Mundo Cão - cap. 34

As horas que se seguiram a morte de Carmem foram muito difícil. Ao receber a notícia, Yara e Sisa entraram em prantos, Denilson e Marcelo tiveram que ampara-las. Silas ficara muito abalado, ele apenas chovava baixinho, abraçado a mim e sem dizer nada. Wandinho, estava mais controlado, mantinha calmo e com os olhos marejados de lágrimas.

Silas não estava em condições de resolver nada das papeladas do óbito e do velório. Eu e o Marcelo nos oferecemos para ajudar. Marcelo e Sisa ficaram no hospital aguardando a liberação do corpo e fazer a certidão de óbito.

Contrariado, Renan teve que ir me ajudar a resolver as coisas para o velório. Só nos dirigimos a palavra quando necessário. Tivemos problemas para liberar a capela e comprar um túmulo no cemitério, pois, o valor era bem maior do que imaginavamos.

Dona Piedade, getilmente, emprestou a quantia que faltava. Resolvido o problema do dinheiro, fomos para a capela esperar pelo corpo.

Já passava das sete da noite, Renan se sentou num bando que ficava na entrada da capela. Eu fiquei em pé, junto a porta. a capela ficava dentro do cemitério, e de onde estavamos dava pra ver toda a extensão do cemitério. Depois de todos os acontecimentos, até que estava agradável ficar naquele lugar, o silêncio imperava, me deixando tranquilo.

De repente, Renan começou a chorar. Até aquele momento ele tinha se controlado, e não aguentando mais segurar, chorou, um choro abafado e triste.

Mesmo me tratando tão mal, fiquei com pena dele. Ele também estava perdendo uma pessoa querida.

- Sinto muito pela sua perda. - foi o que conseguir falar.

Ele me encarou e nada disse.

- Renan, eu sei que você me odeia. Mas, nesse momento temos que dar uma trégua, o Silas vai precisar muito do nosso apoio. - tentei ser o mais simpático possível. - Renan, e se você precisar de apoio, pode contar comigo. Sei que você tambêm está sofrendo.

- Denis, você e o Silas foram os últimas pessoas a vê-la viva, nê?! - era verdade, nunca ia esquecer disso, ver alguém morrendo na sua frente marca pra sempre. - Como ela estava na hora da partida?

- Ela partiu tranquilamente, sem dor ou lamento, se é isso que você quer saber.

Renan ficou um tempo calado, e enxugando as lágrimas, começou a falar.

- A tia Carmem foi a pessoa mais importante da minha vida, sabe. Depois, que meus pais morreram, ela fez de tudo para que eu e meus irmãos tivessemos uma vida boa. Ela foi uma guerreira, uma mulher de um coração tão grande. Ela não precisava ter ficado com a gente, entende. Ela podia simplesmente ter deixado a assistência social nos levar... Eu vou ser grato eternamente a essa mulher.

Renan voltou a chorar. Denis sentiu um carinho especial por ele, afinal, ele não era um total boçal, existia sentimento nele.

Wandinho chegou, nos cumprimentou com um gesto de cabeça, e se sentou no lado do Renan.

- Como está o Silas, Wandinho? - perguntei.

- Agora ele tá mais calmo. Ele tomou um calmante, e estava dormindo quando sair de casa. - ele falava calmamente. Era incrível ver um garoto tão novo lidando com a morte de forma tão tranquila. - Acho que você devia ir pra lá, pra ficar com ele.

- Eu irei assim que o corpo chegar...

- Alguêm avisou ao Tito? - perguntou o Renan.

- Sim. O Silas avisou, agora tem que esperar eles libera-lo pra vim no velório.

A conversa cessou quando o carro da funerária parou em frente o cemitério.

Renan e Wandinho ajudaram a ajeitar o caixão dentro da capela. O caixão que Sisa escolheu era todo branco, e tinha uma imagem de Nossa Senhora, da qual Carmem era devota, na tapa. Retiram a tampa, nessa hora foi impossível não se emocionar. Wandinho começou a chorar, Renan abraçou o primo, também ao prantos.

Wandinho parou ao lado do caixão, e não saira dali até o fim do velório.

Pouco depois, Sisa e Marcelo chegaram na capela. E outras pessoas também começaram a chegar.

Estava indo ficar com o Silas, quando o Renan parou de moto perto de mim.

- Sobe ai, eu te dou uma carona. - disse ele.

- Obrigado. - agradeci, já subindo na garupa.

- Trouxe um pouco de chá pra você. - disse Denilson, entrando no quarto de Yara. - Está mais tranquila?

- Estou sedada, mas não tranquila. - resmungou.

- Tome o chá, vai te acalmar... - ele entregou a xícara para ela. - Depois você vai dormir um pouco, tá.

- Não. Quero ir para o cemitério, ficar com minha mãe até o fim...

- Yara, acho melhor você descansar. Depois, que você acordar a gente vai lá se despedi da tia Carmem.

- Tudo bem... - Yara voltou a chorar baixinho. - Ainda não acredito que ela me deixou.

- Não pensa assim, meu amor. Ela não nos deixou, ela continua viva aqui. - Denilson apontou para o peito dela.

- É, você tem razão... - Yara bebeu o chá, colocou a xícara sobre a cômoda. E se deitou. - Estou me sentindo tão desamparada...

- Você não está desamparada. Eu nunca vou te abandonar...

Denilson se deitou ao lado de Yara. A moça apoiou a cabeça sobre o peito do garoto, e os dois adormeceram.

Cheguei na casa de Silas, e fui entrando já que a porta estava destrancada. Já estava me dirigindo para o quarto do Silas, quando apareceu Geovana, saindo do quarto de Silas.

- Como ele está? - perguntei.

- Ah, agora tá mais tranquilo, dei um calmante pra ele, e ele dormiu.

- Vou dar uma olhada nele.

- Tudo bem. Qualquer coisa a gente vai está na cozinha.

Confirmei com a cabeça, e entrei no quarto.

Silas estava dormindo, sentei na cama. Acariciei seu rosto, meu coração doia só de pensar na dor que meu namorado estava passando.

Ele abriu os olhos, ao me ver sorriu. Beijei testa, ele segurou meu rosto entre suas mãos.

- Você demorou. - disse ele. - Só de olhar seu rosto já me sinto mais calmo.

- Agora estou aqui, meu amor. Vou cuidar de você. - sorri. Ele me puxou para um beijo.

- Deita aqui comigo...

- Tudo bem.

Ficamos um longo tempo deitados trocando carinhos, até que ele adormeceu.

- Ainda não me conformo com essa história do Silas ser gay. - disse Barbára, enquanto passava o café para levar pro velório. - O primo sempre foi homem, tão viril e macho, agora tá nessa de gosta de homem.

- É culpa daquele moleque. - disse Renan, bebiscando o seu café. - Antes dele aparecer o Silas era normal.

- Verdade... Esse garoto fez 'trabalho' pra amarrar o primo, Tenho certeza. Ninguém vira bixa do nada assim, não.

- Aff, gente, deixa o primo. O Denis está fazendo bem pra ele, isso que importa. - disse Geovana.

- E você acha certo dois homem dormindo junto?

- Não acho nada, Renan. A única coisa que sei é que o Silas merece ser feliz, se ele é feliz sendo gay, que seja.

- Você não sabe o que está dizendo... Isso é nojento. - disse Renan, irritado.

- Liga não, Renan. Essa garota deu pra ler romances, e agora fica achando que tudo é amor. - disse Barbara, com deboche.

- Pelo menos eu sei ler, né Barbára. - retrucou Geovana. - Vou me trocar pra ir pro velório.

Geovana saiu. Renan acabou de tomar seu café e também saiu. Em vez de ir pra casa, ele foi até o quarto de Silas. Da porta ficou olhando o primo e Denis dormindo abraçado. "Isso não é certo", pensou, "mas, até que estão bonito juntos...", seu último pensamento o assustou, achar dois homens dormindo abraçado bonito. "Tá viajando, cara?", se questionou.

Saiu dali, com uma dúvida na cabeça: "será que é tão errado assim o amor entre dois homens?"

- Sua roupa já está separada, e está em cima da cama.

- Obrigado, Denis.

Silas acabara de sair do banho. E começou a se trocar pra ir no velório.

- Todo mundo já foi? - perguntou ele, enquanto calçava o sapato.

- Sim.

- Pronto, já podemos ir também.

Chegamos no cemitério, a capela estava lotada. Várias pessoas se aproximava da gente para dar os pêsames ao Silas. Ele segurava as lágrimas. Ele apertou minha mão mais forte enquanto adentravamos na capela.

Todos nos encarava, alguns com pesar pelo sofrimento de Silas, e outros questionando o fato de dois homens estarem de mãos dadas.

Olhei ao redor. Sisa e Marcelo estavam num canto, abraçados, Sisa chorava e Marcelo a consolava. Yara estava em meios a algumas de pessoas, que tentavam acalma-la. Avistei Renan no lado de fora da capela, conversando com um grupo de rapazes. Todo o grupo estava encarando a mim e Silas com caras que ia de nojo a raiva. Wandinho continuava parado no mesmo lugar que estava a horas atrás.

Algumas pessoas que estavam em volta do caixão se afastaram para dar passagem a Silas. Ele se aproximou do caixão, as lágrimas que ele segurava, agora começaram a brotar e a correr pelo seu rosto.

- Ela está tão bonita, né... - ele disse entre soluços.

- Sim, ela parece tão serena. - Wandinho acariciou o rosto da mãe. - Ela merece esse descanso.

- Eu vou sentir tanta falta dela...

- Todos vamos...

Os dois choravam muito. Puxei Silas pra fora do salão, para tomar um ar. Ele não conseguia parar de chorar.

- Vem, vamos para um lugar tranquilo.

Fomos andando pelo cemitério, por entre os túmulos. Sentamos num canto sossegado. Aos poucos, Silas foi se acalmando.

- Tá melhor?

- Estou... Obrigado, aquele monte de gente estava me suforcando.

- Não precisa agradecer, estou aqui pra cuidar de você.

- Você é um fofo. - ele sorriu, e me deu um beijo na bochecha. - Já disse o quanto te amo?

- Hum... Hoje ainda não.

- Te amo, meu branquinho.

- Eu também amo, meu neguin.

Nos abraçamos.

- Denis, eu quero viver pra sempre com você. Mesmo que todos dizem que é errado, mesmo a sociedade condene nosso amor. Eu nunca vou deixar de te amar. - ele me fitava com com olhar de paixão.

Estavamos trocando beijos, quando a Geovana veio nos chamar.

- Silas, o Tito chegou.

Fomos correndo pra capela.

Na frente da capela havia três viaturas da polícia, e de uma delas saiu Tito. Yara e Wandinho correram para abraçar o irmão. Tito chorava muito.

Conduzido pelos policiais, ele entrou na capela. Se aproximou do caixão. Com as mãos algemadas ele acariciou o rosto da mãe, chorando muito.

- Oh, mãezinha, desculpa por não está do seu lado quando a senhora mais precisou... Eu te amo, espero que, da onde estiver, me perdoe por todo o sofrimento que causei a senhora... - Ele chorava muito.

Silas abraçou o irmão. Yara, Wandinho e os primos se juntaram ao abraço. A família estava toda unida naquele momento. Me emocionei ao ver como eles eram unidos, mesmo com todas suas diferenças, eles se amavam e isso basta. Confesso que senti um pouco de inveja, nunca tive o carinho da minha família, por mais que minha mãe tentasse, nunca fomos unidos.

Um policial avisou que o Tito teria que voltar para o presídio, pelas súplicas dos familiares, o policial deu mais cinco minutos para Tito se despedi da mãe.

Quanto os cinco minutos acabaram os policiais puxaram Tito pelo braço, o levando de volta pra a viatura. As viaturas se foram, e o enterro voltou a sua normalidade.

Yara se sentiu mal e desmaiou. Uma pequena confusão começou, com um monte de gente tentando ajuda-la. Ela acordou, logo, todos se acalmaram novamente.

O caixão foi fechado ás 10hrs, sobre um coro de choro e lamentos. Silas, Renan, Denilson, Wandinho e outros dois rapazes carregaram o caixão.

Só durante o cortejo, eu vi o Horário, ele estava abraçado com as filhas de dona Piedade. O que me espantou foi a sua magreza, a primeira e única vez que tinha o visto ele estava tão saudável e bonito. É incrível como as drogas acabam com o ser humano, além de magro, ele estava com os olhos fundos e com a aparência suja.

Eu e o Renan só conseguimos comprar um túmulo tipo "gaveta", e ele ficava na parte leste do cemitério, quase no final do terreno. Assim sendo, demoramos uns seis minutos até chegar o local onde ela seria "enterrada".

Não preciso nem narrar como foi triste esse momento. Silas, Yara e Wandinho ficaram abraçados, enquanto fechavam a sepultura.

Aos poucos as pessoas foram indo embora, ficando só a família e alguns amigos.

- Agora é com a gente, meninos! - exclamou Silas, ainda abraçado aos irmãos.

- Eu promento não dá tanto trabalho, mano. - disse Wandinho, dando um sorriso amarelo.

- Ela vai fazer uma falta danada... - resmungou Yara, agora mais calma.

- O que importa é que estamos todos juntos, e vamos continuar nossas vidas, como ela queria. Vamos estudar, trabalhar e fazer de tudo pra ter uma vida digna. - Silas sorriu. Naquele momento eles sabia que tudo mudara, que uma nova etapa na vida dele começara. - Vamos voltar pra nossa casa.

- É estranho, ir embora e deixa-la aqui. - disse Yara.

- Ela não tá aqui, Yara. Ela agora está no nossos corações. - falou Silas.

Petrus Agnus
Enviado por Petrus Agnus em 06/07/2013
Código do texto: T4375414
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