O JOGO

Ele está sentado no sofá na luxuosa sala, à sua esquerda um conjunto de mesa e duas confortáveis cadeiras com um belo tabuleiro de xadrez com peças ricamente trabalhadas.

Levanta-se vai até a mesa olha demoradamente para o tabuleiro, quanta partida jogara com Ana e que partidas! Estavam em pé de igualdade na qualidade dos jogos, no mesmo patamar. Se bem que nos últimos anos ela estivesse mais hábil, mais ousada nos lances, em dez partidas fatalmente eram oito empates, fora os empates, ora ele, ou ela venciam.

Caminhou a uma das amplas janelas da sala e olhou o belo jardim, observou Manoel o jardineiro cuidando das rosas, aquele canteiro de rosas era o xodó de Ana, sorriu ao lembrar-se de como surgira o amor e devoção de Ana pelas rosas.

Um belo jardim, uma rica mansão, cinco carros importados, dois deles blindados. Seis funcionárias na casa. É assim que ela se refere ás empregadas domésticas, uma fazenda de 650 alqueires no interior do estado altamente rentável, um casal de filhos Brenda 22 e Paulo Henrique 24 anos, ambos casados, dois netos. Paulo não podia se queixar, seus bens e os de Ana que haviam recebidos de herança foram quadruplicados.

Ele reconhecia que em questão do dinheiro e bens materiais que possuíam 70% era mérito de Ana, mulher decidida e de visão empresarial, sim, isso ele não podia negar, agradecia aos céus seu caminho ter cruzado com Ana trinta há anos.

Após todo esse tempo, ainda a amava com toda força do seu ser, e tinha certeza da recíproca. Mas pisara na bola nesse relacionamento perfeito, mulheres. Ah! Mulheres! Ela o perdoara lógico que o perdão demorou um pouco, mas quando veio foi verdadeiro e sem mágoa. Ana o amava, tinha adoração por ele, mas ela era uma mulher decidida e sabia o que queria e, não abria mão de seus princípios.

Paulo retorna para o centro da sala com as mãos nos bolsos, porque não sabe o que fazer com elas, olha fixamente para a porta onde a qualquer momento ela entrará para iniciarem talvez a última partida de xadrez entre ambos. Senta pesadamente no sofá, curva o corpo e apoia a cabeça nas mãos. Pisara na bola novamente sentia-se um merda, um filho da puta. Cunha seu melhor amigo e companheiro de todas as horas, tentou chamar-lhe a razão: Paulo cuidado, a Ana não merece esse seu pulo de cerca barato, está certo que essa modelo é uma tremenda gata, mas não vale à pena, deixa isso pra lá. Mas ele fez ouvido moco aos conselhos do amigo e entrou de cabeça na nova relação e não deu outra, sua traição veio à tona. Palhaço, sim, era assim que se sentia, um palhaço. Quando a bomba estourou, percebeu toda tristeza e frustração de Ana, sofrera junto com ela, sentiu um ódio de si mesmo por ser um fraco moral, não teve vergonha de chorar e pedir perdão novamente. Lembrava-se palavra por palavra do duro diálogo que ela manteve com ele.

-Mais uma vez você quer que eu te perdoe, será que vale à pena? Não, é claro que não, por favor, não implore, não prometa o que não pode cumprir. Porque deveria? Ah! Você me ama! Sim claro que acredito, então? Ora, eu não sou burra, por favor, respeite minha inteligência, e se fosse o contrario? Não, não estou sendo irônica, não acredita? É claro que acredita não te perdoei? Eu já te perdoei e não tenho vontade nenhuma de cobrar a sua traição. Claro eu podia plantar um chifre nessa cabeça dura que você tem pelo menos uma vez, e estaríamos quites, não deixa de ser um bom negócio você não acha? Não, não prometa nada, você age como uma criança que faz uma travessura recebe uma bronca da mamãe e depois um afago na cabeça. Ah! Meu amor, agora será diferente, para você receber o meu perdão você vai ter que lutar por ele e, se vencer essa luta que não será fácil, e aprontar de novo não haverá volta. Ora dessa vez não vou simplesmente te perdoar, como te disse você vai ter que lutar. Contra quem? Não sabe contra quem? Pensei que você deduziria logo. É contra eu em uma partida de xadrez, que poderá ser a última que jogaremos. Se eu ganhar você sairá para sempre da minha vida, e irá fazer suas travessuras com outra mulher, não mais comigo. Claro se você ganhar, te perdôo de coração, mas que fique bem claro será a ultima vez, porque se acontecer à terceira chifrada, não haverá a mínima possibilidade de acontecer à quarta. Agora vou para um hotel tentar dormir. Amanhã por volta das 14h00 voltarei para iniciarmos o jogo e, nesse intervalo espero que você tenha a hombridade de não envolver nossos filhos.

Paulo olhou o relógio: 14h10, vê Ana entrar na sala. Ana nos seus 55 anos é uma bela mulher, alta, morena de olhos azuis, só esta combinação a destaca, cabelo pretos curtos, repartidos na lateral esquerda da cabeça, cabelo este que alguns fios teimam obstruir seu olho direito de vez em quando e que lhe dão o charme que ele adora, quando ela não afasta os fios com a mão, ela os assopra dando um formato todo especial aos lábios. É a sua marca registrada. O corpo muito bem trabalhado, também pudera, desde jovem é adepta de corrida, sua especialidade é meia maratona, perdera a conta de quantas vezes a acompanhou por esse Brasil afora nas suas participações neste tipo de prova, isso sem contar no exterior, é uma perfeccionista em tudo que faz, corre religiosamente duas vezes por semana 5.000 metros. Aos 55 anos o tempo para cobrir essa distância aumentou, mas considerando a idade, seu tempo se enquadra na faixa 35/40 anos, é uma atleta perfeita.

-Preparado Paulo?

Paulo? Ela nunca o chama pelo nome, é Fofo, quando se refere a ele aos filhos e, pessoas conhecidas é: o Fofo foi á capital, o Fofo está na empresa...

-Você insiste nisso? Vou ganhar essa partida, porque você não deixa pra lá, estipule um castigo sei lá, e me perdoe, te juro nunca mais aprontarei com você, prefiro morrer a errar de novo.

Ana sentando-se à mesa com o tabuleiro.

-Insisto se acha que vai ganhar, o nosso relacionamento está salvo, até você aprontar de novo, aí...

Então?

-Então senta e vamos iniciar a partida.

Paulo se preparara mentalmente para esse momento, essa era a partida de xadrez que decidiria sua vida com Ana. Jogaria com todo seu conhecimento sobre a arte deste jogo, um lance mal calculado e tudo iriam água abaixo.

Com uma moeda na mão Ana pergunta:

-Cara ou coroa?

Em outra situação dispensaria o sorteio, e jogaria com as pretas, mas o momento não permitia isso.

-Cara.

Ana jogou a moeda para o alto deixando-a cair no chão, ambos olharam para a moeda que mostrava a coroa.

-Porque deixou a moeda cair?

-Para ficar claro que não houve interferência alguma, vamos começar? 90 minutos de jogo, está bem para você?

-Certo podemos começar.

Ana gira o tabuleiro de modo que as peças brancas fiquem com ela. Acionou o marcador de tempo e deu o primeiro lance:

1.e4. José respondeu com 1..e5

Ana 2.f4

-Gambito do rei?

-Cabe a você aceitar ou não, fica a seu critério.

-Claro que vou aceitar e jogou 2..exf4.

Ana 3.Cf3.

José Paulo analisa o lance de Ana, com o cavalo em f3, ela evita um possível cheque de dama em h4, preocupação desnecessária ele não faria esse lance.

-Lembra-se de quando nos conhecemos?

-Claro, de cada detalhe, foi naquele torneio de xadrez regional da zona sul.

-Eu consegui ir para as oitavas de final.

-Eu não passei para as oitavas, fiquei assistindo as partidas, foi quando nossos olhares se cruzaram pela primeira vez.

-E você ficou cravada ali assistindo eu jogar, perdi porque não consegui mais me concentrar no jogo depois que vi você.

Ana sorri de forma triste.

-Até parece que você perdeu por causa...

-É verdade...

-Tudo bem, mas jogue o tempo está passando.

José jogou 3..g5

Ana 4.h4

José 4..g5

Ana 5.Ce5

Paulo 5..h5

Ana 6.Bc4

Paulo levanta-se.

-Vou pegar uma bebida, você quer?

Ana fez um sinal afirmativo com a cabeça, não precisava falar o tipo de bebida, ele sabia. Recordações lhe povoaram a mente, agora não estava na sala de sua casa e sim em um torneio regional de xadrez acompanhada por seu pai, um entusiasta do jogo. Tinha dezessete anos, em uma das fazes do torneiro teve como oponente um jovem de 15 anos, que jogara de forma magistral, e não teve jeito, lembrava-se do pai assistindo sempre com um amável sorriso. Faltando ainda dez minutos ela deitou o seu rei, não havia nada que pudesse fazer para reverter o jogo.

O pai a abraçou-a

-Ana, você jogou bem, mas o garoto é fera, se você tivesse jogado Bg5 em vez de Db5.

-Nem cheguei considerar Bg5, mas fiquei na dúvida entre Db5 ou De2. Menosprezei a força do peão dele em g4.

É filha, valeu, dentro de 15 minutos vai iniciar as oitavas, o filho do Mendonça pelo jeito também não passou para as oitavas. Vou cumprimentá-lo.

-Está certo pai, vou pegar um refrigerante e procurar a Helena.

Enquanto caminhava para a cantina por entre as mesas aonde ainda havia algumas partidas em curso, seu olhar cruzou com os de um belo jovem que acabara de dar cheque mate. O jovem que após receber os cumprimentos de seu adversário pela vitória, sorriu para Ana.

-E você princesa, está participando do torneio?

-Estava.

-Rodou?

-Sim.

-Contra quem?

-O Marcelinho de Itaipava.

-Hum! Conheço a fera do garoto, acho que ele vai longe, aposto que ele ganha esse torneio.

-Talvez, mas o nível dos competidores está alto.

O jovem estendendo a mão para cumprimenta-la.

-Meu nome é Paulo.

-Ana.

-Já estão terminando de montar as mesas para as oitavas, gostaria de convidá-la para assistir, diga que sim, se disser não, desisto de jogar, só para não perdê-la de vista.

Ali Ana sentiu seu coração balançar, estava claro que era ela que não o perderia de vista.

-Vou pegar um refrigerante na cantina e volto para assistir.

Em todo o trajeto até a cantina, Ana sentiu que estava sendo observada por Paulo, virou o rosto para traz e com satisfação acompanhada por um sorriso: realmente ele está de olho em mim.

Ao voltar com o copo de refrigerante, Ana olhava alternadamente para os lances no tabuleiro e Paulo, que por sua vez mais olhava e sorria para ela, deixando de prestar a atenção devida aos lances da partida. Ao notar esse procedimento de Paulo, Ana viu que sua amiga Helena se aproximava dela, aproveitou a deixa e disse a Paulo que iria dar uma volta com a amiga, esperando com isso que ele voltasse toda sua atenção ao jogo.

Paulo levantou-se rápido.

-Se você sair daqui agora eu desisto da partida.

Helena perguntou para Paulo.

-O que está pegando?

-A Ana quer me deixar sozinho aqui.

Helena não entendeu nada e Ana explicou sorrindo.

-É que prometi a ele assistir a partida, mas ele deve estar achando que o tabuleiro sou eu.

Paulo voltou a jogar, mas pelo jeito não tinha mais interesse no jogo e, após alguns lances desistiu.

Paulo com os copos de bebidas preparadas por ele.

-Ei, ei, estou aqui onde você está?

Ana com um sorriso triste pegou um dos copos.

-O que?

-Perguntei onde você estava me pareceu um lugar bem distante.

-Sim, bem distante nos meus dezessetes anos.

-No torneio onde nos conhecemos?

-Sim.

-Então Ana, nós temos uma história tão bonita, estudávamos na mesma universidade há três meses e nossos caminhos nunca haviam se cruzado. Naquele torneio quando a vi pela primeira vez, tive certeza de que você seria a mulher da minha vida, nada, mas nada me impediria de saber tudo sobre você e onde encontrá-la.

-O ramalhete de rosas, você foi corajoso.

-Põe coragem nisso, nesse dia fiquei eufórico, sabendo que na universidade a veria todos os dias. Quando você estava saindo com o seu pai, ali naquele evento minha irmã havia recebido um ramalhete de rosas do Fernando com pedido de namoro, não tive dúvidas roubei o ramalhete e corri como um louco para te alcançar e parando na sua frente pedi licença ao seu pai e lhe dei as flores: aceite princesa como prova da minha admiração. E dei no pé, não sem antes perceber que você ficou vermelha como um pimentão.

Uma lágrima furtiva surgiu em um dos olhos de Ana.

Paulo olhando nos olhos de Ana ficou sorvendo a bebida em pequenos goles.

Ana penetrou um olhar que cravou no fundo da alma de Paulo.

-O tempo está passando, jogue.

A mão de Paulo tremia levemente quando movimentou seu cavalo para 6..Ch6, e Ana respondeu com 7.d4

Enquanto Paulo estuda o lance de Ana, ela observa atentamente o homem de sua vida com imensa tristeza, sim, tristeza e não ódio sabe em seu intimo que o fiel da balança de seu conceito sobre seu companheiro de uma vida é favorável a ele, salvo a discrepância das duas traições, sempre viveram em um mar de rosas. Ela sorri furtivamente. Trinta anos de vida em comum, ela sabe que não é para qualquer um, mas para eles foram. Meigo, amoroso, surpreendente, assim é o seu homem, capaz de no recinto de um restaurante com musica ao vivo, de repente do nada, pois lhe informara que iria ao banheiro, minutos após ele retornou com um microfone na mão acompanhado pelos músicos do conjunto cantando a canção que marcou um dos momentos mais felizes de ambos. Lembra-se com orgulho de que percebera uma pitada de inveja das mulheres acompanhadas de seus respectivos maridos ou namorados no recinto do restaurante. Ele era constante em surpreendê-la de forma inusitada nos momentos mais corriqueiros. Podia ser em casa ou em qualquer lugar, com o tempo ela e os filhos aprenderam a conhecer os sintomas que Paulo apresentava para surpreendê-la com varias formas de declarações de amor. –Mamãe se prepara que o papai aprontar de novo. Dizia Brenda nos seus dez aninhos...

Paulo 7..d6

Ana 8.Cd3

Paulo 8..f3

Ana 9.gxf3

Paulo 9..Be7

Com este lance Paulo sente-se mais seguro, o baluarte do rei branco está rompido, pensa que conduziu com maestria até ali as possíveis variáveis, após ter aceitado o gambito do rei.

Ana 10.Be3

Paulo esboça um simulacro de sorriso ao jogar seu próximo lance: 10..Bxh4+

Ana 11.R2d,

Paulo 11..gxf3

Ana 12.Dxf3

Paulo 12..Bg4

Ana 13.Df4

Paulo 13..Cc6

Ana 14.Cc3

Paulo 14..Cc7

Ana 15.Taf1

Paulo 15..Th7

Ana 16.Txh4

Paulo 16..Cg6

Ana 17.Txg4

Paulo ficou intrigado e preocupado com o ultimo lance de Ana, ela estava trocando a rainha pelos dois bispos, quando o correto seria salvar a rainha, ou não? Será...

Após esse seu lance, Ana analisa seu homem, acha com certeza que ele pode está a pensar que ela vai entregar o jogo e, tudo ficaria numa boa, o jogo fora uma desculpa. Não, não meu querido, teu raciocínio está errado, eu estou jogando para ganhar...

Paulo 17.Cxf4

Ana 18. Tgxf4

Paulo 18..g6

Ana 19.Tf6

Paulo 19..Cg4

Ana 20.Bxf+

Paulo 20..Rd7

Ana 21.B6c+

Paulo 21..Rc7

Ana 22.Tf7+

Paulo 22..Txf7

Ana 23.Txf7+

Paulo 23..Rb6

Ana 24.Bxg4

Paulo 24..hxg4

Ana 25.d5+

Paulo 25..c5

Ana 26.c5

Paulo 26..Ra6

Ana 27.Bxc5

Paulo 27..dxc5

Ana 28.Cxc5+

Paulo 28..Rb6

Ana 29.Txb7+

Paulo 29..Rxc5

Ana 30.Rd3

Paulo 30..Da5

Ana 31.b4+

Paulo 31..Dxb4

Ana com lágrimas nos olhos faz o lance decisivo da partida.

Ana 32.Ced4+

Paulo lentamente se levanta da cadeira e, suavemente deita o seu rei em reverencia ao rei branco. Desiste, perdeu. Não há nada que possa fazer para reverter o resultado. Acabou, perdeu a partida e seu casamento.

Nota do autor: A partida de xadrez descrita neste conto, foi travada entre W. Steinitz e G. Simonson em 1887

Roberto Afhonso
Enviado por Roberto Afhonso em 29/08/2013
Código do texto: T4457338
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