A flor de Daniel

*Comentem, por favor. Me alegraria suas opiniões.

– Posso contar-te uma história, rapaz? – O Sol mirava a única alma que havia no parque.

Ninguém acreditava que porventura seria a próxima vítima, preferiam sistematicamente negar o fato, ou simplesmente aceitá-lo como sendo apenas um evento mais que insólito para se acontecer a alguém. Impossível! Mas de fato toda a cidade já vivia sobrecarregada do mito que algumas pessoas contavam às ruas: diziam ter ouvido o Sol lhes narrar uma história. Sempre a mesma. E por mais que esses tantos ouvintes do Sol firmávam-se no que sabiam ser verdade e tentavam passar às outras pessoas suas inéditas experiências, pela aparente inveracidade de suas palavras tornavam-se meros loucos – os “sãos” acreditavam em um surto de loucura contagiosa que havia atingido a cidade. Era o mínimo. E pela má imagem que tinham por assim o serem, eram deixados de lado. E morriam crendo, mas não críveis.

– Quem me fala? – Disse o rapaz, procurando alguém ao seu redor.

– Sejamos breves, meu caro.

O rapaz tornou o olhar ao céu por entre duas grandes árvores a sua frente, seguindo uma voz de sonoridade grave, não exagerada como a voz dos trovões numa noite chuvosa, mas portadora de uma imponência que nunca ouvira antes em singelas palavras. Era uma bela voz, e eloquente da melhor forma. E quando por fim terminou seu percurso com o olhar e firmou-se na cena, por um instante creu que, se fosse ele, verdadeiramente, quem estavesse falando, não deveria ser um simples sol da manhã. Ou ele próprio estava desatinado ou o sol de fato estava tentando se comunicar.

– Posso contar-te uma história? – Completou a intensa luz ao céu.

Sem resposta – de fato o rapaz se sentia intimidado –, prosseguiu o sol:

– Quero que ouça, simplesmente ouça, e esse banco onde sentado está servirá-te por testemunha idônea para o que lhe direi agora.

…Era cedo como agora é, e pelo mesmo caminho por onde sempre passava todas as manhãs, apontou-se à entrada do parque o homem chamado Daniel. O homem alto e sereno como um monte mas também jovial e irreverente, dentro do seu limite de recatado, como uma pequena pedra lisa a rolar. Não era de fato um tipo completamente diferente. Mas também não participava do percentual de iguais que se encontram aos montes por onde quer que ande. Tinha suas dessemelhanças.

Quando já na calçada de pedra do passeio, Daniel sempre seguia em passos largos, afastando-se o mais rápido possível da agitada vida da rua paralela à entrada do parque, e depois seguia vagarosamente por entre as árvores, gozando o ar fresco e contemplando as miragens fornecidas pela luz do sol por entre as folhas das copas. Era o único que se importava. De todos os milhares que por aqui passavam todos os dias, Daniel era o único que sempre ousava atentar ao que havia acima da sua cabeça. Olhar se por acaso havia algo a cair ou, simplesmente, algo a viver.

Seus passos cessavam-se frente ao canteiro, próximo à saída, onde no banco sentava-se e fixava o brilho do olhar nas flores do jardim. Mas havia, de fato, uma em especial a qual sempre se tornava alvo de sua admiração. Era nessa que deleitava seu silêncio. Enquanto a olhava nunca dizia uma única palavra, na verdade nem parecia respirar, talvez de fato isso acontecia. Talvez todos os dias ele morria perante o jardim, ou melhor, para não soar de forma alguma funesto, deixava de viver desse lado do mundo e passava para um outro só dele. Mas isso apenas talvez.

Daniel cumpriu suas visitas durante um longo tempo, todas as manhã. Sempre demostrava tamanha felicidade que agora me é impossivel descrevê-la a tí, o que posso dizer-te é que era diferente. Era alegria de amor.

Amemos!

Mas em uma dessas visitas ao parque – infelizmente sua última –, vi-o carregando tristeza em seu semblante, o que não fazia parte daquele ser, e não portava mais aquele sorriso contagioso que antes curvava em sua face. Estava como que coberto pela rigidez de uma alma abatida. Então, secamente, sentou-se no mesmo banco que há tanto o acolhia e se entregou. De repente de seu olho mais triste escorreu uma lágrima. Não era mais aquele Daniel, via-se nitidamente. E quando sua dor excedeu o limite de suporta-la, ouve uma imperceptível explosão dentro de sí, assim creio, e a ousadia que alí havia tomou forma rapidamente, e em uma única frase conseguiu despertar o Sol que havia no céu:

“– Sr. Sol, posso contar-te uma história?”, Disse-me Daniel.

A cena pareceu-me irreal; não era comum, e continua não sendo, ser surpreendido por almas que por tamanha ousadia irrompem a invisível barreira, tão tênue, que há entre o sol e as pessoas. Que essa ousadia cresça dentro de todos! E mediante aquela audácia – seus sentimentos, agora, de fato, emanavam de suas expressões – sentí-me incitado a saber o que ele tinha a dizer-me, talvez para servir de ombro amigo e dar ouvido às suas palavras, ou dar vasão à sua ousadia e tentar compreendê-lo, ou, ainda, apenas para satisfazer minha frívola curiosidade, infelizmente. Mas antes que eu pudesse responder ao que propôs, ouvi dele algumas palavras, e logo depois uma pequena história:

“Espero que lembre-se de mim, grande Sol. E faça, se assim o quiser, uma história ser eterna…

Sei porquê viver. Sei porquê sorrir. Mas o que gostaria de saber é: por que morrer?

Durante muitas manhãs ouvi-a sorrindo, vi-a dançando ao vento, cantando à sua maneira. Alegrava-me por ela, sorria, cantava, dançava, até fazia-me poeta, ao passar por sua janela… Mas ela se vai. A flor de cabelos negros e pétalas claras se vai. E eu? Que do silêncio me cobri… Nem sequer sabe meu nome.

Que de mim nasça os desejos, e em mim doa suas dores!

Ontem fiz um trato com o tempo, grande Sol, e gostaria de compartilha-lo.

Amanhã já não mais virei ao parque. Mas ela, que há muito não sorria, não dançava, não cantava, pela mácula desgraçada em sua vida, logo cedo nascerá e nunca morrerá. Todas as minhas primaveras e o que tinha de tempo, a ela dei por presente. Não se deve privá-la da vida, muito menos do sorriso!

Se puder, meu amigo, não fale a ela. Contei-te apenas porque queria que alguém soubesse de um amor. De um amor que há algum tempo me assola. De um amor que morrerá por amar…

Minhas últimas palavras são:

Que ela seja feliz viva, e eu felizardo morto. Assim assinei o contrato, meu amigo Sol.”

– Assim foi. E nunca mais vi Daniel. E a flor a qual tanto admirava, também nunca mais a vi no jardim. Ela também se foi.

– Como assim, não havia um trato? O tempo não o cumpriu? – Perguntou o rapaz sentado no banco.

– Meu caro, Daniel era um poeta, um grande poeta, por sinal. E sua flor era a mais pura alegoria de uma poesia que escrevia enquanto vinha ao parque.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 22/05/2013
Reeditado em 06/01/2014
Código do texto: T4303804
Classificação de conteúdo: seguro