Tribulações de Amanda

Sete da manhã.

Amanda acabara de sair do banho, enrolada num roupão felpudo, quando o interfone do apartamento tocou. Era o porteiro.

- Meu ex-marido? O que esse imprestável quer?

Sentiu o sangue ferver quando ouviu a resposta. Segurou-se para não soltar um palavrão.

- Eu não vou discutir isso pelo interfone. Peça para ele aguardar na recepção.

Respirou fundo e disse para si mesma: "eu não vou deixar esse crápula estragar o meu dia".

Cada vez mais furiosa, vasculhou o closet atrás de uma roupa apresentável. Nada que parecesse um convite para o canalha instalar-se no seu sofá e tirar os sapatos.

- Deusas! - Vociferou. - Eu não mereço isso!

Jeans e camiseta? Não, largado demais. O tailleur do trabalho? Não, nem era dia útil. Um vestido? Não, a primeira coisa que ele faria seria olhar para as pernas dela. Estremeceu só de pensar.

- Nove Infernos! - Praguejou.

Acabou optando por um dos macacões que usava nas inspeções de campo, largo e assexuado. Além disso, era uma boa desculpa para que ele não se demorasse: tinha um chamado de emergência para atender!

Olhou-se no espelho do quarto, ajeitou o cabelo e tirou o interfone do gancho:

- Pode mandar o traste subir.

Cinco minutos depois, a campainha da porta da frente tocou. Abriu, e ali estava ele: paletó amarfanhado e barba por fazer. E uma mala.

- Amanda... - começou a dizer.

- Entre - cortou ela. - Mas não tenho muito tempo, estava de saída para atender um chamado do Demiurgo.

Ele entrou arrastando a mala e ela fechou a porta.

Sentaram-se em sofás opostos, frente a frente. Silêncio.

- Eu não te entendo - disse ela finalmente. - Você não é burro. Se fosse, para princípio de conversa, eu jamais teria me interessado por você. Só não entendo como não consegue se acertar na vida. Mesmo agora, às custas do meu dinheiro!

Ele esboçou um sorriso.

- Amanda, eu não tenho tido muita sorte ultimamente, apenas isso...

- Ultimamente? - Ela pronunciou entredentes. - Desde que nos conhecemos, você não consegue parar em emprego nenhum! Os que eu lhe arranjei não eram bons o suficiente?

Ele fez um gesto vago, como se quisesse pedir tempo.

- Amanda, eu sei que não correspondi às suas expectativas. Mas para provar que realmente quero mudar de vida, resolvi aceitar um trabalho no Palácio das Artes e Ofícios. Não é algo à altura da minha capacidade, claro...

Amanda fechou os olhos e baixou a cabeça, rosto coberto pelas mãos.

- ...mas é uma demonstração do quanto almejo o seu reconhecimento. Mesmo que não estejamos mais juntos.

Amanda descobriu o rosto, ergueu a cabeça, olhos bem abertos.

- Então? Qual é o truque?

- Truque?

- Deve haver algum truque nessa história. Você me diz que está aceitando um emprego que certamente considera medíocre, e não deve ser exatamente para me ver feliz. Desembuche!

Ele olhou-a com uma expressão desamparada.

- Eu fui... despejado.

- Ah! - Exclamou Amanda. - Eu sabia! Seguindo o seu raciocínio: o meu apartamento fica perto do seu novo trabalho. E aqui você poderá economizar no aluguel!

- Amanda, agora eu tenho um emprego - vou poder ajudar nas despesas da casa! - Defendeu-se ele.

- Eu não te convidei para voltar, muito menos para dividir despesa nenhuma! Eu não sou sua amiga! Sou sua ex-mulher! - Gritou Amanda, dedo em riste.

- Amanda, eu não tenho mais a quem recorrer. - Ele parecia genuinamente desesperado. - Se não me deixar ficar, terei que ir para a rua. Todos os meus pertences estão nessa mala!

Subitamente, ela sentiu-se esvaziada. E teve pena dele.

"Eu vou me arrepender disso depois", pensou.

- Escute - ela disse devagar. - Não há a menor possibilidade de voltarmos a dividir o mesmo teto. Mas...

Ergueu o indicador direito.

- ... eu fui escalada para uma série de viagens de inspeção, provavelmente vou ficar meses fora. Creio que será tempo suficiente para que você se firme no novo emprego e arranje outro lugar para ficar - antes de eu voltar, espero.

- Amanda, não sei o que dizer... é muita generosidade da sua parte...

E abrindo o velho sorriso malandro:

- Posso tirar os sapatos?

- NÃO! Está na hora de você tomar o seu rumo, tenho muito o que fazer.

Ela puxou um cartão prateado de um dos bolsos do macacão e exibiu-o entre o polegar e o indicador.

- Há um saldo de mil créditos neste cartão. Deve ser o suficiente para você passar uma semana num hotel barato. Quando estiver instalado, ligue e deixe o endereço na secretária eletrônica. Antes de viajar, eu mandarei um mensageiro lhe entregar a cópia da chave.

Ele pegou o cartão. Colocou-o lentamente num bolso do paletó amarrotado.

- Amanda, o que posso fazer para te agradecer?

- Francamente? Eu ficaria feliz se, pelo menos uma vez na vida, você me provasse que eu estou errada.

- A respeito de quê?

- De você. E agora, por favor, saia. E leve sua mala.

Ele deu de ombros.

- Está bem, eu vou...

Ergueu-se e, mala na mão, deu uma última olhada para ela. Piscou um olho:

- ... mas eu volto.

[13-08-2013]