DIANTE DO ESPELHO

Diante do espelho quase embaçado passou as mãos nos olhos e olhou com mais cuidado. Ela olhava procurando a mesma limpidez de tantos outros tempos, de tantas outras horas de análise interior, de tantas outras observações meticulosas. Olhou como que estava, naquele instante, olhando para o mais fundo de si, enxergando na sua intimidade uma quase outra. Aquele movimento era muito estranho para ela que não estava acostumada a ver-se por dentro, tentando compreender-se por fora. Os mesmos cabelos ao vento que entrava pela janela, a mesma voz a balbuciar uma vogal envelhecida, uma consoante gasta que fez calo ao sair muitas vezes de súbito sem um pensamento prévio. Quanto mais limpava o espelho embaçado, mais enxergava um ponto diferente, uma coisa nova, uma espinha que fosse, uma ruga que fosse, um fio de cabelo branco que fosse. Estava certa que naquela imagem havia algo diferente das outras que enxergou durante tempos.

Atônita e imóvel como uma estátua assustada tentou recuperar um sorriso perdido, um jeito de olhar que também havia perdido, ali, diante do espelho, parada no tempo, se recompôs e tentou afastar os pensamentos. O telefone tocou e ela não se moveu em direção a ele. Olhou-se novamente no espelho, colocou o longo cabelo de lado, o telefone tocou pela segunda vez, ela ficou de pé e puxou a blusa para baixo, o telefone tocou pela terceira vez.

– Oi!

– Oi!

– Quem está falando?

– Sou eu!

– Eu quem?

– Não está reconhecendo a minha voz?

– Não! Se não falar logo vou desligar.

– ...

– Alou! Alou!

– Alou.

– Quem está falando?

– É você?

– Você o quê?

– Ora, você que está falando?

– Não sou eu que estou ligando para sua casa, é você que está ligando para a minha, não é?

– É.

– Pois então?

– Pois então o quê?

– O que você quer?

Quem estava do outro lado ficou em silêncio. Provavelmente a outra pessoa não sabia o que queria da vida, assim como ela. Talvez também estivesse olhando-se no espelho e com muita dificuldade não conseguia se enxergar perfeitamente como antes. Talvez estivesse vendo tudo embaçado e limpara o espelho em vão. Talvez fosse alguém assim como ela que não suportando a solidão de uma casa vazia quis falar com alguém, ainda que desconhecido, e pegou o telefone e discara um número aleatório, assim como ela também fazia de vez em quando.

Ela desligou o telefone e voltou para o espelho. Teve a impressão que estava enxergando melhor. Seu rosto estava envelhecido ou era a foto de uma estranha pregada no espelho? Uma coisa que embora parada continuou envelhecendo? Um fio de cabelo branco despontava e se destacava no meio dos outros escuros. Ela tentou cortá-lo, mas acabou cortando uma mexa inteira. Passou as mãos no queixo, no nariz, na boca, nos cabelos, ela ali, parada diante do espelho era como se o tempo dos outros estivesse parado e somente o dela permanecido correndo. Lembrou de um amor não correspondido, da parte dela. Será que não era ele que tinha ligado querendo, em vão, colocar um ponto final na história ou mais uma vez tentando conquistá-la? Será que ele gostaria de vê-la assim, com certos cabelos brancos destacando-se por entre mexas escuras? Não. Não podia ser ele, certamente não era ninguém, talvez um ser imaginário criado pela sua imensa capacidade ficcional e inevitável. Talvez fosse uma voz perturbadora que veio de outra dimensão querendo pular de dentro do espelho com o objetivo de ver-se por fora, cansada de se ver por dentro.

Ali, parada diante do espelho tentou sentir o gosto do ódio ao lembrar-se de alguma desavença, aquele gosto amargo no canto da boca, mordeu o lábio para sentir que estava viva, mas saiu uma gota de sangue que se espalhou por toda a boca. Balbuciou uma palavra qualquer para gastar a saliva e se desvencilhar do gosto de sangue “não!”, falou com a voz baixa. Lembrou de todos os desencontros, de todos os momentos de desejos reprimidos. Das declarações de amor que lhe fizeram e que ela não gostando de dizer “não!”, foi obrigada a dizer. Estava cansada da vida. Queria adormecer num sonho e não acordar nunca mais. Queria dividir os poucos sonhos que tinha com qualquer pessoa que não tivesse nenhum, até que não lhe sobrasse mais nada.

O telefone tocou, ela ficou de pé. Tocou pela segunda vez, ela pensou “será que poderia ser ele?”, tocou novamente, ela saiu apressada para atender antes que a ligação caísse.

– Alou! – disse com a voz trêmula.

– Alou! Sou da empresa de telefonia e queria saber se você deseja o plano de... – ela desligou o telefone na cara da operadora de telemarketing, se jogou na cama de casal e ficou chorando com a cabeça embaixo de um travesseiro azul com as iniciais do nome dela bordadas.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 28/07/2013
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