Fonte dos Amores

Nossos momentos? O que restou de todos os nossos momentos? Não fazia mais distinção entre o início e o fim da frase depois que a recebi, palavra por palavra, em uma noite em que a chuva não amenizava o calor do verão.

Não podia sequer ser considerada uma oração, entretanto a frase que nem sujeito tinha, encontrava dentro da sua estrutura composta por artigos, preposição, verbo, substantivo e pronomes - que pareciam descrever meus sentimentos ao ouvi-la (interrogativo, indefinido e possessivo) -, a energia necessária para permanecer viva na minha mente do amanhecer ao pôr-do-sol do pôr-do-sol ao amanhecer.

Eu, um professor de física, estava diante de um sistema que verdadeiramente conservava sua energia durante todas as mudanças de fase que sucederam àquele dia: perplexidade, tristeza, depressão, angústia e solidão.

O fim da nossa história estava próximo, nem os latidos insistentes da minha cadela desviavam minha atenção do que se tornara o epicentro da minha vida nos últimos meses. Pouco sabia se clamavam por carinho ou por alimentação.

Qual o antídoto para o que me envenenara, turvando minha visão e me fazendo percorrer caminhos que me deixavam cada vez mais perdido?

Busco nossas fotos na parte de cima do armário, quase tão inalcançáveis como os momentos que nelas estão registrados, só que aqui um banco de três pernas solucionou a questão.

Fim de ano em Ilha Grande – 1993, Carnaval em Búzios – 1999, Aniversário de 50 anos da mamãe – 1994, Lua-de-mel em Angra dos Reis – 1989, Festa da empresa – 2000... Todos os álbuns tinham referência e data, ela sempre gostou de organizá-los e dizia que fazendo isso era uma maneira de manter a conexão entre as diversas fases da sua vida.

Festa de noivado – 1986, Formatura – 1990, Fonte dos Amores – 1984, Natal – 2002, Natal 2004.

Espalhando os álbuns pela cama, procuro ordená-los cronologicamente, como se pudesse reconstituir através de imagens obtidas em fração de segundos, no abrir e fechar do diafragma de uma máquina fotográfica, a história de nossas vidas.

Para ela a fotografia não era apenas um momento perdido na história e sim um portal do tempo que nos permite regressar ao passado, trazendo à tona todos os sentimentos vivenciados.

A única coisa que eu precisava era encontrar o ponto exato a voltar, mas alguns álbuns e muitas fotos depois, já não conseguia perceber a diferença do seu sorriso na formatura, na foto de fim de ano e na festa da empresa!

Um álbum desgastado, como se mais manuseado que os demais, me chama a atenção: “Fonte dos Amores – 1984”. Quando estava organizando os álbuns não tinha compreendido porque ela o tinha identificado daquela maneira, agora a curiosidade me impulsionava a explorá-lo.

Foram tiradas na Lapa... Tem uma turma encostada em uma das colunas dos arcos que sustentam o trilho do bonde que liga Santa Tereza ao centro do Rio, e tanto eu quanto ela estamos na foto, mas porque tão distantes?

Lógico! Não éramos namorados nesta época! Mas, então porque estávamos juntos?

Agora estou lembrando, foi a primeira vez que ia ao tão comentado Circo Voador, eu ganhei um ingresso em uma das promoções loucas que a Rádio Fluminense FM realizava. Se me lembro bem era justamente para participar de um show promovido pela emissora no local. Eu morava na Tijuca e não sabia bem como chegar lá, me disseram para pegar um ônibus que deixava perto. A orientação era deixá-lo seguir pela Riachuelo e descer próximo aos Arcos da Lapa, mas também tinham falado da Praça da Cruz Vermelha como ponto de aproximação do local que deveria ficar. Então, por instinto, quando contornei uma praça e avistei o prédio da Cruz Vermelha ao meu lado esquerdo, desci. Caminhei em círculos por alguns minutos até me dar conta que soltando antes e sem um mapa, estava perdido! Hoje parece tolice, mas naquela época nunca tinha ido para aqueles lados.

Eu olhava para os rostos das pessoas procurando identificar aquele que poderia me dar o caminho do “Circo Voador”. Com um nome deste, se perguntasse para qualquer um podiam me chamar de maluco. Ou então fazer uma piadinha do tipo: já experimentou olhar para o céu?

Avistei um grupo de rapazes e garotas da minha idade em frente a um grande portão de ferro que dá acesso à entrada principal do prédio da Cruz Vermelha, situado entre as ruas Carlos Sampaio e Henrique Valadares, e resolvi perguntá-los se sabiam onde ficava o Circo.

A resposta da garota ruiva não poderia ser melhor: Estamos indo pra lá!

A garota ruiva, foi esse o primeiro momento que a vi! Ela se destacava do grupo não só pelos seus cabelos como pelo estilo de se vestir, colorido e despojado.

O tempo que seu rosto fitou o meu para pronunciar aquelas quatro palavras foram suficientes para eu ficar encantado pelo seu olhar. Não porque seus olhos eram grandes, com pupilas de um negro intenso e brilhante, mas porque irradiavam uma sinceridade avassaladora.

Lembro que seguimos pela Av. Mem de Sá, passando pelo IML onde uma placa pendurada chamava a atenção para ser esta uma casa de ciências e não apenas para onde se levam os corpos sem vida.

Em menos de meia hora o grupo que guiava parou em um pequeno estabelecimento onde não se via nada além do que garrafas e mais garrafas de aguardente. Eu, que não bebia, fui gentilmente convidado a dar uma golada como forma de batismo para pertencer ao grupo, depois um segundo gole pela amizade, um terceiro pelo show que íamos assistir... e já não me sentia tão bem!

Vejamos outras fotos: na frente do prédio da Cruz Vermelha onde não apareço, o brinde na Casa da Cachaça (era esse o nome do lugar) onde provei pela primeira vez a cana de açúcar sem ser em caldo e acompanhada de pastel, Boate Night Clube Carrossel... Boate?

Como poderia me esquecer, foi a segunda vez que a menina ruiva me chamou de idiota aquela noite. A primeira tinha sido por beber apenas para fazer parte da turma e a segunda por ter acompanhado os outros rapazes a boate que ficava em frente ao estabelecimento onde bebíamos, do outro lado da rua! Ela fez questão de nos fotografar sendo expulsos da casa, não lembro (ou não quero lembrar!) bem ao certo o que fizemos!

Caminhamos mais um pouco e já avistamos o Circo, a menina ruiva não parava de “clicar” sua máquina, o Circo com os Arcos da Lapa ao fundo, o topo da Catedral Metropolitana à esquerda, os majestosos prédios da Petrobrás e do BNDS... Tudo era pano de fundo para o Circo.

Contornamos o Circo passando por construções onde se liam nas fachadas “Fábrica de cofres progresso” e “Fábrica de fogões progresso – fundição de ferro e outros metaes”.

Fundição Progresso... Será que os jovens que vão hoje aos shows no local sabem porque se chama assim?

Chegamos um pouco antes de horário marcado, tínhamos tempo para mais fotos... Quase sempre me davam a máquina para tirar foto de todo o grupo, fosse nos Arcos, em frente ao Circo ou sentados na calçada aguardando a hora de aberturas dos portões...

Faltavam poucos minutos para o portão abrir e a menina ruiva me chamar de idiota... pela terceira vez aquele dia.

Quando estávamos para entrar ela me pediu a capa da máquina para pegar seu convite que tinha guardado ali por segurança. Não sei bem o que disse, mas lembro a resposta: idiota, como pode ter perdido a capa da máquina!

Fiz a única coisa que me restava, entreguei-lhe o meu convite e me afastei do grupo. Sentei na calçada e lembrei que nem voltar pra casa direito sabia!

Ali parado era apenas um desconhecido para quem passava apressado de um lado para o outro, desviavam de mim como fariam se em seu caminho estivesse um obelisco, sem se dar ao trabalho de ler a placa de bronze afixada com toda pompa e honraria que o momento exigia.

Então alguém tocou em meus ombros... Era a menina ruiva com um sorriso amarelo se desculpando pelas vezes que me chamou de idiota e que não iria me deixar sozinho...

É isso!

- Alô? Eu poderia falar com a menina que usa um tênis combinando com seus cabelos ruivos?

- Oi, é você! Sabe que pintei o cabelo de preto e que só uso sandálias de salto alto! Diga logo o que quer, pois estou trabalhando!

- Estou te esperando às 19h na esquina da Evaristo da Veiga com a Av. Mem de Sá.

- Onde fica isso? Alô, alô? Desligou!

Às 19h...

- O que você está fazendo aí sentado?

- Sabia que viria, que não iria me deixar sozinho aqui como não deixou há vinte anos atrás!

- Do que está falando? Você bebeu?

- Hoje não fui na casa da cachaça e tão pouco visitei as meninas na boate. Não preciso provar mais nada e coloque este tênis que te trouxe, vai se sentir mais confortável para caminhar ao meu lado.

- Caminhar? Para onde? E este tênis não combina com a minha roupa!

- Coloque, por favor!

- Tudo bem, já que insiste...

- Venha comigo, só alguns passos. Lembra do dia que nos conhecemos, estávamos vindo aqui no Circo Voador...

- Nossa, como está diferente! O letreiro diz “Circo Voador”, mas não se parece nada com o que tínhamos na época.

- Tudo bem, você usava tênis e seu cabelo era ruivo... Naquela noite você desistiu de ir ao show e foi ao meu encontro, ali naquela escada em que estava a te esperar novamente. De lá, caminhamos até o prédio da Escola de Música da UFRJ onde diante do busto que ali existe, você comentou que o Circo Voador também era uma escola de música e que merecia ter na sua frente um busto em homenagem ao Raul Seixas, um gênio da música, muitos anos à frente da sua geração.

- Eram tantos os anos, que mesmo depois de vinte deles, ele continua atual...

- Como concordei naquele dia, concordo agora. Caminhamos mais alguns passos e paramos sem saber para onde ir...

- Então veio o convite dos três pês: passear no Passeio Público.

- E é este convite que te faço novamente, vamos atravessar a rua e transpor o portão de ferro que dividi a nossa história no antes e no agora.

- Naquela noite, no Passeio, só tínhamos nós e uma dúzia de bustos a nos observar. Como agora, caminhávamos de mãos dadas sem muita pressa, sem ter aonde chegar.

- Foi então que no meio do caminho você disse que me levaria em um lugar encantado.

- Cruzamos esta pequena ponte até chegar a Fonte dos Amores...

- Você pegou duas moedas, segurando minha mão direita colocou uma das moedas na palma, dobrou meus dedos sobre ela e disse: Esta é uma fonte encantada, faça um pedido e atire a moeda em sua água que em pouco tempo o mesmo se tornará realidade.

- Então, peguei a moeda como estou fazendo agora e atirei em direção a fonte, logo em seguida você fez o mesmo ritual.

- Contrariando a lenda que reza que devemos manter sigilo sobre o pedido sob o risco de quebrar o encanto, você me perguntou o que havia desejado.

- E você respondeu: “Que o seu desejo se realize”, então imediatamente lhe pedi um beijo, pois foi meu desejo ser beijada aquela noite pela pessoa que me beijaria no decorrer dos anos que viriam.

- E desta vez, qual foi o seu pedido?

- Que o encanto desta fonte seja para todo o sempre. E o seu?

- Que o seu desejo se realize...