Tentação ( parte LXXXIX)
 

                                                           ( continuação do capítulo anterior )
 
No grande salão da governadoria, cedido para receber os delegados que formariam a posição sobre o apoio ou não à abolição da escravatura, Silveira se acomodou, acompanhado por Eugênio, e ambos começaram a ouvir as explanações dos demais delegados.
O delegado do Triângulo Mineiro foi enfático:
- Nós de Uberaba, Uberlândia e do Triângulo Mineiro, que temos reunidos nas diversas fazendas da região, mais de três mil escravos, e que sabemos da nossa dependência à mão de obra escrava, e do valor que os escravos alcançaram no mercado, não abriremos mão do nosso voto, somos escravagistas!
A maior parte da Assembleia bateu palmas em apoio à posição do delegado.
Em seguida foi apresentado um senhor de mais de setenta anos, mas forte e vigoroso, com grandes bigodes grisalhos, que se dirigiu em nome dos fazendeiros da região de Ponte Nova, e disse com sua voz fina:
- Somos a favor da abolição da escravatura!
Os demais participantes deram uma tremenda vaia no delegado, com assobios, gritarias e apupos.
Eugênio olhou para Silveira e disse:
- É uma difícil missão, companheiro!
A discussão se prolongou por muitas horas, e depois houve uma pausa para o almoço. Os favoráveis pela permanência da escravidão estavam em franca maioria, e durante o almoço formaram-se grupinhos em mesas  dos que eram favoráveis e os que eram contrários à abolição. Como ninguém conhecia ainda a posição de Silveira, ele se agrupou aos contra a abolição para saber seus argumentos, e sempre eles batiam na mesma tecla, o valor de perda dos escravos e o custo que teriam de arcar se viesse a abolição.
Depois que eles saíram, ele disse a Eugênio:
- Já tenho a minha linha de argumentação...
Voltaram  para o salão e se acomodaram nos mesmos lugares.
Quando chegou a sua vez, anunciaram:
- O senhor Silveira, representante dos fazendeiros da Zona da Mata!
- Meus nobres e queridos amigos, eu me chamo Silveira e sou um comerciante, que por fazer um favor a um Ministro do Estado, ganhei uma sesmaria do Imperador, e virei fazendeiro ! Meu comércio é a Importadora Vitória de Implementos Agrícolas, provavelmente muitos arados e foices que usam em suas fazendas tenham sido adquiridos na minha Importadora. Minha fazenda  é localizada em Pirapetinga, onde o Judas perdeu as botas...
Todos riram, deram gargalhadas e se desconcentraram. Era o que ele queria.
- Eu também tenho escravos... E também fiquei deveras preocupado com a nossa situação... Em uma viagem que fiz aos Estados Unidos para fechar contratos para a minha importadora, eu vi de perto a situação de um país dividido por causa de uma guerra que foi feita, devido ao  que aqui estamos discutindo, a abolição da escravatura! No processo da abolição da escravatura de lá,  deixaram  um rastro de ódio entre negros e brancos, e hoje  existem grupos de brancos que se denominam Ku Klux Klan, que encapuzados, se reúnem para incendiar os negros,  é isso que vocês querem que aconteça aqui?
Foi essa a minha grande preocupação, os meus negros são dóceis, são trabalhadores e construíram comigo, parte do meu patrimônio, eu devo muito a eles e provavelmente vocês devem muito do que têm aos seus negros também... Foi pensando nisso, com essa preocupação em mente que eu procurei os meus amigos no Rio de Janeiro, o Ministro Calmon du Pin e o Barão de Cotegipe.
Houve um burburinho entre os presentes... Aqueles delegados, todos fazendeiros do interior, que nunca tiveram acesso aos dirigentes da nação e aos detentores do poder, estavam ali na frente com um interlocutor de um ministro e de um Conselheiro do Império e que já tinha viajado até para o exterior...
Todos se calaram para ouvir  o que Silveira tinha a dizer.
- Foi do senhor Ministro que ouvi: Meu amigo Silveira, nunca o Brasil esteve numa situação tão difícil. De um lado, os fazendeiros que não aceitam o fim da escravidão, do outro, uma enorme pressão das nações amigas, Estados Unidos, Inglaterra e França, para abolirmos a escravidão, porque, meu amigo,  nós somos a única nação ocidental a manter escravos. E veladamente essas nações nos deram um ultimato, se persistirmos haverá um boicote comercial.
Imaginem, senhores, vocês tendo dinheiro para comprar e não existindo o produto no mercado, não teremos arados, arames farpados, carneiros hidráulicos, foices, e até a enxada...
Houve um burburinho na plateia e ele continuou:
- Não vai mais haver o tecido para fazer roupas, as selas para os nossos cavalos, as esporas... Como disse o senhor ministro, o governo está numa sinuca de bico!
E todo mundo está com medo da abolição, não é? Eu também estava... Mas não estou mais...Sabem porque ? Se ela vier, nós vamos ter de pagar os salários, mas eles vão ter de pagar a comida, a casa onde vão morar... Hoje eles não pagam nada disso... Enfim, vai continuar tudo a mesma coisa...
A gente diz que vai dar a liberdade e eles vão pensar que terão a liberdade, mas no final ficará tudo na mesma situação em que vivemos hoje...
Olhou para um fazendeiro já idoso que estava na sua frente e perguntou:
- Quantos inocentes tem na sua fazenda?
- Doze.
 - Eles são escravos?
- Não...
- Eles trabalham para o senhor?
- Trabalham.
- Quanto o senhor paga pelo trabalho deles?
- Nada...
- E assim vai continuar, meu senhor, o sujeito vai trabalhar pelo prato de comida e vai ficar satisfeito porque está liberto!
Um fazendeiro lhe perguntou:
- E se um escravo quiser sair?
- Se um ex escravo quiser sair, deixe-o sair, vão ser dois querendo ocupar o lugar dele...
Um advogado de gravata borboleta levantou-se e provocou-o em alto tom:
- Como o senhor pode provar se o que o senhor está dizendo é verdade?
Silveira colocou os dedos sobre os seus longos bigodes e disse:
- A minha palavra não precisa ser provada, meu amigo, ela é afiançada pelo fio do meu bigode!
Todos riram e o advogado se calou, os delegados foram para a votação e saiu o resultado, doze a oito a favor da abolição!

                                          (continua no próximo capítulo)
elzio
Enviado por elzio em 22/05/2013
Reeditado em 23/05/2013
Código do texto: T4302737
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