Em meio às chamas

Trier, mais antiga cidade da Alemanha, divisa com a França, século XVI.

Edmond e Marjorie cresceram juntos. A família dela se mudou para as proximidades de onde Edmond morava e eles se tornaram amigos. Quando jovens, uma paixão surgiu, mas antes mesmo que algo pudesse realmente acontecer, mais especificamente no dia em que expuseram seus sentimentos, duas coisas que mudariam suas vidas futuramente aconteceram: Edmond foi enviado para estudar e mais tarde se tornar padre e, Marjorie, estava sendo afastada por um tempo para a casa de sua avó para finalmente saber e aprender sobre o segredo que as mulheres daquela família escondiam.

A época se tornava cada vez mais perigosa para Marjorie. Aos treze anos, quando afastada de seu primeiro e único amor, ela foi iniciada. As mulheres de sua família eram magas brancas, mulheres que cultuavam suas deusas e buscavam ajudar as pessoas com seus dons. Era perigoso seguir uma religião pagã naquela época. Desde o século anterior muitas caçadas aconteciam e quando menos se esperava ocorria uma epidemia de mortes de mulheres que não cometeram tais barbaridades das quais eram acusadas, isso incluindo magas brancas e mulheres sem nenhum envolvimento com magia.

Edmond, na teoria, não poderia se envolver com nenhuma mulher já que havia escolhido (na verdade, já que havia sido obrigado) a seguir aquele caminho de restrições carnais. Durante todo o tempo que estudou para se tornar um membro da hierarquia católica não se esqueceu de Marjorie e durante os primeiros anos acumulou ódio por não poder sequer vê-la já que estavam distantes. Com alguns anos ele se conformou com o caminho que teria de seguir e a sua raiva se voltou para Marjorie, para o desejo que ainda sentia por ela e pelos pensamentos que esse desejo o levava a ter. Pensamentos impuros que dominavam sua mente constantemente.

Mais uma epidemia de processos contra bruxas estava prestes a explodir quando Marjorie resolveu usar seus dons como curandeira para ajudar alguns poucos amigos e vizinhos. Enquanto isso, distante do humilde vilarejo onde ela residia e depois de muitos anos de preparação, Edmond era consagrado a padre e membro da Sagrada Inquisição. Todo o ódio contra as mulheres, aquele pensamento de que as mulheres eram o motivo da desgraça de grandes homens que durante anos havia sido cultivado agora seria posto para fora da pior forma – mas para ele a melhor possível – através da punição de acusados de bruxaria, pois a maioria seriam mulheres e “toda malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher.” (Eclesiástico 25:26).

Em uma de suas viagens para cidades vizinhas em busca de ervas e outros elementos, Marjorie ouviu boatos e chegou a ver membros da Sagrada Inquisição se deslocando até lugares próximos para mais julgamentos e fogueiras. Sendo protegido por uma das tropas da Santa Inquisição, ela viu um rosto que a lembrava de alguém. Seu coração se apertou e quando, por uma não coincidência, aquele homem protegido se virou e seus olhos se cruzaram, Marjorie imediatamente soube de onde o conhecia. Edmond a reconheceu no mesmo instante e depois de anos se sentiu jovem e livre novamente. Livre de todas aquelas crenças que dominavam sua mente e de todo aquele ódio que dominava seu coração.

Desde esse dia Marjorie não conseguia esconder a vontade de saber se era realmente seu Edmond e a decepção por saber que agora ele executava muitas das suas e muitas inocentes. Quando ouviu boatos de que a Santa Inquisição estava se dirigindo ao seu vilarejo foi tomada pelo medo. Em um sonho viu uma membro de seu coven listando nomes e depois viu uma fogueira e sentiu calor, muito calor ao mesmo tempo em que via o rosto de Edmond. Nessa noite acordou num salto, assustada e suando e se pôs a escrever uma carta para Edmond.

Os serviços de Marjorie estavam agradando as pessoas a quem eram oferecidos e tudo corria bem até que uma membro de seu coven foi culpada por um vizinho, com quem havia discutido dias antes, de provocar alterações climáticas e causar a dizima de uma grande colheita. Com essa acusação (injusta, só para constar) uma série de outras membros do coven foram listadas por Anne, a “culpada”, e entre elas estava Marjorie.

Depois disso tudo pareceu acontecer muito rápido. Ela já esperava a hora de ser encontrada e seus sentidos a avisavam que esse dia estava próximo. Estava muito frio e Edmond caminhava com uma tropa em direção a um vilarejo em Trier para buscar mais uma das mulheres que Anne havia acusado para não ir sozinha para a fogueira. Mal sabia ele quem era a acusada e que ela já os esperava.

Adentraram a humilde casa com um estrondo, pois nem se deram o trabalho de bater na porta, apenas arrombaram. Marjorie estava de joelhos ao lado de sua cama em algum ritual, fazendo alguma oração para alguma deusa quando foi pega rudemente pelos braços e arrastada para fora. Quando abriu os olhos, viu Edmond perplexo diante da visão de ela sendo carregada para uma sessão de tortura e depois para a morte.

“A carta em cima da mesa” – ela disse sem emitir som com uma expressão quase desesperada torcendo para que ele conseguisse fazer leitura labial e a entendesse.

Edmond olhou para o mesmo local onde Marjorie indicava com o olhar e viu um envelope com seu nome escrito.

“Padre Edmond! Vamos, senhor!” – disse o chefe da tropa que o acompanhava

“Só um minuto. Me espere do lado de fora.”

O chefe da tropa saiu, mas não deixou de espiar o que padre Edmond estava fazendo. Talvez só por precaução, talvez por pura curiosidade. O que importa é que ele viu quando Edmond caminhou em direção a tal mesa e tomou para si a carta.

Chegando ao local onde o tribunal havia sido montado, Edmond se deslocou até um lugar vazio e se pôs a ler a carta.

"Cher Edmond,

Comment êtes-vous? Tu me manques tous les jours. Sim, sinto sua falta todos os dias desde aquele em que eu te disse tudo o que sentia e você foi obrigado a se afastar. Aconteceram tantas coisas que eu gostaria de te contar, Edmond. Mas vejo que agora verá tudo com outros olhos, olhos ainda mais críticos que antes, mais acusadores.

Durante todos esses anos eu esperei por alguma notícia sua, por alguma carta talvez, sem pretensão porque cartas eu acho que seriam demais, mas ainda assim. Durante muitos anos eu senti raiva por você ter desaparecido de vez até que há alguns meses minha mãe faleceu e, enquanto eu arrumava suas coisas, encontrei um amarrado com algumas cartas ainda fechadas e endereçadas a mim. Depois de dois anos sem respostas você deixou de me enviar cartas mensais. Ao ler as cartas eu me emocionei tanto e me senti uma completa idiota por ter sentido raiva de você, por ter acreditado que você realmente tinha esquecido tudo. Na maioria das cartas você dizia que não suportava a vida que levava. E agora, você realmente gosta da vida que leva? Privado (ao menos teoricamente) de tanta coisa? Uma vez você mesmo disse a mim que o ser humano não vive sem três coisas: alimentação, um bom descanso e prazer. Onde está o prazer na vida que você leva?

Bom, independente disso, repito que sinto sua falta. Sinto falta das nossas conversas, do seu olhar e do seu abraço, dos apelidos que você colocava em mim... Ainda sente falta disso também, Edmond? Talvez tudo soe ridículo a você agora, mas e se eu disser que ainda sinto o mesmo que sentia em nossa adolescência? Você acreditaria?

Enquanto você esteve distante eu aprendi muitas coisas sobre um segredo que ronda minha família há tempos do qual agora eu também faço parte. E dias atrás eu te vi em um sonho. Sei que se está lendo essa carta agora, você e seus soldados já me carregaram para algum lugar qualquer para me torturarem e me queimarem em seguida, mas ainda assim quero que saiba que ainda amo você, que você foi o meu único grande e verdadeiro amor.

Acredito que tudo isso não começou nem terminará nessa vida. Se eu ao menos conseguisse explicar... Simplesmente parece que tudo foi para o lugar certo quando nos conhecemos e quando nos separamos, parecia que nada mais fazia sentido.

Enfim nos reencontramos, Edmond. E o que fazer agora?

Je t’aime beaucoup!

Marjorie."

Sim, ele amava aquela mulher e sua vontade era de fugir com ela daquele local. Por que era padre? Ele não amava aquilo, ele nunca quis aquela vida. Descobriu que suas cartas para ela nunca tinham sido recebidas e que no fundo, todo aquele ódio era só uma desculpa para esconder o amor que sentia. Seus pensamentos foram interrompidos pelo bispo Pierre, Inquisidor-geral.

“Padre Edmond?”

“Sim, senhor” – respondeu sobressaltado escondendo a carta.

“Venha comigo”

Bispo Pierre o levou até uma sala improvisada onde aquele chefe da tropa que acompanhava mais cedo Edmond os esperava.

“Onde está a carta, Edmond?”

“Não sei a que carta o senhor está se referindo, bispo.”

“Soldado, conte-nos sobre o que o senhor viu hoje mais cedo na apreensão daquela mulher de cabelos de fogo, um daqueles seres demoníacos e impuros.” – ordenou o bispo.

“Bom, senhor... Eu e os outros soldados estávamos tirando a acusada de dentro de sua casa quando ela disse alguma coisa inaudível para o padre Edmond e o indicou uma mesa onde havia uma carta que, provavelmente já que ele a pegou, estava endereçada a ele.”

“Maldito seja, soldado! Maldito seja!”, Edmond o amaldiçoava mentalmente enquanto mantinha uma expressão tranquila.

“O que o senhor me diz, Edmond?”

E o silêncio se fez presente na sala.

“Edmond! Responda. Conhece a acusada?”

“Sim, senhor” – respondeu com os olhos baixos.

“E a carta, ela existe?”

“Sim, senhor.”

Conclusões foram tiradas a partir dessas respostas e uma punição estava sendo preparada para Edmond da mesma forma que Edmond estava preparando uma fuga. Sim, ao ler aquela carta ele havia decidido parar de fingir ser um homem santo e voltado para Deus e se entregar ao que realmente queria: Marjorie e uma vida com ela.

O julgamento dos acusados seria feito logo na manhã seguinte, então Edmond não teria muito tempo para por o plano em prática. Logo, assim que deu meia-noite, como todos já estavam dormindo ou ao menos em suas camas, Edmond foi até o local onde Marjorie estava aprisionada.

“Marjorie?” – sussurrou ao ver sua bela branca de cabelos de fogo sentada no chão de terra presa por correntes nos tornozelos.

“Edmond? Edmond! O que faz aqui?”

“Vamos fugir” – disse Edmond já soltando as correntes que a prendiam. Ele havia conseguido a chave, pois o soldado estava bêbado demais para impedi-lo.

“Mas... Mas Edmond! Vai abandonar tudo assim?”

“Não vou abandonar tudo! Vou abandonar a parte insignificante da minha vida e de uma vez por todas dar atenção ao que realmente importa, você.”

Marjorie sorriu. Ela ainda via naqueles olhos o mesmo Edmond de anos atrás, de sua adolescência. Ela ainda sentia naquelas palavras a sinceridade que sentiu quando ele disse que a amava e que um dia ainda formariam uma família. Ela ainda amava aquele Edmond, mesmo ele tendo sido arrancado de seu lado anos atrás para seguir uma vida que os afastaria para sempre se ele não tivesse tomado àquela decisão.

E assim fugiram. Edmond e Marjorie subiram em um cavalo que mais cedo ele havia usado para chegar até ela e fugiram. Mas depois de alguns poucos dias resolveram descansar e, enquanto dormiam juntos em uma barraca improvisada, chamas os engoliram. Os soldados que acompanhavam a Santa Inquisição haviam recebido ordens para acha-los e mata-los queimados.

O último rosto que Marjorie viu foi o de Edmond em meio às chamas como em seu sonho.

Debora Santos
Enviado por Debora Santos em 12/04/2013
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