ESPERANÇA AO VENTO
Eu sou o famoso Joãozinho, tanto falado, mas tão pouco conhecido. Na verdade meu nome não é este, Mané é o que sou, mas, na verdade eu sou certo Joãozinho sim.
Sou o famoso Joãozinho, não o da história do Joãozinho e Mariazinha que entraram no mato e depois não sabiam como voltar, então foram pegos por uma bruxa má e blá, blá, blá. Eu sou o João Bobo, o que perdeu a Mariazinha. Não sou o Joãozinho da história infantil, mas minha história se aparece com aquela, tendo eu e ele até a mesma idade. Quanto ao Joãozinho e a Mariazinha da historinha de criança, depois tudo se desenrolou, eles conseguiram fugir e encontrar o caminho de volta. Quanto a mim e minha história com a outra Mariazinha, crescemos e quando tínhamos dezesseis anos a Mariazainha já era a coisa mais linda que os olhos de um adolescente podem ver; era uma donzelinha que aos meus olhos encantava. Aliás, eu já tinha me encantado por ela quando a vi brincando com as outras garotas aos dez anos, quando, na verdade, a vi pela primeira vez. E, daí para frente, se eu a visse entre mil garotas, só ela, reluzia, pra ser mais exato, qual diamante, turvando minha vista e fazendo meu coração disparar a galope. E, quando éramos adolescentes, já não podíamos brincar como antigamente, nem ter tempo a sós para pormos as conversas em dia. E eu era muito tímido mesmo, cheio de medo de levar fora e foras eu ainda levaria muitos.
Mas ia enrolando a vida e deixando o tempo passar. Meus dias iam e vinham, embalados pelo sonho de um dia casar-me com minha sonhada Mariazinha, em quem eu pensava ao deitar e levantar. Mas, ela era filha de mãe brava e eu nem me animava de ir à sua casa para vê-la e contar-lhe dos meus sonhos. Ela, porém, um dia apareceu, num domingo, quando morávamos em uma grande casa, em um campo verde na direção ao nascente. Nesse dia estivemos juntos, eu, ela e meus irmãs e irmãos, e brincamos sorridentes todo o dia, nos aproximando bastante nas brincadeiras matreiras e eu esgotando o desejo de estar perto e ampliando sem fim o desejo de fundir-me a ela. Meu coração sufocou todo esse dia, acelerado e se contendo, querendo sair pela boca em alguns instantes, mas serrando os lábios com força e refreando o desejo de acariciar seus cabelos castanhos ondulados e beijar aquela sua boca que eu imaginava doce.
E o dia se foi e quando ela se foi também no fim do dia minha vida voltou a se acinzentar, esperançosa somente de chegar o próximo dia que haveria de vir, quando então, eu jurava, que ia lhe dar um beijo roubado e ia lhe abrir meu coração. Mas esse dia demorou um tanto e chegou quando já não morávamos mais no nascente, mas mais próximo da casa dela em direção ao poente. E nesse dia, embora sem nenhuma palavra, apenas muitos risos e brincadeiras matreiras, fiquei a mercê de meus desejos, mas, ainda assim, não confiante, não avancei e meu coração ficou esmagado ao final do dia, quando minha luz outra vez se foi, levando para a esperança novamente o meu sonho.
Mas, talvez por essa esperança tanto fosca, outro dia fui-lhe à casa, já bem cedo, ainda de manhã, desejoso de vê-la e de aproveitar qualquer ensejo. Mas o dia se foi e o tempo passou pouco proveitoso e eu, já meio desanimado, achava que outra vez ia voltar com o coração vazio de satisfação. Mas, quando menos esperava, o ensejo apareceu e veio à tarde, entre uma parte e outra do filme de domingo, no intervalo das propagandas políticas daquele ano. Num surto delirante, num lance de tão bela e inesperada sorte, tomei-lhe a mão e puxei-a forte, e, num pular de risco do relógio, antes que o cuco se desse conta, roubei-a súbito um beijo molhado, sorvendo o mel destilado daqueles lábios de sonhos. E flutuei desatinado num encanto arrebatado. Fui arrastado às nuvens como num balão de ar quente e ainda sinto o flutuar daquele instante embalar minha saudade.
E aí começou minha felicidade sem fim e até hoje viajo naquele instante de olhar revirado, agradecido de ter ele vivido. Por alguns dias viajei na felicidade, sem querer saber onde começa e onde termina o tempo, nem quantos rastros o carretel da vida faz na areia da ampulheta. Foram três semanas jamais findas, todas incompletas, suspensas no vácuo entre o tique e o taque, a espera do ato seguinte, do cair do calcanhar que levantou.
E a bolha de sabão a rodopiar em suspenso estourou numa sexta super triste, no fim do meu dia de três semanas de alegria, tirando-me dos pés o chão, pondo-me no vazio da desesperança. O sonho se derramou, o perfume flutuou e o vento do desconserto o misturou ao infinito. O projetor quebrou, a fita arrebentou e o filme ficou a esperar o empurrão de misericórdia. Voltei para casa a chorar; perdera minha sonhada Mariazinha e nela passara noites a fazer projetos, pois a vida seria sonhos em dia de chuva, primavera em noites de frio e outono em tórridas tempestades se ela fosse a pilastra do meio do meu sonho eterno.
E dias passaram e certo estive de que meu sonho de cristal estava quebrado pra sempre. Me conformei então, aquietei o coração e aceitando tal madrasta sorte. Para sempre não teria minha doce Mariazinha, e, por ser essa a sua vontade, nada havia que eu pudesse fazer, a não ser esperar o relógio do tempo dar, por ventura, outro dia, uma errante badalada no brasão da minha sorte.
E passaram-se alguns anos, poucos, porém, para sufocar aquele sentimento que eu imaginava ter só. Um dia, quando eu tinha dezenove anos e já servira o quartel, quando eu voltava para casa, esbarrei nela que de lá saía e, vendo-me, dirigiu-me a palavra convidando-me para o seu casamento. Achei de última, um completo desaforo. Além de me desprezar, ela ainda tinha o “displante” de me convidar para o seu casamento, sabendo que era eu quem devia casar-me com ela. Tive vontade de dizer-lhe isso, mas calei e permiti ao instante passar o véu da minha história, pois imaginei que, se já não me gostava, muito menos ia me gostar se isso lhe dissesse. Engoli o caroço que deixei amargar no estômago até ele deteriora-se na neblina de quase trinta anos passados, os quais passei sem nunca mais ver minha Mariazinha dos sonos, certo que ver-me ser-lhe-ia infortúnio completo.
Vendo-a trinta anos depois, pelos meandros da tecnologia, para meu encanto, ela estava tão jovem quanto em nossos dias de meninos; cheia do perfume e a graça da donzela que meu coração inquietou como nos dias idos. Assim ela estava na minha saudade e belo eu estava em suas lembranças. Falamos daquele beijo, nos conhecendo em fim, e, audacioso agora, contei-lhe em pormenores quais eram naqueles dias meus desejos. Surpreso e encantado, ouvi-a dizer que de mim gostava também, pois sentia o coração a galope quando me via. Jamais acreditei que pudesse me amar tão bela flor. Mas ela me disse: “Eu não sabia disso, senão jamais tinha me casado com outro”. Meu coração apertou dentro do peito. Por um lado fiquei feliz ao saber que aquela lindeza me amava. Por outro, porém, senti o choro na garganta, um duro amargo por ver que deixei meu amor ao relento, nas garras de um destino carrancudo, e permiti ao meu sonho e a nossa felicidade passarem por nós como se passa pela neblina, decretando-nos a vida alternativa que encenamos, que nos trouxe aqui e que não nos permitirá voltar no tempo, apenas seguir reparando brechas para remediar o caminho para os sonhos que se realizaram. Mas podíamos ter construído um castelo, cercado de um riacho, bordado de flores por todo o jardim e nossos filhos correriam pelos entremeios das árvores bordejadas de frutas coloridas e a chuva regaria esses sonhos a cada tarde perfumada, fazendo que germinassem, despetalando sorrisos a cada amanhecer.
Wilson do Amaral