CORAÇÃO DE MANTEIGA


Telefonei à Susana e soube que a mãe piorara. Fiquei indeciso, devia ir lá ou não?
Entretanto, ela telefonou-me a dizer que não valia a pena ir, se houvesse alguma coisa diria.
Domingo de manhã a Telma telefonou-me a perguntar se queria ir ao cinema, eu estava sem programa e aceitei o convite. À tarde encontrei-me com ela à porta do Londres, para a sessão das dezasseis e trinta, comprámos os bilhetes e como ainda era cedo tomámos um refresco no bar junto à entrada. O filme em exibição era “O ovo da Serpente”, do Ingmar Bergman, um drama sobre a evolução do nazismo.
Ela trazia um fato, casaco e calça branco cru, em algodão, que lhe assentava muito bem, não tinha ar de pronto-a-vestir. Eu trajava como de costume ao fim de semana, jeans, casaco de malha azul claro e camisa de manga comprida azul escura.
Estivemos a conversar durante algum tempo e constatei que ela era bastante simples.
Fez-me várias perguntas e às tantas questionou-me em termos sentimentais, se namorava ou vivia com alguém. A minha resposta demorou algum tempo, por fim disse-lhe a verdade, tinha alguém mas a relação era sobretudo física, às vezes dormia com ela, não vivíamos juntos.
Ficou um pouco pensativa, a olhar para mim, por fim agradeceu-me a sinceridade, comentou que possivelmente outros homens na mesma situação teriam mentido. Eu disse-lhe que estava ali na posição de colega de trabalho e de amigo, não julgava que o facto de irmos juntos ao cinema resultasse obrigatoriamente num compromisso.
No fim do filme comentámos que apesar de ser bom, não tinha correspondido totalmente às expectativas. Ela acrescentou - É como algumas pessoas…
Eu olhei para ela e pressionei-a a explicar-se. Fixou o olhar num anúncio de um próximo filme a projetar e afirmou que no fundo sempre esperara que eu fosse livre. Suspirou e vi-lhe uma lágrima rebelde nos olhos. Eu dei-lhe uma palmadinha amigável no braço e disse:
- Então, o que é isso, podemos ser amigos, não pretendes namorar com todos os teus conhecidos, pois não?
Ela olhou-me de uma forma tão amargurada que eu não resisti, abracei-a e assim ficámos, junto da parede devido à fila de pessoas que ainda saíam do cinema.
Depois acompanhei-a de autocarro até perto da casa dela, no trajeto tomei-lhe a mão na minha, ela não a retirou e fomos assim toda a viagem.
Encostou a cabeça ao vidro da janela e as lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo.
Senti o meu coração dividido ao meio. Nunca pude ver ninguém chorar, ficava muito incomodado.
Pretendi despedir-me dela com um beijo na face mas pegou-me no rosto com ambas as mãos e beijou-me os lábios. Foi um beijo de desespero, muito juntinha a mim. Senti-lhe o peito pressionando o meu, o seu coração batendo muito depressa. Depois rodou sobre si, afastou-se bruscamente em passo rápido e largou um “até segunda-feira” por cima do ombro.



                    Excerto do livro "Memórias de um pinga amor"


Nota: O livro em questão resultou apenas da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes ou situações reais não é mais do que pura coincidência.