O almoço
O almoço era ideia dela. Estava pronto e com uma cara boa. A fome apetitosa convidava. A casa estava arrumada e arejada. O casal guardava segredos. Cheguei a tempo de ajudá-la a finalizar os preparativos. Mesmo prontos ainda aguardavam para serem servidos. Não compreendi, mas não me importava com o pequeno atraso, enquanto isso colocava a conversa em dia.
Em meio à animada conversa, um novo rumor chama nossa atenção. Era ele, em sua velha bicicleta, era o segredo, estava atrasado. Entrou meio sem jeito, cumprimentou a todos. Embora cada um de nós se esforçasse para manter um ambiente descontraído havia um “quê” de alguma coisa ou acontecendo ou para acontecer.
Sua chegada me tirou do prumo de segurança que até então deixava transparecer. Tentei, frente aos demais, manter uma postura firme, principalmente para não esquecer que estava noiva, em vias de me casar. Aliás, parecia ser este o motivo do almoço. Mas a presença dele ali podia ser tudo, menos uma comemoração por uma amiga que estava prestes a realizar o “sonho” de toda mulher.
Não que ele não fosse bem vindo, não de forma nenhuma, na verdade ele era bem vindo demais, é aí onde mora o problema. Era bem vindo demais na minha vida, importante demais para ser ignorado. E nossa amizade? Era qualquer outra coisa, exceto uma simples amizade.
Na verdade, a distância geográfica que havia nos separado por algum tempo, como também, a “aparente” distância social, que somente ele via, e que pela lógica devia nos separar, sempre nos manteve unidos, de alguma forma e por alguma razão. Em nossos pequenos gestos, em nossas tênues atitudes sempre ficara registrado a imensa emoção que envolvia esse “algo” que nos unia.
Sua presença perturbava meu íntimo. Colocava a prova meus verdadeiros sentimentos. Tudo estava agora sobre a mesa, a minha mesa. Todas as cartas, desordenadas, embaralhadas, confusas, como confusa era e continuou sendo minha vida. Ali, entre amigos, desfilando uma segurança trincada pelo medo, pela incerteza, me esforçava para demonstrar uma fortaleza intransponível.
Entre uma porção de alimento e outra, um esboço de sorriso, ou uma forçada gargalhada eu ia representando, e dentro de mim, meu personagem ia sangrando. Ele também estava noivo. E talvez seja somente por esse motivo que tive forças para me segurar.
Aquele almoço chegara ao seu final. Não me lembro mais quem se despedira primeiro do casal, se eu ou ele. Mas recordo à imensa vontade que me sacudia e me impelia para seu abraço, para sua vida. Eu desejei lhe falar da minha confusão, da minha insegurança, da incerteza quase certa do provável erro que estaria cometendo. Mas ele estava noivo. Parecia seguro do que estava fazendo. Eu não tinha esse direito.
…§…
Outros tempos. Mesmo casal, agora uma família, duas filhas. Uma tarde inteira na companhia deles. Almoço, lanche da tarde, muita conversa. Eu também não estava só, trazia comigo meu casal de filhos. Entre tantos assuntos, recordações, notícias, informações, pergunto por ele. O que aconteceu? Ele está bem? Por onde anda? Poucas notícias, quase nenhuma, talvez uma visita aqui, outra acolá. Ele estava na cidade, residia na cidade, mas pouco se viam. A vida cuida de nos manter ocupados demais, o tempo passa, e cada um vai cuidando de si.
Alguns optam pelo anonimato, outros pelo contato. O contato foi minha escolha, ao menos com esse casal amigo. Os visitava em todas as ocasiões que estava por aqui. Certo é que a vida tem seus trejeitos e seus arranjos. Poucos dias após aquela tarde, ainda por aqui, o telefone de casa chama. Atendo. Ouço meu apelido. A voz não me é estranha, mas com certeza ninguém da família. Só a família me chama pelo apelido. Pergunto quem? Não responde, vai falando coisas, do tempo, da saudade. Ouço em silêncio enquanto busco conectar a voz à pessoa. VOCÊ?
Sim. Quem mais? Então ele me diz que havia passado na casa do casal amigo, pouco depois que eu havia saído. Foi por muito pouco tempo mesmo, quase nos esbarramos. E disse também, que já fazia muito tempo que não os visitava. Coincidência? Talvez. Falamos de muitas coisas. Quis saber se estava de volta ou de passagem. Quis saber quanto tempo ainda ficaria. Quis me ver.
Fui ao seu encontro. Chegou primeiro. Aguardava-me. Abraçou-me. Conversamos longamente. Quis saber de minha vida. Quis saber se fui feliz, se não fui. Como tinha sido meu casamento. Por que estava só. Tantas coisas a ser ditas. Coisas nossas, coisas de nós. Por fim falou-me dele. Não era feliz como desejava ser. Tinha problemas. Quem não tem? Em nome de algumas coisas procurava relevar outras, e assim seguia.
Falou que me amou. Todo aquele tempo me amou. Lembrou-se da carta que anunciava meu casamento. De sua dor. Disse o quanto me procurou em suas andanças. Pensou na possibilidade de entrar na minha área de atuação, para dar à vida, quem sabe, a chance de cruzar novamente nossos caminhos. Mas escolheu outra área, essa que agora é seu ganha-pão. Ouvi cada palavra. Vi sua verdade ser desnudada. Mas vi também sua batalha. A batalha entre o amor e o dever. O dever venceu.
Enquanto ele falava meu ser sangrava. Enquanto o ouvia custava crer que durante todo o tempo que ele me amava, com aquele amor sem mácula, eu mendigava as migalhas de um desconhecido qualquer. Enquanto ele me procurava, eu me perdia nas muitas encruzilhadas e armadilhas da vida. Eu me arrastava levando sozinha o peso do sonho desfeito, o dissabor do desengano, a dor da separação que separa mães e filhos por causa do custo da própria vida. Enquanto ele me amava, Eu sangrava.
…§…
O começo foi assim como a vida escreve. Nada de mais. Só uma novidade grande no caminho de algumas famílias e da minha. Uma novidade verdadeiramente nova como nunca antes tínhamos assistido. Nós, eu, minha mãe e irmãs e irmão frequentamos juntos as reuniões, ouvimos atentamente aquilo tudo, nos admiramos, nos encantamos e ficamos. Fomos convidados e aceitamos o convite.
Começamos a conviver com muitas outras pessoas. Não fosse pela grande novidade creio que jamais teríamos nos conhecido. Entre aquelas pessoas todas estava ele. Grande, encorpado, pele escura, olhar doce, sorriso sincero e retraído. Onde têm jovens a paquera é inevitável. Minha idade não foi empecilho para ser grandemente assediada, era mais velha do que a maioria.
Entre todos que me assediaram, ele me agradava mais. Seu assédio era sutil, quase imperceptível, não o bastante para que eu não percebesse. Percebia e amava. Esperava que ele buscasse ocasião. Ele mantinha certa distância. Não compreendia a razão. Outros mais atrevidos ousavam e não perdiam oportunidades. Havia um mais ousado, jamais o escolheria. Embora gostasse da sua companhia e amizade, não seria capaz de superar sua deficiência.
Certa noite, eu optei por um dos presentes. Ele não estava. Foi uma estratégia para não dar espaço para o mais ousado. Desapontei a todos com minha escolha. Principalmente a ele. Mas nada mudou. Minha escolha sempre foi ele. Durante esse tempo, mesmo acompanhada, sinalizava para ele a minha escolha, na expectativa de ser entendida.
Findo o relacionamento estratégico, nos aproximamos mais. Agora havia todo espaço necessário para uma decisão. Tivemos um lance tímido, sem definição. Precisei mudar de endereço, por razões financeiras. Fui residir próximo ao centro da cidade. A ideia era logística. Foi um grande lance para a família.
Afastamos-nos. Planejei continuar os estudos. Agora um curso técnico. Não foi possível estudar aqui. Teria que escolher entre o curso e o emprego. Momentaneamente escolhi o emprego. Nesse tempo, vez ou outra nos falávamos. Vez ou outra nos víamos. Fiz inscrição para o mesmo curso em outra escola. Teria que residir no local para estudar. Outro estado. O Rio de Janeiro. Fui.
Agora ficamos mesmo separados. Trocamos correspondências por muito tempo. Não me lembro o conteúdo das missivas, mas lembro que queria que ele viesse estudar onde eu estava. Esperava por isso. Sentia solidão. Queria sua companhia. Em sua vida havia muitas restrições para tal projeto. Restou-nos a correspondência. Com o tempo foi diminuindo.
Aconteceu um namoro. Cessaram as cartas. Foi um namoro sem pretensões. Somente uma forma de compartilhar com alguém. O curso sempre foi meu maior foco. Tinha planos. Voltar para meu lar. Trabalhar e seguir. Quem sabe um dia um curso superior. Um casamento também seria bom, pensava.
O namoro cresceu, teve seus altos e baixos, mas se avolumou e caminhou para as bodas. Quando surgiu essa possibilidade comuniquei a ele a novidade. Não esperei respostas, sabia que não viria. Talvez soubesse que o ferira, não queria tê-lo ferido. Retornei para meu lar. Encontrei trabalho. Começaram os preparativos. Soube que ele também estava noivo.
Não pensei muito sobre o casamento. Estava ocupada com os preparativos. Seria simples, mas dava trabalho organizar. Quando a data se aproximou, a dúvida chegou. A confusão aumentava. A incerteza se instalou. A angústia e o medo deram as mãos. Foi nessa ocasião que fui almoçar com o casal amigo.
O casamento aconteceu. A maternidade. A separação. O início da jornada que agora caminho. Foi difícil. Foi cruel. Se ele sofreu por mim, eu agonizei sem ele. Se ele chorou sem mim, eu sangrei a falta dele. Quando ouvi de sua boca sobre o seu amor por mim, reconheci o motivo da minha inanição. Quando ele confessou seu sonho de felicidade ao meu lado, percebi o motivo da minha solidão.
FIM