Monsenhor!


Em um único deslize, no meio do mosaico pincelado a pincéis rústicos, na distante paragem da minha infância, vi o efeito do etílico descer das sombras e inundar a alma de um ser outrora amado.

Tornei-me uma impenetrável pedra diante do fascínio do álcool, carreando juntamente toda a espécie de luxúria, exacerbando no gosto pelo que havia de mais severo e, nesse passo marcado a ritmo de notável rigidez, virei o maior defensor da integridade dos bons costumes.

Quando a sociedade deseja, não a força que inverta uma tendência e, diante de minha fúria, cresci no meio passando a adotar cargos e cargos de autoridade incontestável passando a ferir, na carne e na alma, todos os que se atreviam a desviar do caminho que entendia ser justo, fértil e bom.
Calei o ruído das tabernas, bani a bebida, incentivei os cultos e queimei bruxas, hereges e pecadores.

- Monsenhor! - E todos se curvavam à minha passagem abrindo caminho diante da estância arrogante que ergui na nossa comunidade.
No entanto, é da Lei Maior, escrita com o pó estelar, que nenhum homem reine para sempre.

Quando caminhava sobre as pedras sujas e enlameadas da cidadela, erguida sombria, no alto daquela colina, mal sustentando nossas moradas tristes e tortas, pude ouvir o bater de cascos no início da ladeira denunciando que um teimoso equino ousava vencer a gravidade.
Cabras e burricos completavam aquela chegada que, a princípio, iluminou meus olhos já desafetos a qualquer lance de brilho.
Tive a cintilante visão de um sonho breve, ao ver aquela capa vermelha a cobrir uma silhueta que não trairia: era uma formosa e jovem mulher.

Vi-me, por um segundo, novamente menino e fui vitimado, ao vê-la levantar os olhos, por um veio de encanto fazendo-me vacilar sobre as pernas e quase deixar cair ao solo o Livro da Verdade, contendo todos os ensinamentos para uma vida reta.

Não se pode servir a dois senhores, está escrito, mas onde se escreveu que um coração não pode escolher?

No velame daqueles negros cabelos vi-me entregue quase a um choro interno na alma e sabia que apontara ali o meu momento de extrema verdade.
Era agora um peixe a nadar severamente contra uma corrente vertida nas minhas lágrimas de tantos anos de abandono dos sentimentos puros.
No entanto, do ferro vem a ferrugem, e, quando deitei de ver que seus trajes eram de uma cigana, vi-me descer do vinho ao vinagre.
Reativando minha acidez habitual, saltei-lhe adiante, detendo o animal e interpondo que justificasse a invasão.
Leve em seus movimentos, açucarada no gesticular, atreveu-se a fazer o que ninguém jamais ousara e tocou-me leve, no rosto, alisando-o com uma tamanha paz que meu coração verteu rocha em areia.
Soltei o animal e permiti que entrasse em nossas vidas.
Fui, pela comunidade que educara, pesadamente cobrado e senti o ferroar dos ódios que os ensinara a cultivar.
A donzela firmou morada. Sorria a todos e vestiu de cor um mundo pálido que havia semeado.

Seus olhos me atraíam de modo cabal e vi-me, então, diante dos seus persuasivos e definitivos encantos, transformado em um novo homem.
Certa noite, à beira de um lago, enquanto meditava, vi-a, entrar nas águas e banhar-se ao luar. Percebendo-me, convidou-me e nos tornamos amantes.
A tortura daquela divisão ameaçava-me lançar ao descrédito perante a comunidade. Notei que os hábitos de todos afrouxaram.
As minhas visitas, ocultas, à mansarda da jovem dama, já não eram mais secretas.

Soube de uma taberna nova, à entrada da cidade, soube de risos, de festas, de frequências que se reduziam à Igreja.

Soube, também, que ela esperava um filho e não mais era oculto o nosso viver.
Casamo-nos, sendo que parte da comunidade passara a me odiar, mas outra parte, sensível à minha transformação, quedou-se de zelo e gosto pelo novo homem que nascera em mim.

Já não era mais severo, a não ser, na minha entrega infinita àquele amor e que me perdoe o meu antigo Senhor...