Imagem:riofilmcommission.rj.gov.br
Na estação, Talita se sentiu seguida por um homem de terno escuro cujo rosto lhe pareceu familiar. Olhando-o fixamente, reconheceu nele a imagem do passageiro que lhe dera o telefone anotado em um pedacinho de papel. Ela jamais diria que lhe telefonara durante dias seguidos... Por sorte, Fernão a poupou deste constrangimento, informando-a de que estivera fora do Brasil. Ela desceu na Estação Carioca e entrou na Suport Informatic. Ele a acompanhou.
— É mais um freguês, pensou Talita.
Indagou o preço de uma placa-mãe para seu NOTEBOOK ADM TURI. Pagou e retirou-se, não sem antes filmar com sua retina o perfil da balconista sorridente que dizia: “Volte sempre!” Logo que Fernão se retirou, curiosamente, Talita leu na segunda via da nota de balcão: Fernão de Noronha Capelo — Praça General Osório...
Àquela hora o prédio da Rio Branco estava praticamente vazio. Ela fechou a loja e passou na confeitaria. Por lá sempre aparecem jovens, pessoas mais velhas com ar de intelectual, e empresários que fecham grandes negócios, enquanto tomam o chá das dezessete e trinta. Contemplou cinco enormes prateleiras que guardam a beleza das taças de cristal bordadas em ouro. O telefone móvel tocou. Atenta, ouve a voz suave de um interlocutor que não lhe permitia falar.
— Não nos encontraremos mais no primeiro vagão, naquele horário da manhã — respirou fundo e disse pausadamente — logo mais estarei na Confeitaria. Preciso falar pessoalmente com você.
Ela esperou.
Mil e um pensamentos passaram em sua mente. “Será que vale a pena? Pode não dar em nada esse encontro. Talvez sim, talvez não, quem sabe!” Novamente Fernão tomou o metrô, desta vez, em sentido contrário, voltando... As palavras de Vannini ainda ressoavam no fundo de sua alma: “Vá de táxi”, dizia quando notava que o marido não tomara o comprimido na noite anterior, porque os sinais de abstinência eram visíveis: mostrava-se irritadiço, não queria comer ou comia demais. Dormia tarde e acordava muito tarde e se dizia perturbado, muito perturbado com a voz da sogra a ecoar em seus ouvidos: “Louco, você é um louco!...Deixe minha filha em paz...”
Ele não podia ser contrariado. Aquilo que lhe era negado insistia até conseguir. Mas, não era momento de pensar naquelas coisas. Tinha horário marcado na confeitaria com a moça da loja de informática. Obsessão! Talvez àquela hora sua mulher estivesse nos braços de Hemor. Seria mais prudente então, empreender uma nova conquista que disputar o amor de Vannini com o aviador.
Foi o primeiro encontro. Fernão a levou em casa e se despediu dela com um ingênuo beijo no rosto. Ela retribuiu com outro um pouco mais ousado. Ele dissimulou. Tentou mostrar-se emocionado, mas não sabia se estava fortemente afetado pelo efeito da dose dupla de fumarato que tomara ou enciumado com as imagens que fazia de sua mulher nos braços de Hemor. Fitou Talita demoradamente. A moça tinha sorriso doce e sobre os cabelos negros, uma rosa vermelha guardava harmonia com as vestes. Ele olhava e via nela o rosto de Vannini. Não sabia muito sobre Talita, nem mesmo que figurava nos registros de memória dela apenas um casamento que não aconteceu. Foi cauteloso, jamais fizera convite direto para ela conhecer seu apartamento e os encontros na confeitaria, bares e restaurantes tornaram-se mais frequentes.
Outro dia, ele parou com ela, de carro, defronteao prédio em que morava e disse:“Volto logo, só vou pegar um chaveiro de memória... Se não se incomodar com a bagunça, suba! Deves imaginar o que é um homem sozinho em casa.” Ela subiu mais pela curiosidade de saber como é um “homem sozinho em casa”. Realmente, o apartamento estava em total desordem: copos na pia, panelas sujas sobre o fogão e roupas jogadas no sofá. Mas, sem demora, Fernão desconectou o pen drive de seu computar e enfiou-o no bolso. “Se quiseres, já podemos ir, ou vais ficar para lavar a louça?” Disse com ar de riso, estendendo-lhe a mão. Abriu a porta e saíram devagar. Na escadaria, deu um beijo no rosto dela, que parecia mais uma caricia de pai, um amor diferente, um amor que inspira confiança.
O Notebook estava no carro, seria ainda aquele para o qual comprara uma placa-mãe? Talita não entendeu por que Fernão chamou o pen drive de chaveiro. Segurou a curiosidade, nada perguntou. Talvez ele não quisesse interferir na memória profissional dela. Andaram pouco, sem qualquer direção, praticamente calados até que o rapaz irrompeu o silêncio:
—Posso levá-la em casa? Tenho um trabalho a fazer no escritório, com certa urgência!
— Pode sim, pode sim...
Agora ela tinha um homem para chamar de seu... Se nascera fadada a virgem vestal, julgava haver cumprido a missão: viveu trinta anos de castidade e, mesmo correndo o risco de ser atirada do monte Capitolino, tinha agora um homem. Poucos dias depois, novamente ele fez outra parada no apartamento. Parecia um convite para ela entrar. Desta vez não criou a desculpa de pegar um pen drive, simplesmente, disse:
—Demorarei pouco. Vou tomar banho e arrumar para sairmos. Se quiseres me acompanhar, garanto que não tem prato sujo na pia.
— Tenho sede. Vou subir. Espero que os copos também não estejam sujos na pia.
Era quase possível ver o nervosismo dele refletido no soalho. Não havia roupas espalhadas no chão. Nada sujo na pia. Tudo limpo e arrumado revelava a obra de uma boa diarista. Pratarias, talheres, cristais e vinhos sobre a mesa lembravam, guardadas as proporções de espaço e posses, o salão de chá da Confeitaria Colombo. Talita vasculhava com o olhar tudo que suas vistas alcançavam. Precisava explorar o máximo que pudesse, sem tocar em nada, enquanto ele tomava banho.
O tempo não lhe pareceu tão longo. No banheiro, Fernão criava frases, fazia e desfazia abordagens dirigidas ao espelho, acompanhando e refazendo os movimentos para corrigir gestos labiais e frases que não podiam ser feitas por encomenda. Queria ser autêntico. Temia assustá-la se saísse de roupão, ou quem sabe, no susto ela deixasse escapar um “Oh!” Preferiu não arriscar o roupão. Quem sabe uma bermuda, uma roupa caseira mais leve?...
—Demorei muito?
— Nem tanto! Agora preciso ir ao banheiro.
A banheira de hidromassagem estava coberta de pétalas. Pétalas de rosas vermelhas, da cor dos lábios dela.
Relaxou e disse sorridente ainda saindo do banho.
— Gostei da surpresa. Não sabia da banheira com pétalas.
A garrafa de vinho que Fernão abriu, não chegava a ser um rare wines. Mas, tinha nome estrangeiro e a indicação da safra 1977.Ela não conhecia a marca GROUPIE. Nem tinha certeza da tradução. Pensou, pensou até se lembrar de já ter visto aquela inscrição nas camisetas que Tília usava por baixo do uniforme como um pacto com seus ídolos.Mas, vinho com aquele nome, nunca tinha visto. Talvez Fernão tivesse mandado rotular por encomenda a algum vinhateiro.
Naquele final de tarde, Talita bebeu água no poço de Jacó e deu também de sua água ao samaritano.