CONVERSA NA CHUVA

 
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CONVERSA NA CHUVA
 
A cidade foi feita para o sol, era isso que Marcos Jorge pensava de Vitoria, depois que chovia era o caos, o transito que já era ruim piorava, por isso ele estava apressado para sair do hospital e pegar o carro no estacionamento, foi pessoalmente pedir para o encarregado da recepção do hospital para sair mais cedo.
-De novo Jorge? – Disse o homem obeso e letárgico que no hospital era temido pela contundência e facilidade de dizer não.
-Tenho que levar minha mãe no médico – disse Jorge, não gostava de falar mentira, mas era o que funcionava com o encarregado.
-Está bem, só mais essa vez – disse e saiu rebolando a barriga enorme segura por um cinto fino.
O estacionamento fica a frente, tinha que andar dois quarteirões, alugou a vaga, pois a taxa cobrada pelo hospital era alta demais, um roubo, só os médicos tinham estacionamento grátis funcionários subalternos tinham que pagar uma taxa, Marcos Jorge se rebelou contra essa injustiça e alugou a vaga em um edifício, no entanto havia essa inconveniência de andar essa pequena distancia.
O vento estava forte, com a perícia de um veterano que vinha todos os anos visitar a grande Vitória aquele vento soberbo e majestoso, também chamado de vento Sul, nem sempre trazia a chuva.
Marcos passou a mão na face, notou que já havia uma chuva fina caindo, ele parou debaixo de uma marquise para fumar, neste momento os trovões e relâmpagos davam ao relento uma aparência de Armageddon, a maioria das pessoas desistiu de andar com medo que de forma inadvertida ou por pura maldade de São Pedro um raio caísse nas suas cabeças, depois do barulho dos trovões e da luminosidade dos raios à chuva caiu de uma vez e surpreendeu a todos.
Pensou no seu emprego, atendente de balcão, ouvia muito desaforo de gente que vinha visitar doentes, de doentes internados que queria alta, de atendentes de planos de saúde, dos médicos, a verdade é que se tivesse a opção de outro emprego corria atrás, porém era uma pessoa não qualificada, um filho de negros da periferia, o pai não conseguiu estudar, o irmão foi preso e ele queria seguir carreira policial, porém um acidente de moto lhe estourou o joelho e Marcos andava coxo, mancava e tinha dores perversas em noites frias no seu joelho direito.
Ascendeu um cigarro, as gotas molhavam seu terno azul marinho, sua face negra já estava ensopada, a careca, cuidadosamente raspada estava toda molhada, não havia abrigo para aquele tipo de chuva, até mesmo o bigode ralinho estava molhado.
Jorge era considerado bonito pelas meninas, muitas da recepção queriam um relacionamento sério, Jorge não se interessava, tinha a mãe doente para cuidar e esperava a pessoa certa, sua despesa era muita, nem pensava em se interessar por ninguém.
Virou a cabeça foi então que viu um anjo vindo em sua direção, certamente nunca teria notado se não fosse pela chuva, só a chuva evidencia criaturas que em outros momentos seriam simples e as transformam em seres angelicais, deusas, fadas.
Certamente a mulher mais bela que já havia visto na vida, a blusa branca ensopada, mostrava o sutiã preto protegendo um busto firme, cabelos molhados ao vento, pele branca lavada pela milagrosa água da chuva, lábios cheios premiados com gotas mais perfeitas, às vezes gotas coloridas, nada faltava para aquela mulher comum tornar-se uma Deusa, ou será que alguma deusa tornou-se uma mulher comum para estar ali diante de Marcos Jorge e lançar-lhe o desafio do amor.
-Chuva louca – disse se apertando do lado do pobre e espantado Jorge, que para causar boa impressão jogou o cigarro fora.
-Aqui em Vitoria é assim, a chuva não avisa, quando cai é de repente, pega a maioria das pessoas de surpresa – disse Jorge – acho que molhou você toda.
-Não sei disso? Moro aqui há vinte anos – ela tentou ajeitar o vestido – merda! Estou toda molhada e eu ainda tenho que pegar um ônibus – disse tentando retirar um pouco da água da face.
-Esquece o ônibus, meu carro está no prédio à frente, te dou uma carona. – Até para lua, pensou Jorge, levaria aquela mulher a qualquer lugar.
A mulher, até aquele momento desprovido de um substantivo próprio na cabeça de Jorge, que matutava para lembrar o seu nome, o que seria uma artimanha de um verdadeiro Don Juan, porém Jorge sabia que sua memória era fraca.
Ela fez um movimento inesperado: moveu os olhos em direção ao hospital, sua cabeça girou em movimentos leves, nesse momento nas fantasias de Jorge a enigmática dama parecia uma princesa, ele então pensaria em depositar ali aos pés sua espada e sua alma, assim aquela nobreza que agora parecia desvalida, desamparada diante da terrível vilã (a chuva) precisando de um socorro teria em Jorge seu cavaleiro, no fusca do Jorge o alazão que a retiraria dali sã e salva.
Olhou para Jorge tão demoradamente que ele se sentiu um canibal, um ser do mal, os olhos dela percorriam o corpo de Jorge da cabeça aos pés, então ela fez um silêncio insuportável, sacudiu o cabelo e disse como se decifrasse uma charada estalando os dedos.
-Você é o Jorge – disse sorrindo – o cara do hospital que ajudou na internação da minha mãe?
-Esse sou eu – disse Jorge aliviado, com um sorriso que mal dava para esconder.
-Você foi superbacana – disse e estendeu à mão – Maria Helena. – Cacete, Maria Helena, como não lembrou, ela continuou o aperto de mão e falou - você não se lembra de mim, é tanta gente que passa por onde você trabalha.
Claro que Jorge se lembrava dessa jovem criatura, bonita educada, um dado de cadastro errado da mãe prejudicou a internação, Jorge corrigiu e a mãe entrou no hospital e operou sua catarata.
A chuva agora era constante, forte, a esquina era coberta por uma água podre, corredeiras se formavam trazendo coisas, entulhos, a maioria lixo.
O asfalto desaparecia para dar lugar à insurgência do lixo dos esgotos, aparições fantasmagóricas despertadas pelo elemento água, mesmo assim Jorge estava distante, olhou apenas de canto de olho aquela bola de futebol novinha correndo solta, se não estivesse na posição de cavalheiro diante de uma dama corria para pegar aquele tesouro, no entanto naquele momento sua única preocupação era a resposta não dada por Maria Helena.
-Agora que me reconheceu, de forma mais do que educada lembrou-se do meu nome, quero dizer que a carona está de pé? – disse Jorge – penso em não deixar você se molhar mais.
-Sim, vou para Bento Ferreira, você vai pra lá, não quero atrapalhar? – perguntou e Jorge ficou em dúvida, a mãe o esperava para jantar, a gasolina estava no talo e Jorge tinha míseros dez reais no bolso, cálculo do pedágio, cinco de gasolina, bem vai ser apertado, porém tudo pela honra de um cavalheiro, o bairro que Maria Helena ia era do outro lado da cidade, Jorge ia enfrentar.
-Sim, te levo – o coração falou mais alto, bateu descontrolado pela primeira vez.
Cego pela beleza dela, o cavalheiro falhou em proteger a dama e uma caixa com um ferro dentro veio na enxurrada e acertou a perna dela, o vergalhão pontiagudo fez um corte, ela gritou e se desequilibrou, para não cair segurou em Jorge, ele sentiu o perfume, a macia pele do braço e da face que de leve encostou-se à sua, uma união que causou uma tontura em Jorge, porém um herói não pode cair em uma hora dessas, não poderia desmaiar, mesmo se fosse de amor.
-O corte foi fundo – disse Jorge inspecionando, como se trabalhar no hospital fosse um ofício semelhante a de um enfermeiro ou de um médico, com seu lenço limpo estancou  o sangue a escorrer. – Te levo para o hospital, terei que carregá-la – disse isso e quase não esperou a resposta, porém o sorriso dado foi suficiente.
Ela deveria ter uns cinquenta quilos e Jorge estava fora de forma, porém a trajetória foi feita pelo herói de capa e espada, dessa forma Jorge sequer trocou a respiração cadenciada pela ofegante, controlando tudo com o cérebro e o coração.
Entrou no hospital todo molhado, com a dama no colo, um dos seguranças perguntou.
-O que é isso Jorge?
-Ela se machucou.
-Não é nada é só um arranhão – disse Maria Helena. Jorge, porém entrou e chamou o médico, Dr. Sandoval, o cirurgião olhou para a perna e pediu que Jorge saísse e colocou a Maria Helena na mesa de sutura.
Duas horas depois, com frio e com aquela roupa secando no corpo Jorge voltou e perguntou a um segurança que estava na porta, esse já seu conhecido.
-A moça do corte na perna?
O homem alto e silencioso disse.
-Que moça?
-Do corte na perna, que chegou comigo agora a pouco – duas horas, seria pouco pensou Jorge.
-É parente sua?
-Amiga.
-Vou verificar. – Ele olhou Jorge com resalvas, depois de três minutos voltou.
-Não tem moça nenhum ai, a única que teve um corte o namorado veio buscar, eu mesmo abri a porta lateral, ela saiu de cadeiras de rodas – o segurança olhou nos olhos de Jorge e perguntou – É essa a moça?
Desapontado, Jorge olhou no relógio e fez meia volta, a chuva caia ainda mais forte, havia um tremendo alagado a frente, intransponível para seres não anfíbios, não conseguiria retirar o carro do estacionamento teria que passar a noite ali.
-Jorge?– disse o segurança – É essa a moça?O nome dela é Maria Helena.
-Não.
O segurança deixou Jorge desolado com os sentimentos impuros e descabidos, como um homem pode sofrer por antecipação por uma dama que mal conhece?
-Jorge!
Virou-se e viu alguém de muleta, sua visão estava turva pela chuva.
-A carona ainda está de pé – disse e se aproximou – me deram um treco para dormir, tenho medo de agulha – ela olhou para Jorge todo molhado deixando a chuva cair no seu corpo e lavando aqueles pensamentos e trazendo de volta a esperança.
-O segurança...
-Ele me chamou lá dentro, perguntou se te conhecia, eu estava na sala de repouso, acordei agora a pouco, nem acredito que você ficou duas horas ai? – ela se aproximou, estava de roupa seca, de muletas e tinha um sorriso nos lábios – então a carona?
-É acho que a gente pode sentar e conversar, a chuva vai demorar – disse Jorge – depois te levo para onde quiser.
Parados, ela dentro em frente a portaria central, Jorge fora, com a chuva caindo sobre a sua cabeça, ela colocou a muleta de lado e pegou um guarda-chuva que estava no canto da porta, entregou para Jorge.
-Tem um café aqui?
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 05/06/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4326059
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