O Grande Segredo de um Senhor Solitário
Emílio era uma figura austera. O típico “velho rabugento”, “ranzinza”, adjetivos que diversas vezes extraíra dos sussurros proferidos pela boca de vizinhos e de Clarice, sua empregada de longa data. A idade avançada – estimada pelos curiosos em cerca de oitenta anos - não comprometeu sua audição; subestimavam-no, acreditando que era incapaz de compreender à distância as palavras que o criticavam. Mas ele sempre ouvia.
Pouco se sabia sobre sua vida, embora morasse no mesmo lugar há muitos anos. Fechado e indelicado como era, não permitiria maiores aproximações de terceiros interessados em conhecê-lo melhor. O que todos sabiam é que morava completamente só - talvez por isso se mostrasse sempre tão amargo - mas o resto era um mistério. Não tinha ninguém. Alguns se compadeciam em função disso, mas logo voltavam a lhe maldizer, uma vez que sempre implicava com os serviços de Clarice, com o barulho da rua, com as crianças que brincavam em frente à sua velha casa. Implicava com tudo, parecia viver em função disso, e não demonstrava sentimentos por qualquer coisa ou pessoa.
A casa, visivelmente antiga, tinha objetos de alto valor. Não sabiam a origem do seu dinheiro, mas era nítida a vida confortável que aquele senhor sempre levou. A mobília rústica estava incrivelmente bem conservada. Tudo de extremo requinte e bom gosto. Todavia, era uma casa fria, escura. Dizem que uma residência adquire em pouco tempo a essência do proprietário; talvez resida aí a explicação para aquela aura pesada. O próprio sol parecia recusar-se a iluminar o ambiente.
Naquele dia, Clarice perguntou ao patrão se poderia levar o filho, Caio, para passar a tarde com ela, enquanto terminava o serviço. O garoto sairia mais cedo da creche e não podia ficar sozinho. Emílio resmungou, deixando claro que não gostava de crianças, mas concedeu a permissão, já que não havia outro jeito. Pouco depois de virar as costas para a empregada, escutou um sussurro. “Velho mal amado”, foi o que saiu da boca de Clarice. Ficou momentaneamente paralisado. Não, isso não. Velho, tudo bem, mas mal amado ele não era. Aquilo o impactou mais que de costume. Sem dizer uma palavra, arrastou os chinelos até um dos quartos da casa.
Era um quarto que se encontrava sempre fechado. Não gostava que entrassem ali. Nem mesmo Clarice tinha permissão para fazer a faxina sem prévia autorização. Caminhou lentamente até a cômoda encostada em uma das paredes, levantou o fundo falso da última gaveta e tirou de lá uma chave. Com esta, abriu a primeira gaveta, sempre cuidadosamente trancada. Em meio a inúmeras fotos antigas, papéis amarelados e outras recordações, encontrou a caixinha de música. Esteve ali o tempo todo, devidamente guardada. Foi com ela que pediu Otília em namoro, num dos bancos da praça, muitos anos atrás. A mulher da sua vida – e agora dos seus sonhos – não conteve a fascinação e as lágrimas ao erguer a tampa da caixinha de música e vislumbrar a pequena bailarina dourada que girava ao som da Gymnopédie nº 1 de Erik Satie. Sem titubear, aceitou o pedido e entregou-se aos braços de Emílio, que jamais poderia se esquecer do olhar intenso da amada, uma mulher belíssima em todos os aspectos e sempre muito elegante.
Ele agora se recordava com clareza do momento, enquanto repetia mentalmente que mal amado não era. Desejou por um instante voltar no tempo e resgatar Otília, para provar a todos que era capaz de amar com toda a sua alma. Porém, há anos essa capacidade estava enterrada, no mesmo caixão que o corpo inerte da mulher. E voltar no tempo estava além de suas possibilidades. Encontrava-se como a caixinha de música, que não mais tocava a melodia, tampouco funcionava o mecanismo que fazia a bailarina girar. Não havia mais encanto ali, a inércia tomou conta de tudo.
Depois de refletir, respirou fundo e tomou uma decisão. Foi para o seu quarto e se pôs a escrever uma carta. Nela, os dizeres: “minha eterna Otília, não se passou sequer um único dia sem que estivesse presente em meu pensamento e em meus sonhos. Chamam-me de amargo, mal amado, frio. Mal sabem eles que me tornei o que sou hoje por conta do desgosto que sua partida me trouxe. Por que? Por que existe essa coisa chamada morte? Só para encerrar nossos sonhos? Pois saiba que você ainda vive em mim. Está com todo o vigor nas mais doces lembranças que me povoam, e nos mais mágicos dos meus sonhos. A vida já não faz mais sentido. Torço para ir ao seu encontro muito em breve. Sinto que está chegando a hora, e irei sem qualquer receio. Onde estiver, espere por mim; não me demoro, eu prometo.”
Levantou-se, pegou a carta e saiu de casa, sem dirigir a palavra a Clarice. Também se esqueceu de fechar o quarto das lembranças e de guardar a caixinha de música, mas pouco importava, já que o objeto sequer funcionava. Tinha algo urgente a fazer. Caminhou sozinho por alguns minutos até o cemitério da cidade. Em todos aqueles anos, jamais tivera coragem de retornar ao túmulo de Otília. Naquele momento, porém, motivado pela intensidade das lembranças e das emoções, finalmente conseguiria se colocar diante dele. Ergueu a cabeça, contemplando a imensidão. Apenas os pássaros se moviam por ali.
Lembrou-se então de momentos felizes ao lado da amada. Muitos sorrisos, beijos e felicidade. Era assim que se lembrava dela. Fechou os olhos por alguns minutos, a fim de se concentrar ainda mais nas memórias. Quando finalmente os abriu, retirou do bolso a carta que escrevera e a colocou cuidadosamente sobre a face superior do túmulo. Repousou a mão sobre ela por alguns minutos, como se pretendesse tocar novamente o corpo angelical de Otília. Depois de profundos suspiros, lutou para se recompor, contemplou mais uma vez o ambiente e se virou, voltando então para casa. Não tinha noção alguma de quanto tempo passou ali. Sem olhar para trás, jamais imaginaria que pouco depois um pássaro azul pousou na lápide, apanhou a carta com o bico e alçou voo, desaparecendo por completo na imensidão do céu.
Ao chegar em casa, Emílio seguiu diretamente até o quarto das lembranças, para fechá-lo como de costume. Chegou à porta, que se encontrava aberta, e foi então que teve uma imensa surpresa. Lá estavam Clarice, que fazia a faxina distraída em um dos cantos, e seu filho Caio, que segurava um objeto. Era a caixinha de música com que Otília havia sido presenteada. Já preparado para dar uma bronca no garoto bisbilhoteiro, paralisou-se quando o pequeno ergueu a tampa da caixa. A Gymnopédie nº 1 começou a tocar normalmente e a bailarina do centro girava como no dia em que Otília aceitou o pedido de namoro. Ao notar a melodia repentina, Clarice se virou e percebeu também Emílio parado na porta. Preocupada com a provável reação do patrão, dirigiu-se ao filho em tom apreensivo:
- Caio, não mexa nas coisas do “seu” Emílio! Coloca isso onde você achou, anda!
Diante da ordem da empregada, Emílio se limitou a responder:
- Não, deixe o garoto.
Foi então até o menino, passou a mão em sua cabeça, sorriu e não conteve uma lágrima, que se perdeu em algum dos sulcos da sua face enrugada. Clarice, incrédula, não sabia o que dizer. Apenas observava o patrão, que pela primeira vez ao longo de todos aqueles anos esboçava um sorriso e, mais do que isso, chorava ao demonstrar um gesto de carinho. Se contasse ninguém acreditaria, mas o “seu” Emílio tinha, afinal, um coração.
Aquela seria a última lágrima de Emílio. Mas isso pouco lhe importava; já estava preparado e ansioso para encontrar-se com Otília, e agora tinha a certeza de que em algum lugar ela também o esperava. Poderia, enfim, partir em paz.
Publicado originalmente no blog pessoal "Devaneios na Ponta do Lápis": http://devaneiosnapontadolapis.blogspot.com.br/