Quando O Amor Ainda Vive
O médico deu uma derradeira olhada no esquálido velhinho deitado em um dos leitos da grande enfermaria, em seguida fitou uma jovem delgada de rosto pálido e delicado, e longos cabelos castanho-claros, e recomendou:
— O paciente se recupera bem, eu o deixo em suas mãos, enfermeira. Cuide dele.
— Certamente, doutor — respondeu a moça já se encaminhando à cama do paciente.
— Bom dia, senhor Frederico! Espero que esteja se sentindo melhor hoje. Precisa de alguma coisa? O velho deu uma tossida e falou sem titubear:
— Sim, traga-me uma garrafa de vodca.
— Creio que isso não será possível. Agradeça a Deus e aos médicos, a pneumonia podia ter lhe matado.
— Quero voltar para casa.
— Oh! O senhor vai me fazer essa desfeita, fui escalada para cuidar do senhor, e já quer me abandonar? Sossegue, se tomar seus remédios direitinho, logo o doutor vai lhe dar alta.
O velho nada respondeu, e começou a examinar a enfermeira com os olhos de um investigador. De repente se lembrou de algo que ficara há muito, sepultado no passado, mas que acabara de ressurgir.
— Como se chama, moça?
— Lenita.
— Você é muito bonita, fez-me recordar da minha primeira namorada, meu único e verdadeiro amor. É mesmo impressionante, se vocês duas fossem da mesma época, eu pensaria se tratar de irmãs gêmeas, tal é a semelhança. Mas não, afinal isso foi há mais de trinta anos.
— Não me diga, e o que houve com ela? — Indagou a jovem enfermeira admirada.
— Ah! Lenina era cantora de jazz, tinha uma voz maravilhosa! Minha banda a acompanhava nas apresentações. Eu era o baterista, chamavam-me de Freddie Veneno. Lenina e eu nos amávamos, sonhávamos com a fama, e talento para isso não nos faltava. Mas um dia ela se cansou de correr atrás de um reconhecimento que nunca vinha.
— E o que aconteceu depois?
— Ela deixou a banda e foi embora sem se despedir de mim. Tempos depois, acabei sabendo que ela se casou com um rico empresário do ramo da construção civil.
— E o senhor nunca mais teve notícias de Lenina?
— A dor foi tanta que eu simplesmente não quis saber mais nada.
O velho Frederico voltou a tossir, e duas grossas lágrimas rolaram de suas faces sulcadas pelo tempo.
— Agora descanse um pouco, Frederico — ponderou a dedicada enfermeira — mais tarde venho ver como você está.
Nos dois dias que se passaram, o velho não abrira a boca. Lenita ressurge novamente, trazendo a bandeja de comida.
— O senhor tem andado muito calado.
— Apenas não tenho muito que dizer.
— Pois eu tenho boas notícias, o doutor deve passar a qualquer momento para lhe dar alta. Agora coma, por favor, Frederico! Daqui a pouco eu venho buscar a bandeja.
O velho comeu aquela comida sem condimento, achando gostoso dessa vez. Logo voltaria para o seu barraco, onde fora socorrido por vizinhos, quando adoecera. Não tinha ninguém nessa vida, exceto um cãozinho desses, tipo rasga-saco: “Será que o estão alimentando?”, pensou consigo mesmo: “Pobre amigo! Tem dias que não tem comida nem para mim”.
— Muito bem — a enfermeira retornara satisfeita — vejo que comeu tudo!
— Sim, comi.
O semblante da jovem tomou um aspecto grave, quando recomeçou a falar:
— Sabe, estive pensando no que me disse sobre Lenina, é tão triste! — E retirando do bolso uma folha de papel dobrada, entregou-a ao velho e completou: — Espero ter tomado a decisão correta, pois essa folha é uma página do diário de minha avó materna.
Frederico desdobrou o papel e com as mãos trêmulas pela emoção, começou a ler aquela letra que reconheceu imediatamente.
“Querido Freddie: espero que um dia você possa me perdoar por tê-lo deixado, na verdade espero que eu mesma possa me perdoar um dia. Meu casamento foi um martírio, uma prisão. Devia ter ficado com o nosso amor, mas erroneamente, escolhi a riqueza, e essa me durou tão pouco! Mas mesmo não merecendo, Deus me deu dois presentes, Frederico; minha filha e minha neta. Elas me dão o pouco de felicidade que tenho nessa vida. Amo-te, Freddie, e sempre te amarei; só que agora é tarde para nós”.
A enfermeira prosseguiu:
— O casamento de Lenina durou poucos anos, Frederico. Meu avô, segundo conta minha mãe, era um homem muito ciumento e violento. Ele a espancava e a mantinha presa em casa. Como se isso não bastasse, o marido de Lenina ainda era alcoólatra e viciado em jogo. Quando finalmente a cirrose o levou, só restaram as dívidas. Minha avó lutou muito para criar minha mãe sozinha, e foi por esse motivo que ela jamais pôde lhe procurar, Frederico. Vovó morreu de câncer, há dois anos.
— E eu que cheguei a imaginar que ela houvesse se esquecido de mim — respondeu chorando aquele homem, que dias atrás parecia impassível.
— É o que sempre pensamos — balbuciou Lenita.
Quando o velho ex-baterista de jazz saiu do hospital, seu coração estava triste, e paradoxalmente feliz. Seu amor pela jovem e linda jazzista não morrera, e agora o amor, e não o ódio de outrora, estava mais vivo e intenso do que nunca.
Dia de choro e de riso...