Os embalos com Neide sábado à noite
Jorge Luiz da Silva Alves
As cores eram berrantes, estampas convidativas ao mico ou ao sucesso. Mergulhávamos nas pistas tentando reproduzir o que de melhor se riscava nos tablados da 54th de Nova Iorque, anatomias alteradas sob calças hiperapertadas em busca das frenéticas vizinhas de rua ou amigas de serviço, numa insana disputa para saber quem bebia ou trepava ou cheirava mais nas noites feéricas de sábado no subúrbio. Sim: o que antes fora Zona Rural virara subúrbio; adeus roça, chegara a Discoteca e, com ela, o glamour abrasileirado da distante América do Travolta, um tempo em que ser marginal do Brooklin era o sonho da pivetada caixa-baixa de Paciência, gente chã que brigava e se navalhava por vinis das importadoras de Copacabana sob a complacência da delegacia de costumes e alfândega, temerosos em capturar por engano um filho de coronel do Exército ou sobrinha de figurão de autarquia, abundantes naquelas diamantadas plagas. As cores eram berrantes, a vida era muito mais colorida nos setenta, e a música (qualidade indiscutivelmente superior a de qualquer outra década daquele século) conduzia-nos a loucuras em todos os dias e noites da semana, não apenas aos sábados.
Eram cores berrantes que passeavam pelos meus olhos, mas não eram do entorpecimento daquele inferninho transmutado em Discoteca nos confins dum trecho de Paciência que ainda hoje chamam de Sete de Abril; era um furdunço arcoirístico composto de blusa estampada, batom, olhos estupidamente verdes e seios túrgidos e rosados no qual me atracava nos fundos do clube local, fim do corredor do concorrido banheiro, necessidades fisiológicas, químicas, alcoólicas e sexuais aos trambolhões com duplas, trios, quartetos e mesmo carreiras-solo servindo-nos de camuflagem exótica, gente esbarrando na gente, suarentos, fedorentos, mas felizes. Eu feliz da vida, puto de paixão pela menina tímida de loja que resolvera criar coragem e se produzir toda para me permitir o beneplácito de tê-la por aquela noite de sábado, apenas e nada mais. Essa fora a advertência: dar-me-ia uma colher de chá porque fora com a minha cara, apiedara-se de tantas tentativas que esbocei na esperança de conhecer a felicidade de um universo inteiro naquele corpo rosado e violônico. Tudo correra como eu planejara. Nada correra como ela planejara – não estava nos seus planos se apaixonar por mim, pobre mulato Zona Norte exilado na roça d’oeste guanabarino ansioso por melhorias nas condições financeiras da família para retornar o quanto antes aos paralelepípedos de Vaz Lobo e Braz de Pina. Pois bem! Depois de Neide nos confins daquele clube, seus olhos estupidamente verdes e o frescor de sua rosácea carnadura, esqueci-me de minhas origens, família, emprego, vida, tudo. E ela esquecera-me de dizer, ao fim do último beijo, o porquê do nervoso sorriso e da tremedeira nas pernas, já que não teria mais chance...
Sozinho assim. Foi como fiquei durante três décadas e meia: imaginando como seria a minha vida se fosse menos boboca e exigisse mais do que a paga que me fora dada por aquela que fez meu coração de refém das dúvidas e incertezas. Garotos perdem tempo pensando em brinquedos e proteção, apenas romances de estação, como diria Paulinha Toller zunindo feito abelha selvagem na musicalidade perdida de minha juventude. Perdi meus anos em apostas por status, honra, respeito, reputação, valentias contra as contas do mês e a escravidão de muitos crediários. Nessa dança bizarra que é a gincana cinzenta da socialidade a todo custo, escutei os acordes da libertação quando passava pelo centenário casario de trabalhadores do antigo Matadouro Industrial de Santa Cruz; sempre que escutava More Than A Woman, dos Bee Gees, era a lembrança daquele sábado colorido que me fantasiava a alma, fora de Carnaval ou aniversários. Parei. Sentei no barzinho em frente ao casario e pedi o Domecq para degustar lentamente ao som do piano mágico dos anos setenta. No virar da primeira dose, uma das velhas janelas desbotadas do casario se abrira – e outra janela de surpreendente felicidade se escancarou, quando reconheci, numa figura pequenina e robusta que nela surgira, o arco-íris de sonho e magia que me aquecera o coração. Era daquela janela, casa, daqueles olhos ainda surpreendentemente verdes e vívidos, que a música escapava. E quando o sorriso também escapou do semblante de Neide agora cinqüentenária ao me reconhecer no bar, percebi o quanto Paula Toller estava certa: garotos perdem tempo pensando em qualquer truque contra a emoção. Não se impõem quando é preciso, preocupado que estão em manter a macheza e virilidade a todo custo. Pois foi o mesmo nervoso sorriso daquela noite e uma ligeira tremedeira de três décadas e meia de ausência que senti ao tocar nas suas mãos ainda na janela. Percebi, tanto tempo depois, que deveria correr e não deixá-la partir – pois, quando ela escapara-me, fora uma vida inteira que fugira. E alguma coisa muito poderosa lá em cima que gosta mesmo de mim é que resolvera me dar uma segunda chance.
http://www.jorgeluiz.prosaeverso.net
Jorge Luiz da Silva Alves
As cores eram berrantes, estampas convidativas ao mico ou ao sucesso. Mergulhávamos nas pistas tentando reproduzir o que de melhor se riscava nos tablados da 54th de Nova Iorque, anatomias alteradas sob calças hiperapertadas em busca das frenéticas vizinhas de rua ou amigas de serviço, numa insana disputa para saber quem bebia ou trepava ou cheirava mais nas noites feéricas de sábado no subúrbio. Sim: o que antes fora Zona Rural virara subúrbio; adeus roça, chegara a Discoteca e, com ela, o glamour abrasileirado da distante América do Travolta, um tempo em que ser marginal do Brooklin era o sonho da pivetada caixa-baixa de Paciência, gente chã que brigava e se navalhava por vinis das importadoras de Copacabana sob a complacência da delegacia de costumes e alfândega, temerosos em capturar por engano um filho de coronel do Exército ou sobrinha de figurão de autarquia, abundantes naquelas diamantadas plagas. As cores eram berrantes, a vida era muito mais colorida nos setenta, e a música (qualidade indiscutivelmente superior a de qualquer outra década daquele século) conduzia-nos a loucuras em todos os dias e noites da semana, não apenas aos sábados.
Eram cores berrantes que passeavam pelos meus olhos, mas não eram do entorpecimento daquele inferninho transmutado em Discoteca nos confins dum trecho de Paciência que ainda hoje chamam de Sete de Abril; era um furdunço arcoirístico composto de blusa estampada, batom, olhos estupidamente verdes e seios túrgidos e rosados no qual me atracava nos fundos do clube local, fim do corredor do concorrido banheiro, necessidades fisiológicas, químicas, alcoólicas e sexuais aos trambolhões com duplas, trios, quartetos e mesmo carreiras-solo servindo-nos de camuflagem exótica, gente esbarrando na gente, suarentos, fedorentos, mas felizes. Eu feliz da vida, puto de paixão pela menina tímida de loja que resolvera criar coragem e se produzir toda para me permitir o beneplácito de tê-la por aquela noite de sábado, apenas e nada mais. Essa fora a advertência: dar-me-ia uma colher de chá porque fora com a minha cara, apiedara-se de tantas tentativas que esbocei na esperança de conhecer a felicidade de um universo inteiro naquele corpo rosado e violônico. Tudo correra como eu planejara. Nada correra como ela planejara – não estava nos seus planos se apaixonar por mim, pobre mulato Zona Norte exilado na roça d’oeste guanabarino ansioso por melhorias nas condições financeiras da família para retornar o quanto antes aos paralelepípedos de Vaz Lobo e Braz de Pina. Pois bem! Depois de Neide nos confins daquele clube, seus olhos estupidamente verdes e o frescor de sua rosácea carnadura, esqueci-me de minhas origens, família, emprego, vida, tudo. E ela esquecera-me de dizer, ao fim do último beijo, o porquê do nervoso sorriso e da tremedeira nas pernas, já que não teria mais chance...
Sozinho assim. Foi como fiquei durante três décadas e meia: imaginando como seria a minha vida se fosse menos boboca e exigisse mais do que a paga que me fora dada por aquela que fez meu coração de refém das dúvidas e incertezas. Garotos perdem tempo pensando em brinquedos e proteção, apenas romances de estação, como diria Paulinha Toller zunindo feito abelha selvagem na musicalidade perdida de minha juventude. Perdi meus anos em apostas por status, honra, respeito, reputação, valentias contra as contas do mês e a escravidão de muitos crediários. Nessa dança bizarra que é a gincana cinzenta da socialidade a todo custo, escutei os acordes da libertação quando passava pelo centenário casario de trabalhadores do antigo Matadouro Industrial de Santa Cruz; sempre que escutava More Than A Woman, dos Bee Gees, era a lembrança daquele sábado colorido que me fantasiava a alma, fora de Carnaval ou aniversários. Parei. Sentei no barzinho em frente ao casario e pedi o Domecq para degustar lentamente ao som do piano mágico dos anos setenta. No virar da primeira dose, uma das velhas janelas desbotadas do casario se abrira – e outra janela de surpreendente felicidade se escancarou, quando reconheci, numa figura pequenina e robusta que nela surgira, o arco-íris de sonho e magia que me aquecera o coração. Era daquela janela, casa, daqueles olhos ainda surpreendentemente verdes e vívidos, que a música escapava. E quando o sorriso também escapou do semblante de Neide agora cinqüentenária ao me reconhecer no bar, percebi o quanto Paula Toller estava certa: garotos perdem tempo pensando em qualquer truque contra a emoção. Não se impõem quando é preciso, preocupado que estão em manter a macheza e virilidade a todo custo. Pois foi o mesmo nervoso sorriso daquela noite e uma ligeira tremedeira de três décadas e meia de ausência que senti ao tocar nas suas mãos ainda na janela. Percebi, tanto tempo depois, que deveria correr e não deixá-la partir – pois, quando ela escapara-me, fora uma vida inteira que fugira. E alguma coisa muito poderosa lá em cima que gosta mesmo de mim é que resolvera me dar uma segunda chance.
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