Tentação ( parte LXXVI )
( continuação do capítulo anterior )
Silveira retornou da visita que fez à Ana Luiza muito mais animado, parecia ter recobrado as suas forças, voltou a sorrir como antes, aparou sua barba e o bigode, providenciou para que cortassem seu cabelo.
Na mesma tarde em que chegou, mandou arriar o seu cavalo preferido e saiu em direção à fazenda do senhor Eugênio. Precisava conversar, sentia falta de outras companhias, de simplesmente falar e ouvir.
Quando chegou junto ao alpendre fronteiriço ao grande pátio da fazenda, sentiu vontade de retornar, haviam uns dez cavalos presos junto aos postes que ladeavam a entrada da escadaria, mas foi surpreendido com a voz de Eugênio:
- Chegou em boa hora, meu vizinho!
Ele apeou, embora sentindo-se como um intruso numa festa.
- Que bom que você veio também, não havia lhe convidado porque sabia que o senhor tinha compromisso de ir visitar a Sinhá Don'Ana... Mas pelo jeito ela está bem, não é?
- Pelas palavras do doutor, está tudo sob controle...
- Então vamos entrar, temos hoje um encontro político em apoio à nossa causa.
- E qual é a nossa causa, senhor Eugênio?
- Naturalmente a manutenção da escravidão, senhor Silveira.
Silveira pensou em sair naquele momento, sabia que não poderia defender uma causa que estava falindo, mas como qualquer posição que fosse tomar exigia bom senso, e até mesmo para conhecer as teses opositoras, ele resolveu ficar, mas sentindo-se como um quinta coluna.
Dentre todos os que ali estavam, somente dois eram desconhecidos, os outros eram fazendeiros da região.
O senhor Eugênio o levou até à sala e dirigiu-se aos demais:
- Está aqui o vizinho e amigo, senhor Silveira.
Silveira foi recebido de forma meio desconfiada pelos presentes, mas não deixou se intimidar.
- Conversar sobre os interesses comuns sempre faz bem!
Um fazendeiro, dono da Fazenda Pedra Bonita, o senhor Antonio Portugal, iniciou sua fala declarando logo sua posição:
- Vim para a Pedra Bonita muito antes de qualquer um de vocês chegar aqui, acompanhando meu pai lutamos contra os Aimorés, expulsamos os índios para outras bandas e assumimos suas terras. Até fazermos a Casa Grande vivemos nas ocas que eles deixaram para trás. Passamos muitas noites em claro para não permitir que eles retornassem. Como dizia meu falecido pai, o preço da liberdade é a eterna vigilância... Foi com a mão de obra escrava que realmente construímos a Pedra Bonita... Agora aparecem alguns visionários que querem abolir a escravidão e jogar por terra tudo o que construímos. Talvez queiram trazer de volta os Aimorés...
Um outro fazendeiro, conhecido por uns como Pedro Mão Fechada e por outros como Pedro Pão Duro, deu uma enorme gargalhada e olhou para Silveira com ar de deboche.
Silveira fez como se nada tivesse acontecido com ele e disse:
- Senhores, em boa hora vim aqui... Todos nós somos adultos e o que conseguimos foi alcançado com muito esforço e suor, como bem disse o senhor Portugal. Eu também expulsei os Aimorés das minhas terras, talvez tenham sido os mesmos que ele retirou das suas. Realmente não posso desprezar o que realizamos depois da chegada dos negros, eles são dóceis e trabalhadores, bem diferentes do índios que nós conhecemos. Os negros que temos são o resultado de um investimento muito alto que fizemos, isso todos nós sabemos...
Eu estive do Rio há duas semanas onde estive com o Ministro Miguel Calmon Du Pin, e foi dele que ouvi o seguinte:
- O governo, senhor Silveira, está numa situação muito difícil, vivemos em tempos de guerra, a guerra consome grande parte do nosso orçamento, os ingleses que há muito tempo interromperam o tráfego negreiro, desmantelaram um negócio milionário, mas essa fortuna acumulada foi para Portugal, não veio para o Brasil... Desde que a frota inglesa acabou com o tráfico, os britânicos têm forçado o governo brasileiro para que seja abolida a escravidão, assim também fazem os americanos e franceses. Já acenaram até para uma possibilidade de boicote comercial... Se isso acontecer, não teremos mais enxadas, pás arados, armas de fogo, teares, e as modernidades dos carneiros hidráulicos que levam a água para as nossas casas... É por isso que o governo quer abolir a escravidão...
Mas para onde irá essa legião de homens do campo?
Eles terão que ficar por aqui mesmo, a situação, de fato, deve modificar muito pouco a curto prazo...
Eles vão ganhar um salário? Vão... Mas vão ter que pagar a comida, o aluguel, as suas roupas, no final estarão trocando seis por meia dúzia...
Em resumo, o que ouvi do Ministro, é que a abolição vem mesmo e que não é devido aos arroubos libertários dos poetas, mas é uma questão de sobrevivência econômica do país. Lutar contra a abolição é nadar contra a maré... A minha posição também não era favorável à abolição mas hoje eu pondero se vale a pena lutar por uma causa perdida. Mais vale a gente preservar essa mão de obra que nós temos hoje do que ficar sem nada, como dizem, mais vale um pombo na mão do que dois voando.
O depoimento de Silveira causou um tremendo reboliço entre os presentes, Pedro Pão Duro o ofendeu e desacatou, mas ele olhou profundamente em seus olhos e lhe respondeu:
- Cada um sabe de si, toma a decisão que quiser, a que o senhor achar melhor... Mas depois não vá reclamar ao Padre que todos os negros o deixaram na mão...
- Gioconda, desde que você veio para o Rio de Janeiro comigo, lhe faltou alguma coisa? Faltou-lhe comida, cama, lençol, roupas, sapatos, faltou-lhe algo?
- Porque você me pergunta isso, Moacir?
- Porque acredito, Gioconda, que você não está sendo correta comigo...
- Como assim, você acha que eu estou lhe traindo?
- Não, Gioconda, quero ver suas economias, a sobra do dinheiro que lhe dei para fazer as compras...
- Eu não tenho economias, Moacir, todo o dinheiro que você me dá eu gasto com as nossas comidas.
- Mas deixe-me ver seu dinheiro!
- Ela estendeu a carteira onde haviam alguns trocados e uma nota.
- Está vendo? Esta nota está marcada aqui, foi marcada por mim e você a retirou da minha bolsa.
- Está me chamando de ladra, catzo!
- Você é que está demonstrando que mexeu na minha bolsa...
- Se é assim que você quer, eu vou-me embora, vou separar minhas coisas e não fico mais aqui...
- É uma decisão sua, ragatza, depois não adianta se arrepender...
- Você é mesmo um otário, e eu não vou querer ficar morando com otários...
- Vai, ragatza, eu não estou mandando você ir embora, você está indo porque quer, depois não reclame de ter de lavar penicos...
Ela arrumou sua mala e saiu, Moacir voltou a morar na Importadora.
( continua no próximo capítulo )