Tentação ( parte XXXVIII )
 
( continuação do capítulo anterior )
 
Silveira estava sozinho no convés do navio, Ubiratan tinha sentido um mal estar devido aos  movimentos da embarcação, havia vomitado durante a noite e continuou acamado durante o dia. Já haviam entrado em águas brasileiras e isso deu novo ânimo a ambos. 
 Um senhor que estava também no convés, alto e vestido com um terno cinza, de barbas pretas e grande cabeleira a lhe emoldurar o rosto, dirigiu-se para Silveira e se apresentou:
- Bom dia, eu sou o doutor Raimundo Morais e gostaria de ter um fiapo de prosa com o senhor.
- Deixe-me apresentar também, sou Silveira, fazendeiro em Minas Gerais e importador e estou voltando dos Estados Unidos onde fui em viagem de negócios.
- Senhor Silveira, o senhor vai me desculpar, mas esse convés é muito pequeno para não deixar de se observar e vi o senhor todos esses dias em conversa tão animada  com aquele seu amigo, que se nota logo tratar-se de uma amizade sólida, o que não é muito comum na nossa sociedade, onde brancos e negros são senhores e escravos, pois não ?
- As amizades senhor Morais, independem das relações de poder... Talvez ele pudesse ser um escravo amigo... Mas tenho dito a ele sempre que abordamos esse tema, que       ninguém  pode escravizar os nossos pensamentos, e exemplifico com a história de Epicuro, um escravo romano que ficou conhecido por seus trabalhos sobre a ética e a moral.
O senhor Maurice é congolês, um homem muito culto, poliglota, que é representante no Brasil de uma firma belga da qual tenho uma representação.
- Ah, entendi... Bem, podia-se notar que não havia uma relação entre senhor e escravo...
- Pois é, doutor Raimundo, hoje o Brasil está dividido entre duas opiniões contrárias, os escravagistas e os abolicionistas, para qual partido o senhor pende?
- O senhor lê a Gaveta da Tarde, senhor Silveira? Pois bem, o editor, senhor Joaquim Nabuco, é meu amigo pessoal e somos abolicionistas, mas acredito, como o senhor é fazendeiro, e deve ser proprietário de escravos, que seja escravagista...
- O mundo é muito complicado para ser dividido em preto e branco, pois não ? Observou Silveira, e continuou:
- A grande convergência é para o cinza, que é uma mistura e que vai atender a todo mundo... Veja só, a lei do ventre livre, foi um ótimo passo, foi um avanço, essa outra lei que não admite que os familiares sejam vendidos em separado, já foi outro grande passo... Seguindo assim, aos poucos teremos a abolição da escravidão sem traumas econômicos porque o Brasil está estruturado em uma economia rural. Eu penso assim...
Num país em que morrem milhares de pessoas de tifo, varíola, peste bubônica, onde não temos água encanada, esgoto sanitário, onde todos os problemas são de grande porte... Onde as leis são feitas para proteger uma minoria privilegiada, senhor Raimundo, acredito que temos muitas outras prioridades para tratar antes da abolição da escravatura. Porque não fazermos leis mais humanistas para proteger os escravos dos desmandos dos senhores? Acredito que haja muito caminho a percorrer antes de se pregar a abolição.
- O senhor não deixa de ter sua parte de razão, fala como um positivista, onde enfatiza o real, o útil, o correto, preciso e a razão, pelo que observei deve ser um seguidor de Augusto Comte...
- Não, doutor Raimundo, eu não sou adepto dessas novas teorias, não faço proselitismo para nenhum segmento de conceitos filosóficos ou religiosos, mas me considero um humanista. Sempre que a história nos conta, houve senhores e escravos, até a Bíblia sagrada nos relata dos judeus escravizados no Egito, de José liderando
 os escravos libertos por quarenta anos até encontrar a Terra Prometida, os romanos escravizaram grande parte da humanidade... Vejo a coisa dessa forma, o importante não é abolir de imediato a escravatura e falir economicamente o país, o que se deve fazer, enquanto a escravatura não pode ser abolida de imediato, é humanizar a relação entre o senhor e o escravo.
Hoje, como um escravo custa caro, ele é considerado um patrimônio para o senhor... Para conservá-lo valorizado, ele tem que ser bem tratado, bem alimentado, ser tratado com humanidade, dentro dos preceitos religiosos que professamos... 
O doutor Raimundo olhou profundamente para Silveira e pensou, esse homem é adversário da nossa causa, mas tem que ser muito bem considerado, porque além de inteligente tem amigos negros... Não custa tentar...
- Meu amigo Silveira, conhecê-lo, para mim foi um imenso prazer, gostaria de apresentá-lo aos meus  amigos jornalistas Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, um farmacêutico que escreve para a Gazeta de Notícias. Assim que chegarmos ao Rio, teremos um encontro, o senhor gostaria de participar? Talvez, quem sabe se possa considerar fazermos um debate entre essas nossas posições divergentes mas cada uma com suas verdades incontestáveis.
- Irei com o maior prazer, doutor.   

( continua no próximo capítulo )
 
elzio
Enviado por elzio em 01/04/2013
Reeditado em 23/05/2013
Código do texto: T4217622
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