Gente Comum
Visto a camisola de lã mas sinto o frio a morder-me as canelas desprotegidas. Deixo a porta no trinco e apresso-me. O ar cortante invade o interior do casaco e acentua o meu desconforto. Os lábios gretados apelam ao aconchego quente da língua mas resisto e cerro-os. As palavras que não digo acabam escritas no meu pensamento. Negras num suporte muito branco, assim como que gravadas para melhor leitura. São imprecações que medeiam outras conjeturas. Penso em ti como um cálido conforto mas nunca nos falámos. O autocarro tarda e, na paragem, entre os muitos que se juntam para melhor vencer o vento, estás tu. Fechada na capa comprida e no cachecol negros és uma imagem da desolação. Imagino que tenhas uma história triste mas adivinho, pela determinação dos teus olhos, que em breve vencerás tudo. A viuvez, a solidão e a falta de meios de uma vez só e sinto-me, só porque o desejo, parte dessa empolgante aventura. Estou sentado a teu lado e olho-te pelo canto do olho. Apanho a tua revista que um solavanco maior jogou para o chão e a conversa segue-se ao sorriso e ao agradecimento. Deixei de sentir as palavras e o riso abrindo novas gretas na pele castigada da minha boca. Nenhum dos dois deu pela viagem. Sei que passaremos a esperar um pelo outro. Sei que entrei na tua vida para ficar.