Mundo Cão - cap. 37
~ - Qual foi o seu motivo pra ter me abandonado? ~
Piedade estava sem ação, não se atrevia a olhar para Yago. Com os olhos imundados, ela tentava articular mentalmente o que deveria dizer. A voz não saia, apenas um choro abafado de pesar.
Durante anos fora atromentada pela dor e a pela curiosidade de saber onde estava seu filho, o que a vida tinha feito daquele menino. Agora ele estava ali na sua frente, e ela não sabia o que fazer nem o que dizer. Queria abraça-lo, beija-lo, perdi perdão por toda mágoa e dor que causara. Dizer que não teve escolha, que fora necessário. E se pudesse voltar no tempo tudo seria diferente.
Mas não fez nada disso. Seu corpo tremia e sua cabeça girava, o coração palpitando num ritmo acelerado. A correntinha em suas mãos, pareciam pesar. O peso de todos aqueles anos de dor e arrependimento.
- Você não vai dizer nada? - Yago encarava a mãe com um olhar gélico, fazia uma grande força pra não chorar e nem gritar. Sua vontade era de explodir, de colocar pra fora toda sua mágoa. - Eu não sou digno nem pra saber o porquê?
Dona Pie juntou toda sua coragem para encarar o filho nos olhos.
- Eu não queria... - Ela começou a falar pausadamente. - Eu era jovem, estava sozinha e não tinha sustento nem mesmo pra mim. Eu estava pensando em você quando te deixei naquele orfanato.
Yago estava sério, parecia não acreditar na história da mãe.
- Quem é meu pai?
- Isso não importa! - respondeu Piedade incomodada, desviando o olhar.
- Eu quero saber, Piedade.
- Isso não é importante. Eu sou sua mãe, e basta.
Piedade esticou as mãos tentando tocar o rosto de Yago, que se esquivou das mãos dela.
- Eu preciso saber da minha origem. - ele encarou a mãe, agora com lágrimas nos olhos. - Você não pode me negar isso.
- Tudo bem. Mas é uma história longa.
- Sou todo ouvidos.
Piedade enxurgou os olhos, respirou fundo. Era hora de remexer em velhas feridas:
- Quando sair de Goiás e vim morar aqui em Minas, fui trabalhar de empregada na casa de um fazendeiro rico. Eu era muito nova, Yago, não conhecia nada da vida. Esse fazendeiro ficou encatado por mim, sabe, aquela velha história do patrão querendo se divertir com a empregada. Eu resistir a suas investidas, morria de medo da esposa dele descobrir, ela era brava e já não gostava muito de mim.
"O tempo foi passando, foi longos dois anos nesse lenga-lenga, ele tentando e eu fugindo. Nessa época conheci o Jairo, o meu finado marido, e começamos a namorar. Pensei que estando comprometida, o fazendeiro ia parar com as investidas, mas foi o contrário, ele ficou ainda mais indecente e dava em cima de mim descaradamente. Tanto Jairo quanto a esposa do fazendeiro começaram a estranhar as atitudes dele. E eu resistia bravamente, precisava muito daquele emprego."
"A sogra do fazendeiro ficou doente, e a esposa viajou com os filhos para cuidar da mãe. Foi aí que tudo aconteceu. Na mesma noite em que a esposa viajou, o fazendeiro me pediu pra ficar mais um pouco na casa, pois ia receber alguns amigos. Eu fiquei, mas não veio nenhum amigo."
"A casa estava vazia, só eu e ele... Ainda sinto a sensação ruim daquelas asquerosas mãos dele em mim. Ele era mais forte que eu, e me ameaçava caso eu gritasse. Eu era virgem, e estava apavorada e com medo, sentia muitas dores, ele me prendia com as mãos com muita força, me machucando. Eu gemia de dor e ele ria do meu sofrimento, ele estava tendo prazer em me fazer mal... Bem, acho que essa parte não importa a você, desculpa, é que isso me marcou... Seguindo. Só me lembro de ter saído correndo daquela casa, sentia um misto de dor, medo e vergonha."
"Depois disso, continuei a trabalhar naquela casa por mais dois meses. Quando a esposa voltou, ela mesmo me mandou embora, sem nenhuma explicação. Jairo me pediu em casamento. Quanto descobrir que estava grávida, Jairo ficou revoltado e me deixou. Fiquei desesperada, não sabia o que fazer da vida, pensei por várias vezes em suicídio, não sabia como ia te sustentar, aquele homem não ia reconhecer um filho de empregada. Era véspera de ano novo quando você nasceu, era um bebê tão lindo, com seus olhinhos verdes e os cabelinhos dourados. Eu te amava, mas fiquei triste em ver que você tinha nascido a cara de seu pai."
"Ganhei alta da maternidade no primeiro dia do ano, e o Jairo me esperava na porta. Fiquei muito feliz por vê-lo, ele disse que me amava muito e que estava disposto a me perdoar e se casar comigo. Mas, ele colocou um porém, ele se recusava a criar um filho que não era dele... Yago, eu tive que escolher, e juro que doeu muito ter que te deixar. Eu não teria como cuidar de você sozinha, ninguém me daria emprego tendo um filho pequeno. Na minha cabeça, jurei que iria te buscar quando pudesse te dar uma vida digna, o Jairo querendo ou não, eu ia te busca. Mas, anos mais tarde, quando voltei no orfanato, você já tinha sido adotado."
Dona Pie acabou a narrativa, estava em prantos, com os olhos vermelhos e rasos d'água. Yago também chorava, era uma história dura e sofrida. Pela primeira vez, sentira verdadeiramente apreço por Piedade.
Ela posou suas mãos sobre as do filho. Agora era Yago que não tinha coragem de encarar a mãe. Durante anos nutriu a ideia de que não havia motivos plausível para justificar o abandono de um filho, mas agora isso não fazia sentido.
- Filho, me perdoa?
Yago não conseguia responder, sentia um grande nó na garganta. Por um lado queria perdoar a mãe, afinal ela sofreu muito. Mas, algo ainda o amargurava, não estava conseguindo pensar com clareza, sua mente estava a mil.
- Esquece, não preciso te perdoar. Você fez o que tinha que ser feito. - disse ele, enfim. Enxugou as lágrimas com as costas da mão, e se levantou. - Bem, preciso ir embora, processar tudo que você me contou.
- Tudo bem... Promete que vai voltar?
Yago apenas sorriu, um sorriso amarelo e triste. Sem dizer adeus foi andando para o portão.
- Posso te perdi uma coisa?
Ele parou e olhou pra trás, Piedade estava de braços abertos, e sorrindo pediu:
- Me dar um abraço?
Yago se aproximou de Piedade e se deixou envolver num abraço forte. Mãe e filho choraram juntos, um choro que expressava todo o tempo perdido, onde ficaram separados, mas o laço materno se fazia presente ainda, e a certeza que tudo ficaria bem apartir daquele momento. Não havia mais a necessidade de perdões, aquele abraço apagou as culpas e mágoas.
O almoço rolou numa boa, todos alegres e risonhos. Alguns um pouco alcoolizados, falavam alto. O funk substituiu o pagode, e o povo dançava animadamente.
- Por que você está aqui sozinho?
Eu estava sentado num canto, sô observando o movimento. Wandinho veio se sentar ao meu lado.
- Por nada, eu gosto de ficar um pouco isolado as vezes. - sorri sem graça.
- Eu também...
Ficamos um tempo calados, vendo o movimento. Silas estava junto daqueles amigos dele, e parecia nem se lembrar de mim, estava feliz, bebendo e rindo. Próximo dele, Valeska dançava de forma provocante, e isso me irritou.
- A Valeska está dando em cima do mano descaradamente. - me assustei com o comentário de Wandinho. - Ainda bem que o Renan é bobo e nem reparou.
- Essa garota é uma vaca.
- Não precisa ter ciúme, o mano gosta é de você.
- É, eu sei.
Eu e Wandinho continuamos a conversar, ele me contou sobre sua aulas de música. Estava aprendendo a tocar violino, e queria entrar numa orquestra. Ele falava com empolgação sobre música, que era sua grande paixão.
Conversava com Wandinho, sem tirar os olhos de Silas. E vi na hora que ele entrou em casa, até ai tudo bem. Voltei toda minha atenção para o que Wandinho estava dizendo, ao sobre notas musicais.
Voltei a olhar ao redor, Silas ainda estava dentro de casa. Meu sinal de alerta disparou quando reparei que a Valeska também não estava ali. Pedi licença para Wandinho, e fui atrás do Silas.
Levei um susto com a cena que vi na hora que abrir a porta do quarto de Silas.
- O que está acontecendo aqui? - gritei.
Quando os dois se levantaram, reparei no meu erro. Movido pelo ciúme, achei que Valeska estava montada sobre Silas. Quebrei a cara, não era o Silas, e sim Renan que estava na cama com ela.
- Porra, não sabe bater antes de entrar, não? - resmugou Renan.
- Desculpa, achei que o Silas estava aqui, afinal esse é o quarto dele.
- Você achou que eu e o Silas estavamos aqui, né? - insinuou Valeska com um sorriso irônico.
- Não importa o que achei... Vocês deviam ter mais cuidado, a casa está cheia. Não é o momento de transar.
- Vai tomar contra da sua vida, seu viadinho...
- O que está rolando aqui?
Silas apareceu, vindo do banheiro. Me odiei naquela hora, como eu podia pensar que o Silas estava me traindo. Aquele ciúme era injusto.
- Nada, meu amor. Eu só atrapalhei a transa deles. - esboçei um sorriso amarelo.
- Vocês estavam transando com a casa cheia de gente?
- Puxa, até parece que estavamos fazendo uma coisa de outro mundo. - reclamou Valeska.
- Esse não é nem o lugar e muito menos o momento pra fazer isso... Procure outro lugar pra fazer isso.
Os dois sairam resmungando e com cara feia. Eu fiquei com um sorriso vitorioso na cara, ver o Silas dando uma "tirada" na Valeska lavou minha alma. Estava super orgulhoso do meu amado.
- E você, o que veio procurar no meu quarto? - perguntou ele, me abraçando.
- Estava procurando meu namorado, que parece que esqueceu de mim.
- Vem cá, deixa eu te dar atenção...
Trocamos alguns beijos. Eu comecei a ri, lembrando do meu engano. Silas me olhou sem entender o motivo do riso.
- Quando abrir a porta, pensei que você estava na cama com a Valeska. Fiquei morrendo de ciúme.
- Você sabe que não precisa ter ciúmes de mim. Só tenho olhos pra você, meu branquinho.
- Em você, eu confio. Eu não confio naquela piriguete.
Ele riu.
- Você fica lindo com ciúmes.
Trocamos mais alguns beijos, antes de voltar pra festa. Valeska e Renan já tinha ido embora, com certeza foram procurar outro lugar pra transar.
Léo e Claúdio passaram o resto do dia na cama, conversando e trocando carinho. Era incrível como não faltava assunto entre eles, Léo se sentia leve e feliz, como há muito não se sentia.
- Estou com fome. - reclamou Léo.
- O que você quer comer?
- Hum, que tal pizza?
- De novo? Acho melhor não... Vou cozinhar pra você. - Claúdio se levantou. - Vou fazer aquele Talharim que você adora.
- Hum, que delícia.
- Então vamos pra cozinha.
Os dois colocaram o roupão e desceram para a cozinha. Léo ofereceu ajuda, mas Claúdio não aceitou, dizendo que gosta de trabalhar sozinho. Então, enquanto Claúdio cozinhava, exibindo seus dons culinários. Léo, sentado no banco, observava o "tio-namorado" cozinhar. Os dois se divertiam naquele momento, sem se preocupar com nada.
Comeram o Talharim sentados no chão da sala, vendo tv.
- Então, como estava o macarrão que fiz pra você?
Acabaram de comer, e agora estavam deitados no chão, abraçados.
- Estava magnífico, como sempre.
- Eu sei. Fui eu que fiz, e tudo que faço é bom.
- Convencido, hein...
Os dois riram.
- Claúdio, o que vamos falar para a Diana? - Léo ficou sério.
Os dois sabiam que Diana não ia aceitar a relação deles. Ela não sabia da sexualidade de Claúdio, e com certeza, irá ficar abalada com a notícia.
- Ela vai ficar uma fera comigo...
- E comigo também.
- Você sabe que ela vai colocar toda a culpa sobre mim. Eu sou o adulto, o homem maduro e que tinha que ser racional.
- Mas, eu também sou adulto pra saber o que quero.
- Ela não pensa assim.
Claúdio tinha razão, Diana tinha ainda Léo como um menino indefeso.
- Fora que ela não sabe da minha opção sexual. - disse Claúdio com pesar.
- Então teremos que namorar escondido.
- É, será o jeito... Vamos preparar o terreno, e ai contamos.
- Ótima ideia.
Resolvido esse impasse, eles relaxaram. Claúdio se jogou sobre o corpo de Léo, beijando o pescoço dele.
- Vamos aproveitar enquanto temos a casa só pra nós.
- Então vamos pro quarto...
- Não... Vou te possuir aqui mesmo...
- Sisa, podemos conversar em particular?
- Claro.
Sisa levou Marcelo para um lugar tranquilo, longe da vista de todos. Marcelo estava tenso e trêmulo, ele suava frio.
- Então, o que você queria me falar?
- É... Sisa, você sabe que eu gosto de você. E você gosta de mim. Bem, eu pensei que poderiamos oficializar nossa relação...
- Você está me pedindo em namoro?
- Sim. - ele estava vermelho de vergonha.
Ela riu. Aquele jeito meigo e atrapalhado de Marcelo a encatava, nunca tinha conhecido um cara tão legal como ele. E sim, estava apaixonada, e não negava isso.
- Eu aceito!
Ele abriu um largo sorriso.
- Sério?
- Claro que sim. Eu estou perdidamente apaixonada por você, doutor.
Ela se aproximou e envolveu os braços no pescoço dele. Ele ria feito um bobo alegre.
- Eu te amo... Prometo que vou te fazer a mulher mais feliz do mundo.
- Você já faz!
Se envolveram num longo beijo, cheio de carinho e sentimento.
Yago chegou em casa totalmente desnorteado. Se jogou na cama, sua cabeça rodava, e a mente trabalhava a mil. O encontro com Piedade o deixou sem chão, tudo estava confuso em seu coração. Ele sempre nutriu um ódio e rancor por ter sido abandonado, depositando na imagem da mãe biológica toda essa raiva.
Esses sentimentos negativos o fez ser o que é, uma pessoa amarga, fria e maldosa. Desde de pequeno se sentia injustiçado e negligenciado por todos. Nunca soube reconhecer o bem que lhe era ofertado, causando dor naqueles que o queria bem.
Se Lembrou da sua família adotiva. Quantas vezes aquela gente tentou lhe mostrar o caminho certo, mas ele não quis ver. Sempre fora atraído pelo o caminho errado, pelo ilícito e ilegal. Agora, Yago sabia o porquê era assim, era o sangue de seu pai biológico que corria em suas veias. Piedade tinha dito que Yago se parecia com ele, e ela estava certa, o filho também era uma pessoa ruim e sem coração.
Yago se perguntava porque ainda se sentia perdido, sem resposta. Já tinha encontrado a mãe, e sabia sua origem. Devia está tranquilo e contente, afinal era isso que ele sempre quis. Não. Não estava tudo resolvido, faltava seu pai. Precisava descobrir quem era o homem que deu origem a tanto sofrimento, e não ia descansar até acha-lo.
- É questão de honra, eu vou te achar... Pai.
Piedade estava péssima, recordar um passado tão triste, a deixara acabada. O pior era encontrar seu filho depois de tantos anos, e ver nos olhos dele raiva e rancor. Aquele encontro foi como um navalha abrindo as velhas feridas, que Piedade julgava já estarem cicatrizadas. Mas, ela bem sabia que essas chagas nunca se fechariam, elas são dores eternas.
- Mãe? - Dara entrou no quarto da mãe. - Está tudo bem?
Dona Pie enxurgou as lágrimas, não queria que as filhas soubesse o que tinha acontecido. Ainda não era hora de contar toda aquela história para ela, isso teria que ser dito num momento mais tranquilo.
- Estou bem. Só estou um pouco cansada.
- Você estava chorando? - perguntou Michele, a filha caçula.
- Não, é que caiu um cisco no meu olho.
- Nos dois?
- Pra você ver como sou azarada... Que horas são?
- Seis.
- Bora abrir o bar...
Bruno e Lipe estavam conversando na sala, vendo o final do jogo e tomando cerveja. Enquanto as garotas estavam no quarto.
- Amiga tenho que ir, a Paula está sozinha lá em casa. - disse Agatha.
- Já? o papo está tão animado. - resmungou Camila.
- Ah, é uma pena, mas tenho que ir...
- Eu também vou.
- Você também, De?
- Amanhã, logo cedo estarei aqui.
- Tá.
As duas se despediram de Camila, e sairam do quarto. Na sala, os garotos se encontravam numa discursão, pois o time do Lipe havia perdido, e Bruno estava zoando o amigo.
- Ah, fala sério, brigando por causa de futebol?! - censurou Agatha.
- É sempre assim, amiga. Todo homens tem uma devoção quase religiosa pelo futebol.
- Ah sim. És uma coisa boa de ser lésbica, não aturar namorado fanático por futebol.
- Quem é fanático aqui? - resmungou Bruno, entrando na conversa delas.
- Vocês! - as duas falaram juntas e apontando para os dois.
Bruno só deu de ombros.
- Eu não sou fanático. Só gosto muito. - disse Lipe. - Vocês já estão indo?
- Sim... E Bruno, leva a gente? - disse Denise.
- Claro.
Lipe se despediu dos amigos, agradecendo por tudo que estavam fazendo por ele e por Camila. Fechou a porta logo que eles sairam, e foi para o quarto. Pulou na cama, ao lado de Camila.
- Enfim, a sós! - exclamou.
Ela riu, e o beijou.
- Preparado pra vida de casado? - perguntou ela.
- Sim!
Bruno parou em frente ao prédio das meninas.
- Não quer subi? - perguntou Denise.
- Hoje não, tenho que ir pra casa fazer umas coisas.
- Tudo bem. Então, até amanhã.
Trocaram um beijo rápido. Ela e Agatha desceram do carro, se despedindo de Bruno.
Elas chegaram no andar delas, e Denise procurava sua chave na bolsa.
- Aff, não estou achando.
- Deixa que eu abro. - se adiantou Agatha, abrindo a porta.
Paula estava sentada no sofá, com uma cara pálida e assustada.
- Acho que vocês tem visita. - disse ela com excitação.
Agatha e Denise não precisaram perguntar quem era a visita. A figura apareceu na porta da cozinha:
- Sentiram minha falta?