Página Quinze
Depois que me aposentei, percebi que a minha presença a tempo inteiro, atrapalhava o ritmo da casa. Pietas se irritava mais e todos passaram a olhar-me como o obstáculo que surge em todos os lugares, em qualquer caminho. Eram meus filhos os donos do espaço desde que, cansada de viver, minha mulher foi embora sem se despedir. Acordei a seu lado, estátua de marfim gelado e hirto. Não sofri. Todas as lágrimas que seria normal verter naquela ocasião, chorei antes porque muito antes fui assistindo, por más palavras e ações fortes, à morte do amor. Senti-me exilado na minha casa. Senti que o tempo pode amargar na boca, na mente e no coração de quem o tem como adversário. Fugir não podia. Fiquei, portanto. Passei a sair cedo de casa. Levava o cão e percorria o parque, as ruas do bairro, os jardins. Arranjei novos amigos para a conversa mas isso não bastou. Quase por acaso me propus a alfabetizar Jerónima e, dias depois, Raul, um seu vizinho. Em breve éramos dez nas aulas que tinham lugar na mesa que foi de jogo. No fim das aulas, lia textos de minha preferência ou as notícias do jornal. Um dia, reparei que Jerónima vinha remoçada e noutro que cuidava do cão com desvelos de dona. Ontem ela estendeu-me um livro e pediu-me que lesse, só em casa, o recado da página quinze. Que na página seguinte escrevesse a resposta e lhe devolvesse o livro logo que decidisse alguma coisa. Assim fiz. Não gastei muito tempo a meditar e, na página dezasseis em letra grande e limpa para que não houvesse dúvidas, escrevi: sim.