Doce

Com os dedos magros e gélidos para fora das mangas de lã Carlos escreve.

Batidas fortes de datilografo moído, vinho doce feito sangue, palavras miúdas e uma esposa por opção. Digo por opção porque no fundo as pessoas se casam por obrigação, gravidez, frustração, carência, dinheiro, amor, sexo e outras parafernálias mais.

Carlos se casou por vontade mesmo, não é bem um casamento, na verdade é um remendo de trapos.

Homem vivido, quarenta e sete anos, folião de raça, sem filhos, sem emprego e que as vezes se veste de poeta. Foi gingando no balaço da colher-de-pau de uma mulata baiana que atravessou o São Francisco para vender cocadas na praça General Tibúrcio. Claudio a pedido de uma de suas namoradas de ocasião foi comprar cocada branca; ao se aproximar da humilde barraca de improviso foi logo mirando na moça. A cor, o suor, tacho, em um curto tempo Carlos desejou bolinar aquele grande "tacho." Aquilo para ele era carne nova, estava acostumado com moças fracas, fumantes e meio adoentadas, porém encantou-se por uma moça ainda sem nome, uma vendedora de cocada, matuta de sorriso ameno.

A moça sem nome na verdade se chama Helena, não a bonita de Tróia, mas sim o resto de parição, filha caçula de dona Maria, uma ex-prostituta que largou a profissão para viver de acarajé, cocada e patuá, mas isso não vem ao caso. Helena quando reparou os olhares do moço de cabeça grisalha se acanhou um pouco, porém revidou com gosto. Olhou para tudo e amoleceu quando mirou para os olhos claros de Carlos. Até hoje ela diz que tem sorte por ter um homem que sorri pelos olhos.

A valsa de olhares não durou muito, apenas o bastante para a carnes e as almas trocarem farpas e flores, um carinho e um murro antes mesmo do toque de peles, uma troca de salivas psicológica, um beijo fatal para dois. Aquilo foi mas que qualquer sentimento já inventado. Não foi preciso um namoro, um noivado, um casamento ou um divórcio. Foi coisa pura, aconteceu como quem anda só e encontra uma pequena pedra, vai chutando delicadamente até chegar em casa. É uma coisa simples, Sem amarração, aconteceu por acontecer. Carlos faz poema, Helena faz cocada, Maria faz de tudo, a namorada de ocasião espera por doces e a pedra continua a rolar.



Lélia Borgo
Enviado por Lélia Borgo em 27/07/2013
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