e não têm tempo para as razões da mãe. Eles se envergonham de Eunice por ela ter ficado com o filho deficiente de um amante. A criança mora no hotel, chora na madrugada e Eunice canta baixinho uma das canções que minha mãe cantava quando eu tinha pesadelos. A criança ficara com ela porque a mãe, a esposa traída, teria dito que nascera doente dada traição do marido. Quando saio do quarto para tomar o ar fresco da madrugada que entra na estufa pela claraboia, a ternura do canto, o perfume das orquídeas e a lembrança da face doce de minha mãe se misturam. A claraboia me guarda como útero.

Nessas ocasiões, protegida retorno para o quarto entregue ao alívio do sono. É um breve instante de conforto, anestesia dos sentidos aguçados. Quando deito a cabeça no travesseiro de penas de ganso perfumado por macelas, revejo o movimento do cortejo no expediente do hotel.

Entre o guarda do estacionamento e Eunice, numero o entra e sai. Todos os dias, o fluxo dessa procissão de penitentes que trabalham no centro da cidade. São pessoas que frequentam a igreja aos domingos e os bares nas sextas feiras. Não posso evitar que esse fluxo externo toque em mim, como também, inversamente, não posso evitar que outro fluxo irrompa dentro de mim. Talvez que, por segurança da minha alma, o que veio antes do coma deva ficar esquecido, mas intuo que alguma coisa valiosa está perdida em meio ao que devia resgatar. Concluo que viver é mesmo perigoso e decido e com a decisão vem a paz ao espírito. Devo continuar correndo os riscos.

Como eu dizia, meu projeto é narrar. Seguindo à risca as recomendações psiquiátricas, resgatar alguma integridade nessas histórias fragmentadas que vejo desenrolar todos os dias. Narrar histórias perdidas para reencontrar, acaso valha a pena, a minha.

Outro dia, encontrei a recepcionista que trabalha no período da noite no Café Barão. Ela estava feliz porque recebera um aumento de salário e tinha ido às compras. Mostrou-me os sapatos e o vestido curto e jurou sorrindo que a compra era um sonho realizado.

III

Amanheceu. O sol vai arder na retina de todos daqui a pouco. O sol que traz a vida às árvores que estão dentro das sementes é o mesmo sol que envelhece minha pele. Mas é o sol que afasta do meu peito a sombra que impediu o sono a noite toda. O sol parece desfolhar as camadas do medo e da dúvida. A certeza de que o banho frio fará bem dissipa as camadas de breu encrustadas no espírito enquanto o sol dissipa, na aurora, um novo dia.

Apesar da insônia e dos devaneios, meu corpo inclina e se verga como um arco pronto para o disparo. Sou uma seta e, no entanto, esse vetor ainda não tem direção. O banho frio funcionou cápsula reveladora, tomei uma decisão. Quando for ao museu da cidade, para pesquisar a história do Grande Hotel Francano, sei que vou encontrar a razão de ter ficado nessa cidade.

(Água bendita lave tudo, seja o fio condutor da minha narrativa, revele em mim apenas o que de mim suportaria espelho). E como se caminhar até o banheiro fosse uma escalada, como de resto tem sido meus dias, desço mais um degrau, ou subo. Mais um degrau na mesma escada pela qual desci, refaço os caminhos.

Depois de contemplar a beleza da criação percebo assombrada que, uma vez admitindo a existência de um criador supremo, de um Deus que nos governe, no último degrau também se revela a existência dos demônios da mesma criação. No centro oco e vazio dessa percepção está a modernidade sem órbita. O retorno transcendente só é possível através dos mitos, das celebrações, da reencarnação do verbo.

Quando os médicos perguntaram o que faria da minha vida, que rumo daria para o que restou da minha vida depois do coma, eu disse sem pensar muito que ia encontrar o menino.

Todos ouviram minhas impressões, as imagens turvas que trouxe do sono profundo. Ouviram a descrição minuciosa do rosto de um menino que emergiu como um Titanic das águas profundas e gélidas do meu sono ártico. A única força, como se fosse de uma luz intensa, que dali impulsionou meu retorno, sem dúvida fora a luz dos olhos daquele menino-anjo. Anjos são criaturas misteriosas que sobrevivem até mesmo onde falta oxigênio, outras matérias sutis vitais e, no entanto, são incapazes de tocar e interagir com substâncias mais densas como as que constituem a pele.

As orientações da equipe médica foram que deveria fortaleci os traços do rosto do meu anjo, os traços do rosto do menino, que foi a primeira imagem que ocupou lugar em mim depois do coma. Algum significado no universo dos signos essa aparição deveria ter. Então decidi encontrá-lo.

O ponto de partida foi ficar na cidade. Depois busquei desenhar o rosto dele, o entorno daquele rosto a mim revelado. Desenhar em palavras, suspeito que a face desse menino também seja a minha, inventário nebuloso.

Engendrado de sentido, esse rosto meigo de menino tem a força do homem que traz a alma mais que vestida. Mas por que não vejo o homem e só o menino me aparece? Um homem que espia de fora do quarto o vestido cair bem na minha cintura?

Estou indo bem, apesar de a vida me parece um gerúndio interminável. Graças à colaboração dos profissionais que assistiram todo o processo. Desde a desintoxicação pela heroína, que segundo a opinião dos mesmos especialistas não causara dependência, até tomar conhecimento das notícias nos jornais que chamaram de “CASO CONSTÂNCIA”.

As informações que me deram foram dosadas para não causar maior estrago na minha recuperação. O tráfico da droga foi descoberto. Também o grande esquema que a polícia federal havia desfeito graças à colaboração de algumas pessoas que permaneceriam protegidas no anonimato. Soube que eu fora usada para atravessar, como ponte ou laranja, e chegar à consumidores de duas zonas de distribuição disputadas entre o Espírito Santo e Curitiba. Era muita informação, não quis saber mais.

Quando os médicos perguntaram, eu poderia ter dito ‘minha casa espera por mim’. Teria mentido sobre pessoas que me esperavam. Não tenho mais por quem chorar, foi o que respondi.

IV

Engendro sentido naquele rosto meigo de menino e percebo mais uma vez a força do homem com a diferença que agora estou determinada a lembrar seu nome. Saio do hotel central para a Praça Don Pedro II esquivando da presença encarnada de seus hóspedes e sua histórias, preciso encarar a minha própria. Nunca se apaga a escrita de uma história, nem mesmo rasgando as páginas da pele. Na praça ergo outro hotel onde, agora, está assentado um banco de créditos com seus caixas eletrônicos e as filas que nunca têm fim. Ergo um grande hotel, imaginando operários também anônimos e sôfregos levando material de construção de um lado para o outro. Em cada metro do alicerce busco um centímetro do rosto do menino feito homem ou uma letra do seu nome, cerco de canteiros todo o perímetro e um jardim francês margeia o quarteirão. Sobre os alicerces de pedra, ergo paredes monumentais vazadas por amplas janelas de ferro e cristais que deixam o ambiente mais iluminado, em cada lavabo desse lado da fachada lateral um reflexo colorido escapa da rua para cintilar em minúsculos nichos instantâneos que se desfazem para o oeste, para o poente. A fundação de todas as paredes externas da parte assobradada eu afundo na terra mais de dois metros em valas socadas à ferro e blocos de pedra. Dessas valas retirei antes a terra com a qual aplaino os terraços e os canteiros dos jardins. No fim da tarde o trabalho feito preenche um vazio enorme dentro do meu peito, mas ainda não tenho um nome para o que sinto. Sei que ele tem gosto refinado e por isso a fachada será dórico simplificado de um clássico renascença e no grande salão de festas exagero no mais que pomposo estilo Luís XVI. A quantidade de peroba e jacarandá deve agradá-lo, nos meus sonhos sinto um cheiro de árvores quando ele se aproxima e, porque sua estatura é a de um anjo, ergo o mais alto a construção que impõe, nas alturas do telhado, a necessidade de mirá-lo erguendo o queixo acima do horizonte.

Como meu homem experimentado é ainda um menino, a planta baixa é simples como seu sorriso. Assim o corpo dele se estende por dois pavimentos interligados por três escadas de tijolos rebocados que aliso usando algumas lágrimas no cimento. Essas escadas darão acesso a toda parte, ladrilho tudo com mosaico xadrez. A sapata das paredes internas aprumo-as para mais de metro até atingirem a altura que sustente o reservatório d’água que será aquecida por serpentinas antiquadas para essa modernidade angustiante que tem a pressa elétrica dos condutores alucinados de energia. Um gosto peculiar por antiguidades de repente inunda minha alma como se eu descobrisse novo encantamento pelo velho, pelo antigo. A lajem de concreto ergue nos ombros o telhado, suportado em colunas de concreto e vigas de madeira que oferecem dois metros de sombra ao redor de toda minha construção. Ao redor dos muros externos, passeios de um metro de largura seguem a sarjeta.

A praça entardece e percebo que o porão está mal iluminado, desço as escadas que acabara de construir e, de pé, porque tudo é espaço a ser construído, me sinto satisfeita por sentir o peso do meu hotel sobre mim.

Esqueci na entrada, depois do portão, os paralelepípedos que deverão ser assentados, pois que quero sobre eles a passagem dos automóveis. Um carro chega mais cedo e dele meu anjo desce, posso vê-lo já e ele facilmente imaginará a galeria da área interna, a copa, a cozinha, a dispensa, a rouparia, as várias caixas de escadas, barbeiro e tintureiro do primeiro pavimento que foram feitos para sua recepção. Depois de demorar contemplando os jardins, ele supõe a extensão do segundo pavimento com o hall e seus corredores, o terraço, os banheiros e latrinas, as saídas para as sacadas e os quartos. O interior do meu grande hotel é uma sucessão de pequenos mundos que se abrem uns dentro do outros e, por isso, desenho ali um conjunto de mais cinco escadas de granito que o convidam para os dois grandes salões de festas. A quinta escada será convite especial para os casais que preferem a vista da sacada da frente.

Talvez devesse terminar o exercício amanhã, talvez devesse desistir. Mas se o fizer agora, ficarei com o que já tenho e uma vaga lembrança não é exatamente o que vim buscar. Então insisto em que todas as colunas recebam moldura e adornos no bom gosto dórico, levemente clássico, sugerindo o privilégio da fortuna. Também carrego no estilo toda a fachada, e a vista que se tem, a uma distância do meu grande hotel, é a visão bem assentada na terra do capital migrado das fazendas de café.

Os balaústres de cimento armado, o madeiramento em peroba, a cobertura com telhas Marselha de amparo, as comunheiras e rincões assentados com precisão artesã são detalhes que preparo para a visão dele depois que descansarmos no quarto arejado por arcos de ferro fundido que nos dará o prazer de respirar um ar sempre renovado, fresco e salubre. Agora ele sobe a escada por suas próprias pernas, a escada principal do hall que tem três lances de dois metros de largura cada, com seus degraus de dezesseis centímetros em mármore. Sua mão direita desliza sobre o corrimão de bálsamo oleado enquanto seus passos leves diminuem a distância, fazendo o caminho inevitável que vai dar na escada de serviço que é simples como a varanda da casa da minha infância. Ele passa o lavabo das damas, o bar, o tintureiro e confere o detalhe nas torneiras laqueadas do toalete que deixei ali para seu deleite.

Ele mesmo abre as portas internas de madeira, pintadas de esmalte que ardem aos olhos combinando tons laqueados de bronze, diante das portas de ferro adornadas de cristal biso tado ele se detém, e um reflexo caleidoscópico da sua face se materializa. Sua feição é agradável porque viu que coloquei chuveiros em todos os quartos e que na lavanderia dois tanques garantem que os lençóis estejam alvejados. Não reconheço mais o menino dos meus devaneios e pressinto a semelhança do homem que segue para cozinha que invento. O fogão é uma construção à parte e compõe, com a serpentina, a caixa de fornos, a caixa d’água e a chaminé de grande porte, um conjunto que recebe mosaicos de fino trato. Duas pias de dimensões industriais amparam a mesa de mármore que fica no centro. Na adega que construo debaixo da copa, no subterrâneo, ele avança por entre as prateleiras e parece que está buscando um vinho de sua preferência. Todas as paredes terminam em abas, dando ao cômodo uma expressão de caixote confortável. Ainda de costas, ele enche duas taças, levanta uma delas contra a luz, depõe suavemente a garrafa no pequeno balcão que coloco à sua disposição, às pressas, para não distraí-lo. Nesse momento o grande hotel parece levitar de suas estruturas e, depois de reconhecer Otávio, aceito, reconhecendo sua voz: “Violeta, você bebe comigo?”.

Tudo aqui levou três demãos de tinta. O aspecto côncavo do teto do salão de festas cria a ilusão de aproximação com o piso nos cantos, e distanciamento no centro. Otávio e eu giramos quando começa a música.

******************** FIM

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 17/10/2013
Reeditado em 10/01/2017
Código do texto: T4529167
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