Mundo Cão - cap. 33

Silas estava no refeitório da fábrica, almoçando sossegado, e perdido em seus pensamentos. Renan se sentou ao seu lado.

- Carai, tô na maior ressaca... Ontem a noite foi frenética. - disse Renan entre uma garfada e outra. - Cheguei em casa já passava das três.

- Que bom para você... - Silas disse, indiferente com o que Renan falava.

- O que você tem? Tá com uma cara... Brigou com o 'carinha'?

- A gente não brigou, estamos ótimo, se você quer saber.

- Hum, que seja... Então por que dessa cara?

- Minha mãe já sabe do meu namoro.

- Porra, e ai? O que ela falou? Ela te pôs pra fora de casa, neh?

- Cala a boca, seu mané. Minha mãe aceitou numa boa.

- Ah para, veí... Não precisa mentir pra mim... Ela ti esculachou, não foi?

- Não... Ela disse que entende meus sentimentos, e me deu todo o apoio.

- Peraí, estamos falando da mesma pessoa? - Renan estava perplexo com aquilo. - A tia Carmem nunca ia aceitar um filho viado.

- Não gosto que me chame de viado. - Silas franziu as sobrancelhas. - Minha mãe entendeu que é amor o que rola entre eu e o Denis.

- Esse mundo está mesmo, dona Carmem aceitando esse absurdo... - Renan não se conformava com a ideia de seu primo e melhor amigo ser gay.

- Amar não é nenhum absurdo... Renan, você já amou?

- Sei lá... Eu gosto da Valeska. - respondeu ele, meio inseguro de suas palavras. - Tipo assim, ela é gostosa pra carai, e a gente se dar bem. E o sexo é sempre bom...

- Não estou falando de atração física, estou falando de sentimento. O que você sente por ela?

- Tesão! - ele respondeu sem nem pensar no assunto.

- Só?

- Você quer que eu sinta mais o quê?

- Renan, você não sabe o que é o amor, logo, você não está apto a me julgar... O que eu sinto pelo Denis vai além do físico, é uma coisa que vem daqui. - Ele apontou para o peito. - Não espero que você entenda ou aceite o que rola entre nós, só peço que respeite minhas escolhas.

- Você está mesmo apaixonado por ele... - disse Renan, com mais pesar do que admiração. - Eu respeito. Eu só quero te ver feliz, e se o via... digo, Denis te faz tão bem, eu fico contente por você.

- Obrigado por entender isso... - Silas sorriu.

Os dois se abraçaram. Renan gostava muito do primo, não queria de forma nenhuma perder sua amizade, por isso teria que aceitar o relacionamento dele.

- Silas! - chamou a secretária do escritório.

Silas desfez o abraço, e ele e Renan se viram em direção da moça.

- Algum problema, Angela? - indagou Silas.

- Ligaram da sua casa... - Silas ficou em pânico, pela cara da secretária não era coisa boa. A moça continuou. - Sua mãe teve uma crise de convulsões, conseguiram levá-la para o hospital.

Silas se levantou, Renan o segurou pelo braço.

- Calma, cara. Eu vou com você... Posso, Angela? - Renan perguntou a secretária.

- Claro, vocês podem ir.

- Tá tá... Então vamos, Renan. Preciso ver minha mãe.

Silas saiu correndo pelo refeitório, com Renan logo atrás.

O aperto que Silas sentia no peito, o deixava ainda mais nervoso. Precisava chegar no hospital o rápido possível. Dona Carmem estava partindo, ele sentia isso.

Sisa e Yara estava na ambulância, acompanhado Carmem. Yara só fazia chorar. Sisa tentava acalma-la em vão. Carmem seguia desacordada.

Chegaram no hospital, Carmem foi levada pra emergência. Sisa e Yara ficaram na sala de espera.

- Estou morrendo de medo, Sisa.

- Calma Yara, vai dar tudo certo... - Sisa sabia que aquilo não era verdade.

Marcelo apareceu no saguão, se aproximou de Sisa, que ao vê-lo sorriu. Sisa se sentia bem com ele por perto.

Sisa e Marcelo se abraçaram.

- Você sabe o que estâ acontecendo lá dentro? - perguntou Sisa.

- Ele estão fazendo os procedimentos padrões... - a voz dele estava tensa. - Sisa, vocês devem está preparados para o pior.

Sisa sabia disso, mas ouvi isso era ruim demais. Yara ouviu aquilo é não conseguiu segurar o choro, desabou na cadeira, Sisa sentou ao lado dela, amparando-a.

- Desculpa, não devia falar desse jeito...

- Não precisa se desculpar, já sabiamos disso. - disse Sisa.

- Onde ela está? - Denis entrou no hospital quase correndo.

- Ela está na emergência agora. - respondeu Marcelo. - Temos que esperar...

- Você não pode ir lá saber o que está acontecendo, Celo?

- Não... Sinto muito.

- O que está acontecendo? - Wandinho chegou, logo depois de Silas. Estava acompanhado de Denilson.

- Ela está morrendo. - choramingou Yara.

- Não fala assim, Yara. - censurou Silas.

- Estou mentindo por acaso?

- Chega, vamos no apegar na misericórdia do bom Deus. - disse Sisa.

- Isso ai, vamos fazer uma oração, pedindo que tudo acabe bem. - sugeriu Denilson.

Todos se juntaram as mãos, para fazer uma oração. Silas já não via razão em rezar, então se afastou do familiares. Pegou o celular e ligou para Denis, precisava muito dele naquela hora.

- Oi amor. - disse ao atender o telefone.

- Preciso de você. - Silas estava chorando, fiquei espantado.

- O que aconteceu?

- Minha mãe está no hospital, ela está morrendo...

- Me espera, já estou chegando aí.

Corri para o hospital. Em meia hora já estava lá, entrei na recepção tentando avistar Silas. Mas ele não estava por ali, vi apenas o Renan, parado alguns passos de mim. Me aproximei dele.

- Oi. - cumprimentei, mas ele não respondeu. - Onde está o Silas e os outros?

- O pessoal está na capela, já o Silas eu não sei. - respondeu ele, sem olhar pra mim.

- Vou procurar ele então, obrigado.

- Ei... - Renan me segurou o braço, fiquei assustado com a atitude dele. Ele me olhou sério. - O Silas vai precisar muito de você, ele gosta muito de você. Então, não magoe meu primo, senão eu te mato, entendeu?

- Fica tranquilo, Renan. Eu amo o Silas. - lhe lancei um sorriso, e seguir para fora do hospital a procura do Silas.

Aquele curto diálogo com o Renan me deixou aliviado, enfim a família do Silas estava começando a aceitar nossa história.

- Café?

Marcelo se sentou ao lado de Sisa, e lhe entregou o copinho de café.

- Obrigada. - ela pegou o copo, e bebiscou um pouco do café. - Já tem alguma notícia?

- Ela não está respondendo as investidas. Ela não vai aguentar por muito tempo... Sinto muito. - Marcelo se sentia péssimo em ter que contar aquilo para Sisa, mas era necessário.

A moça ficou um tempo calada. Seu olhar estava pousado sobre Yara, Wandinho e Denilson, que continuavam rezando na capela. Uma lágrima escorreu dos olhos dela, Marcelo prontamente enxugou com as pontas do dedo.

- Eles vão sentir muita falta dela... E eu também. - lamentou ela.

- Sisa, é melhor assim, ela está sofrendo aqui. Pelo menos, ela não sofrerá mais. - Marcelo falava calmamente. - E eu sei que você será forte, e vai cuidar desses pequenos muito bem.

- Tenho medo de não conseguir dar conta...

- Mas é claro, que você vai dar conta. E além do mais, você poderá sempre contar comigo.

- Obrigada por tudo, Marcelo. Você é um amigo adorável.

- Eu quero ser mais do que seu amigo, e você sabe disso... Mas, não vou te atormentar com isso agora.

- Você é um verdadeiro cavalheiro! - ela soltou um leve sorriso para ele.

- E você é a donzela que eu escolhi proteger.

Ele conseguiu arrancar um sorriso dela.

Dei a volta por todo o hospital, mas não achei o Silas. Liguei pro celular dele, ele atendeu e me disse que estava no jardim interno do hospital. Me dirigi até lá, o encontrei sentado embaixo de uma árvore, corri ao seu encontro.

Ele estava de cabeça baixa, toquei no seu ombro. Ao me ver, ele chorou. Nos abraçamos, ficamos assim por algum tempo sem falar nada.

- Só quero que isso acabe logo. Não aguento mais ver minha mãe sofrendo - lamentou ele, mas calmo depois de ter chorado.

- Entendo você. Essa situação é ruim para todos que estão envolvidos.

- Sabe, Denis, no começo eu tinha medo da minha mãe morrer. Mas agora a ideia de morte me parece mais suave...

- Acho que você entendeu que a morte será uma libertação para ela.

- É exatamente isso... Eu sei que ela precisa ir, mas é impossível não ficar triste com a perda. - as lágrimas voltaram a imundar seus olhos.

- Você tem todo direito de sofrer com a partida dela. Toda perda é triste, e a sua perda é ainda mais triste. Então, não sinta vergonha de chorar.

Ele me encarou, e passou a mão no meu rosto, fazendo um carinho.

- Minha mãe tem razão, você é um rapaz adorável. - ele deu um sorriso, entre os soluços de choro. - Ela sabe sobre nós.

- Sério? - fiquei espantado com aquela notícia. - O que ela disse?

- Que formamos um belo casal...

- Não acredito!

- Eu também não acreditei quando ouvi... Ela entendeu que nós dois nos amamos.

- Ah, mas isso qualquer mortal consegue peceber.

Trocamos uma beijo longo e carinhoso.

Dr. Alfredo chegou na porta da capela. Marcelo e Sisa estavam sentados abraçados num canto da capela. O doutor chegou perto deles, que se levantaram ao vê-lo.

- Aconteceu algo? - se apressou a perguntar Sisa.

- Sim. E devo ser direto. - dr. Alfredo tentou esconder a emoção e as lágrimas nos olhos. - A querida Carmem está partindo.

Sisa segurou o choro. Yara e Wandinho viram o médico ali, e se aproximaram para ouvi o que ele dizia.

- Ela me fez um último pedido, ela que se despedi dos filhos... Irei deixa-los entrar por cinco minutos.

- Sim, nós entendemos. - disse Wandinho, que até então era o mais calmo e o único que não chorara. - Vamos Yara.

- Cadê o Silas, ele também tem que ir... - Yara disse entre soluços.

- Eu vou chama-lo. - Denilson saiu em direção ao jardim interno.

- Bem, me acompanhe crianças, vou levá-los ao quarto. Marcelo leve o Silas, por favor..

- Sim senhor.

Dr. Alfredo saiu, acompanhado dos dois jovens.

Sisa envolveu seus braços sobre Marcelo, ela estava sem chão, e queria se sentir protegida.

Denilson se aproximou correndo. Eu e Silas nos levantamos, prevendo o pior.

- Silas, sua mãe... Quer se despedi! - ele exclamou com pesar.

Silas me lançou um olhar de tristeza, afaguei seu rosto.

- Seja forte...

- Vou fazer o possível.

Dr. Alfredo pediu para Yara e Wandinho evitasse cansar muito a mãe, que mantesse a calma. Mas ele sabia que esse pedido não seria cobrido.

Isso ficou caro quando ele abriu a porta, os dois quase se jogaram sobre a mãe.

- Cuidado, meninos. - disse ele calmamente.

Dois minutos depois, Silas entrou no quarto. Dr. Alfredo saiu, deixando os filhos se despedirem da mãe.

- Minha hora chegou... - a voz dela saia como um sussuro.

- Não fala assim, mamãe... Tenha fé, deus fará um milagre. - Yara estava desesperada.

- Não haverá milagre. - disse Wandinho irritado. - Mamãe, descansa em paz. Eu te amo.

- Você já é um homenzinho, meu querido. Sempre foi o mais sensato da família... Promete que vai cuidar da sua irmã?

- Prometo... Eu prometo. - Pela primeira vez Wandinho deixou as lágrimas correm pra fora dos olhos.

- Mamãe não posso viver sem você... - Yara não se conformava. - Deus não pode me tirar você.

- Oh, minha querida, eu estou feliz, minha missão está cumprida nesse mundo, agora quero descansar... - a voz de Carmem falhou.

- Não se esforce muito, mãe. - disse Silas, que até então estava calado.

- Oh, filho, não preciso mais poupar, esse é o ponto final. - ela sorriu.

- Eu sei... - disse Silas com pesar.

- Yara, meu anjinho, promete que vai aceitar minha partida?

- Como posso aceitar uma coisa dessa?

- Ela precisa descansar, Yara. - disse Wandinho.

- Isso mesmo, preciso descansar... Yara, eu vou está sempre olhando por vocês ao lado do bom deus... Não temas, a morte é só uma passagem.

- Eu vou sentir muita falta de você... - resmungou Yara.

- Todos vão... - corrigiu Silas.

- Isso aqui não é um adeus, mas sim, um até logo. A morte não é o fim. - Carmem mantinha um sorriso cansado no rosto. - Agora me dei um beijo de despedida, e enxuguem essas lágrimas.

Yara e Wandinho beijaram a mãe, Silas também se aproximou para beija-la. Carmem segurou seu braço.

- Quero falar com você e com o seu "amigo" antes de ir embora...

- O Denis? - espantou Silas.

- Sim.

Estava sentado perto do Marcelo e da Sisa dentro da capela. Renan e Denilson estavam sentados uns bancos a frente. Renan me encarava com uma cara de poucos amigos, como se tivesse falando com os olhos que eu não devia está ali.

Yara e Wandinho entram na capela, todos se amotoaram sobre eles. Yara chorava sem parar. Denilson pegou-a pelo braço, e sairam para dar uma volta.

Sisa e Renan encheram Wandinho de perguntas, o menino chorava. E a única coisa que conseguiu falar foi:

- Ela quer falar contigo! - apontou pra mim.

- Comigo??? - Me espantei. Ele balançou a cabeça afirmando.

- Que palhaçada é essa? - se exaltou Renan. - Ele nem é da família... A gente que tem que ir se despedi.

- Ela quer falar com o Denis e o Silas, apenas... - disse Wandinho.

- Eu não vou deixar ele entrar. Ele não é da família.

- Cala a boca, Renan. - falou Sisa com firmeza. - Pode ir, Denis... Dei um beijo nela por mim.

- Pode deixar.

Sair da capela, do corredor ainda ouvi o Renan dizer:

- Esse maldito viadinho intrometido...

A ideia de aceitação total da família do Silas, foi por água a baixo naquela hora.

Entrei no quarto apreensivo. Silas estava debruçado sobre a cama, acariciando a mãe.

- A senhora queria me ver? - me aproximei deles.

- Oh sim, Denis, meu querido. - ela abriu um sorriso ao me ver.

- Nem sei o que dizer... - fui sincero, estava confuso. Não sabia o que dizer para uma pessoa que estar morrendo.

- Não precisa dizer nada. - disse Carmem. Ela esticou com dificuldade a mão para mim, peguei sua mão. - Obrigada...

- O que eu fiz? - ela estava me deixando confuso, e via que a Silas também.

- O que você fez? Oras, olha para meu filho. - apontou para o Silas. - Você o faz feliz. E não há nada de mais gratificante para uma mãe ver seu filho feliz.

- O Silas também me faz feliz. - disse, estava enrubrecido.

- Silas você escolheu bem o seu companheiro, o Denis é adorável. - ela deu um riso, que foi abafado por uma reclamação de dor.

Olhei para o aparelho, seus batimentos estavam enfraquecendo.

- Eu não escolhi, foi coisa do coração. - Silas estava emocionado demais.

- Oh sim, o coração...

O corpo de Carmem estremeceu, e o aparelho soou um bipe, as linhas estavam ficando retas. Carmem estava morrendo na minha frente, é isso era apavorante. Eu estava sem ação, não sabia o que fazer, nem Silas, que agora chorava alto e desesperado.

- Abençoado seja a união de vocês... - Esse foi o último sussuro de Carmem.

Ela fechou os olhos pela última vez, as linhas ficaram retas, e seu corpo ficou sem vida. O aparelho soava um barulho avisando o fim da atividade cardíaca.

Eu fiquei ali paralizado, mais inerte que a finada. A cena do Silas debruçado, chorando desesperado, sobre o corpo sem vida da mãe, me acompanharar pelo resto da vida.

Petrus Agnus
Enviado por Petrus Agnus em 02/07/2013
Código do texto: T4367693
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