Escrito ao som de How Can I go On - Freddy Mercury e Montserrat Caballé


THE LAST KISS

Hospital das Clinicas, 1988.
 
A esposa já tinha entrado naquela sala várias vezes, mas aquela era diferente - seria a derradeira. Ia devagar pelo corredor para ganhar tempo, talvez assim seu marido pudesse esperá-la um pouco mais, e viver um pouco mais.
 
Parou por um momento. O que dizer a ele em seu leito de morte? Como segurar o choro guardado em seu peito por meses? Como dizer que ela ia ficar bem, se não ia? Como confortá-lo, se ela mal se erguia em pé? Como mentir, se ele sabia decifrar a sua alma? Como segurar sua mão, se ficaria de mãos atadas num mundo solitário?
 
Continuava parada. Não saberia mais como caminhar sem seu parceiro como guia; a morte a aguardava na próxima porta e ela não queria dar o próximo passo.
 
Já tinha passado por aquele mesmo corredor quando estava grávida de seu primeiro filho. As contrações, a emoção, a ansiedade; o marido ao lado. Sempre ao seu lado. Enquanto sentia as dores da vida que iria nascer, sentia também as mãos quentes de Mauro segurando as suas. Para acalmá-la, ele ternamente cantava canção que embalou os dois em seu baile de formatura. Ela se lembrava como se fosse ontem: o terno azul-marinho, os cabelos crespos e longos, olhos negros que a olhavam com carinho e insegurança. Quer dançar comigo? Perguntou com a voz trêmula. Ela respondeu que sim - sim à musica, sim ao namoro, sim ao casamento, sim a uma vida de 35 anos juntos.
 
Voltou então à realidade: aquele era um local de vidas e mortes, de idas e vindas, de encontros e despedidas, de boas-vindas e adeus.
 
Desde que descobriram o diagnóstico fatal, sabiam que aquilo aconteceria mais cedo ou mais tarde, mas ela nunca estaria preparada para o fim. Quem estaria? Refletiu. Sentou-se na sala de espera ao lado do quarto. E esperou, não pela morte do marido, mas por um milagre.
 
- Senhora Estela - o médico interrompeu seus pensamentos – Sinto informá-la, mas seu marido faleceu já há algum tempo.
 
Ela não sabia o que fazer, nem o que pensar, nem o que dizer. Não sentia tristeza, nem alivio, nem raiva. Sentia absolutamente nada; era uma pedra sem expressão e duvidava se estava mesmo ali.
 
- Antes de morrer ele lhe deixou essa carta.
 
Estela pegou o papel com as mãos tremulas. Parecia que o marido tinha adivinhado que ela não o veria. Não queria ler - tudo estava feito, acabado; não havia nada a ser dito pois um deles não estava mais ali, as palavras ecoariam no ar. Olhou para a janela que dava vista ao jardim e viu um pássaro que voava livremente do lado de fora, e ela, dentro daquela sala tão pequena, sentiu-se presa, sufocada.
 
Resolveu ler a carta:
 
Querida,
 
Pelo que te conheço nessa jornada que vivemos há mais de 35 anos, não creio que você teria coragem de me ver agora que estou perto do fim. Mas não lhe culpo, tenho prova suficiente do quanto você se sacrificou para ficar ao meu lado, e eu sempre terei a sensação de que nunca retribuí à altura.
 
Imagino o que está se passando na sua cabeça agora e infelizmente não tenho todas as respostas para suas aflições.
 
Desde que descobri a evolução da doença e ao que ela me levaria,comecei a ter a sensação de que tudo estava pela metade e que o caminho inteiro não foi percorrido. Sinto que deveria ter te amado deforma plena, de ter pedido desculpas mais cedo quando brigamos em nossa lua-de-mel, de ter dado menos importância às partidas de futebol, de viajar mais (com você), de ter chegado mais cedo em casa, de passar mais tempo com você e nossos filhos, de não ter me deixado levar por um desejo inconseqüente por outra mulher. Caí num abismo e levei você comigo - nós dois contraímos essa doença por uma leviandade minha.
 
Nesse momento, mais agora que em outras ocasiões, percebo o quanto fui infantil e cruel mas, acima de tudo, inconsequente. Já te pedi desculpas lá atrás, mas só agora vejo tudo com lentes de aumento, o que faz crescer ainda mais minha vergonha. Lamento muito por ter percebido à real gravidade disso tudo só agora.
 
Sinto vergonha ao olhar para você todos os dias vendo-me definhar, vendo a si mesma num futuro próximo,vendo nossos netos sem uma lembrança significativa de seus avós.
 
Dizer que sinto muito não é o suficiente. Meu amor e meu arrependimento nunca foram suficientes para me desvencilhar do seu olhar em fúria, mas apesar de tudo, eu ainda vejo, eu ainda sinto seu amor, seu calor, suas lágrimas por mim me vendo morrer a cada dia. E isso me dói, dói muito. É uma angústia maior que a dor da minha doença, maior que minha culpa, maior que meu próprio amor por você,porque nem ele nem os anos de convivência que tivemos foram capazes de me acenar que estava fazendo a coisa errada.
 
Estou com medo por tudo que fiz e do que vai lhe acontecer. A minha vida não mais me importa, mas você me importa. Queria curar sua doença, arrancar suas feridas, sua dor, apagar seu amor por mim, tirar-me da sua vida, do seu coração, das suas lembranças, para que você não sofresse; queria te salvar desse inferno que te coloquei, queria que esse túnel sem saída em que nos encontramos nos levasse de volta para nosso passado, para nosso baile de formatura, pois nessa época nada mais existia a não ser nós dois.
 
Não sei o que vou encontrar depois de morrer, não me sinto digno de encontrar coisa alguma, nem mesmo os piores castigos. Sinto que sou alguém que deveria dar o que tenho de mais precioso a você para compensar minha falta, mas o quê? Você tem meu amor, minha amada, tem meu respeito, minha admiração, tudo isso deixo em tuas mãos. Levo apenas minha dor comigo.

Te amo.
 
Mauro.

 
Estela correu para o quarto e encontrou um corpo pálido e rígido feito pedra. Passou as mãos pelo rosto gélido do cadáver e reconheceu seu marido, que ainda estava de olhos abertos, como se esperasse por algo antes de partir. Com a voz tranquila, sussurrou-lhe ao pé do ouvido:
 
- Vá, querido, sem culpa, sem dor. O sofrimento acabou, leve apenas meu amor contigo.
 
Beijou daquela vez como se fosse a última.




Este texto faz parte do Exercício Criativo - Poesia para uma Pedra
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Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 22/07/2013
Reeditado em 01/04/2019
Código do texto: T4398666
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