Tentação ( parte LXIII )
( continuação do capítulo anterior )
Silveira chegou na Fazenda da Solidão na hora do almoço, sentou-se ao lados dos escravos e almoçou como se um deles fosse, enquanto almoçava pensou na diferença que levava em relação ao senhor Adalberto, na sua vida simples e sem afetação, sem preconceitos, tratando a todos por igual, lembrou-se de quando chegara ali naquele local, só ele e Machadão, um ex escravo, e logo lhe veio a ideia, essa integração era tanta, que estava tendo um relacionamento amoroso com uma escrava... E mentalmente indagou:
- Isso é ruim? Está me fazendo mal?
Foi interrompido no fluxo dos seus pensamentos pela pergunta de Moacir:
- Vamos mesmo amanhã cedo?
- Com certeza...
À tarde preferiu ficar descansando porque sabia que a jornada do dia seguinte seria muito cansativa e acreditava que viajariam debaixo de chuva porque a aparência do tempo assim indicava, havia vento forte e relâmpagos no lado da Pedra Bonita.
A sua previsão se confirmou, eles tiveram que usar suas grossas capas para se protegerem, mas mesmo assim foram para a estrada.
Devido ao tempo ruim teriam que pousar nas fazendas e previa que chegariam ainda com dia claro na Fazenda São Fernando, um ponto estratégico, porque dali em diante teriam a serra pela frente. Tinha sido nessa fazenda que Silveira tinha vendido e Moacir instalado um dos primeiros carneiros hidráulicos.
A chuva era muita, havia enxurrada em alguns lugares, os cavalos deslizavam nas descidas, quando passavam sobre o capim parecia que tinham despejado sabão e Silveira que imaginara pousar na Fazenda São Fernando, logo se certificou que teria de trocar de planos. Teriam que encontrar outro local para pousarem, se insistissem passariam a noite debaixo da chuva e na escuridão, porque a lamparina não ficaria acesa com aquela ventania.
Viram uma casa isolada numa encosta e foram pedir abrigo,um homem veio atender.
- Meu amigo queríamos pousar em sua casa, seria possível?
- Estou aqui sozinho com meu irmão que não está bom das ideias, ele é muito agressivo e só aceita a mim e a um outro meu irmão, nós fazemos revezamento para ficar com ele... Agora ele está dormindo, mas se acordar e se ver vocês ai, ele entra em crise e não posso garantir as consequências.
Se quiserem, durmam no curral, mas não façam barulho, por favor, porque senão ele entra em crise e vai atacar vocês...
Moacir olhou para Silveira e perguntou:
- E ai?
- Vamos para o curral, tem outra alternativa?
Estavam cansados e dormiram em cima de uma laje, protegido pelas capas. O curral estava sujo de bosta e mijo dos animais, o cheiro era insuportável mas o sono foi maior.
Moacir acordou e não havia um pingo de iluminação, Silveira roncava alto e com o silêncio da noite o barulho do seu ronco parecia o ressonar de um porco, e ele pensou:
- O maluco vai ouvir esse ronco...
Moacir cutucou Silveira, que assustado perguntou alto:
- O que houve?
- O senhor estava roncando alto, ia acabar acordando o doido...
Eles ouviram barulhos vindo da casa, depois gritos e o homem disse:
- Tem alguém invadindo aqui!
- Calma, Mané! Calma meu irmão...
Silveira disse baixo para Moacir:
- Eu não estou vendo nada, a escuridão está total, ele também não vai nos ver... Fica calmo, qualquer coisa somos três contra um.
- Brigar com um doido? Só sendo mais doido do que ele, patrão! Vamos embora enquanto é tempo... Vou buscar os cavalos...
- Nessa escuridão?
- Vamos deixar as rédeas livres, os cavalos enxergam melhor do que nós no escuro...
Assim fizeram, montaram nos cavalos e deixaram que eles seguissem, enquanto o Mané gritava, xingava, blasfemava e seu irmão tentava acalmá-lo...
Depois de andarem na escuridão total por quase uma hora, a chuva passou e o dia clareou, mas onde estavam?
Estavam num pasto, no meio do nada e só depois de subirem um morro é que visualizaram novamente o caminho.
Maria Rosa dedicava-se integralmente às crianças, agora adotara os lápis e cadernos e ensinava aos dois as letras e algarismos. Conseguira uma revista velha , recortara as letras, colara sobre a superfície de um papelão e faziam uma brincadeira. Quem acertasse a letra ou número ganhava um biscoito. Quem estivesse com o número maior ganharia uma bala.
Quando se cansavam das brincadeiras iam se divertir na beira do rio, ou distribuir canjiquinha aos pintinhos. Antonio João ficava bravo quando uma galinha ou frango passava a frente e comia antes, impedindo o pintinho de comer. Não raro corria atrás das galinhas com um cabo de vassoura para castigá-las.
De vez em quando Maria Rosa ficava a cismar, olhando para o nada, pensando na sua relação com Silveira. Certo dia Pulcena perguntou se ela estava apaixonada por alguém, ela negou, mas dai em diante passou a se policiar para que ninguém percebesse seus momentos de fuga da realidade. Eram momentos em que se via livre, segurando as mãos de Silveira e por incrível que pareça, levava com eles também as crianças... Isso seria amor?
( continua no próximo capítulo)