Rosa Branca
O dia ensolarado era de animar grandemente qualquer um. Poderia realmente inspirar muitas pessoas a sair da frente do computador e aproveitar aquele belo dia no parque, contemplando o belo céu azul. Mas que fazer no parque? Alguns levavam seus cachorros para brincar, outros faziam Cooper ou praticavam outros esportes como futebol, e alguns ainda prefeririam simplesmente deitar na grama e olhar para o céu.
Dentre tantas pessoas que aproveitavam aquele belo dia naquele belo parque, uma dedicava-se a uma atividade incomum: tocar o seu violino. Era uma garota de baixa estatura, com ralos cabelos negros, olhos cor de mel e um nariz quase tão redondo quanto sua face. Ela estava sentada debaixo da sombra de duas grandes árvores, afastadas da planície onde a maioria das pessoas praticava atividades físicas. Sua música dificilmente atingiria aqueles que estavam no centro do parque, mas lhe era bem audível. Naturalmente, ela chamava a atenção de algumas pessoas.
Foi o caso daquele garoto alto de olhos azuis que andava animadamente entre as árvores e foi atraído pelo som do violino como se este fosse uma agradável fragrância. Avistou a violinista de longe e se aproximou dela a passos cautelosos, até chegar bem perto. Sentou-se apoiado numa grande árvore e ficou olhando-a, encantado, até ela terminar.
- Muito bonito. - disse ele.
A garota assustou-se. Não tinha percebido que o rapaz estava ali. Ela o olhou por poucos segundos e respondeu-lhe com uma careta. Sem dispensar-lhe maior atenção, voltou-se para o violino. O homem se levantou e chegou mais perto dela.
- Você realmente toca muito bem. - ela abaixou o instrumento e olhou-lhe fixamente, como que com repreensão
- Eu não preciso do seu elogio! - apesar do tom irritado, sua voz era muito bonita, pensou o rapaz, mas o som que ela tirava do violino era ainda mais belo. - Eu sei que você só está querendo me xavecar, e pode desistir, que isso não vai dar certo. - ele continuava a olhar-lhe com um sorriso sereno e amistoso. Ela concluiu que ele era bem mais bonito que a maioria dos rapazes que já a havia cortejado enquanto ela tocava, e teve vontade de admirar mais seus belos olhos azuis.
- Mas o que eu posso fazer, se eu realmente gostei de te ouvir tocando Brahms? - a garota fitou-lhe.
- Como disse?
- O que você tocou agora foi o terceiro movimento da segunda sinfonia de Brahms, não foi? Sua interpretação foi belíssima. Você realmente toca bem.
- Você. . . conhece Brahms? - a garota tinha passado de irritada a intrigada assim como um pianista passa do fortíssimo ao pianíssimo repentinamente.
- Claro que sim, é um grande compositor! E, acredite, eu não elogiaria alguém à toa. - finalmente, a garota abriu um sorriso. Aquilo, sim, tornava bela sua aparência.
Ela se levantou e estendeu-lhe a mão.
- Sou Mia. - falou.
- Eu sou Marcelo. - disse o rapaz, apertando-lhe a mão com cortesia.
Mia olhou para o horizonte, pensativa.
- Marcelo. . . que coincidência que nossos nomes começam com a mesma letra.
- Mia e Marcelo - disse ele, rindo. - dois belos nomes começados com a letra M. A mesma letra com que se escreve “música” na maioria dos idiomas. - observou.
Mia se mostrava cada vez mais intrigada com a conversa do rapaz.
- Você gosta de música? - perguntou-lhe. Marcelo começou a se afastar, caminhando e, percebendo que ela ficara para trás, perguntou-lhe:
- Vamos caminhar pelo parque? - ela imediatamente guardou seu violino e os dois começaram a caminhar, lado a lado no gramado daquele belo parque.
- Você perguntou se eu gosto de música. - ele dizia, com tom de voz sério. - Eu amo a música mais do que à própria vida.
- Sério? - dizia a garota, animada. - E de onde vem tanto amor?
- Não sei. A música simplesmente me cativa. Desde que eu consigo me lembrar, ela sempre esteve ali, me fazendo feliz.
- Então você tem um amor verdadeiro por essa arte!
- Ah, é! Quando eu era criança, gostava de batucar com os pratos e panelas dos meus pais, e isso os deixava realmente bravos, mas eu não parava, porque o som me atraía. E gostava também de esticar elásticos e barbantes para ouvir o som das vibrações - e com um riso descontraído, acrescentou: - acho que essas foram minhas primeiras experiências musicais.
- Com certeza você tem inclinação para a coisa.
- Não consigo pensar em inclinação maior da minha parte. E acho que meus pais perceberam isso. Quando eu tinha sete anos, ganhei um violino de presente. Foi a coisa mais legal que eu já ganhei.
- Você também toca violino? - exclamou.
- Não tão bem quanto você.
- Mesmo assim, isso é uma coisa que eu quero ver! - ela dizia, empolgada, olhando para o nada.
- E quem sabe nós possamos até tocar juntos.
- Oh, isso seria um prazer! - falou ela, ainda com o olhar distante. - Que bom, Marcelo. É tão bom encontrar alguém que aprecia a música como eu.
- Eu digo o mesmo de você - falou o rapaz. - E já que você gosta tanto de música, Mia, vamos compartilhar algumas experiências. Quem é seu compositor favorito?
- Bach. - Marcelo teve um pequeno sobressalto.
- Você só pode estar brincando! - disse - é meu favorito também!
- Sério? Aí está mais uma coisa que temos em comum! Paixão Segundo São Mateus é minha eterna favorita!
- Já eu prefiro os concertos de Brandenburgo, principalmente o terceiro e o quinto. - com os olhos cerrados, a garota parecia sentir um cheiro agradável no ar, e parou de caminhar. - O que você está fazendo?
- Ah! Me desculpe. Eu estava ouvindo o concerto que você falou na minha cabeça. - ele deu uma breve risada.
- Que tal nos sentarmos debaixo daquela árvore, Mia? Pra nós conversarmos mais. . .
- Me desculpe. - falou a garota, balançando as mãos, mas sem desfazer o sorriso - eu tenho que ir agora.
- Tudo bem - falou o rapaz, tirando o celular do bolso. - Mas me deixe anotar o número do seu celular.
- Eu não estou com meu celular agora.
- Tudo bem. Acho que amanhã. . .
- Com licença. - ela realmente parecia ter certa pressa, e saiu correndo pela grama com seu violino.
Marcelo observava a cena com satisfação. Não conseguiria imaginar que ela o estivesse evitando.
- Toda boa coisa da vida - falou ele, para si mesmo - é melhor se você tiver com quem compartilhar.
Voltou para a casa satisfeito. Pegou seu violino, mas não conseguiu tocar. A imagem da garota permanecia em sua cabeça. Que acaso! Se ela não estivesse tocando violino, ele não saberia que os dois tinham tal amor em comum. Mas com certeza, uma grande amizade surgiria desse acaso. Marcelo nunca antes tivera a experiência de conhecer alguém que se cativasse com a música tanto quanto ele, e provavelmente Mia também não. Sua empolgação era tamanha que ele não reparou na peculiar reação da garota ao ir embora tão repentinamente.
No dia seguinte, com o mesmo ânimo ele levou seu violino ao parque. Estava ansioso para mostrar a ela o que sabia tocar e, quem sabe, talvez até tocassem algo em conjunto. Andou desesperadamente pelo parque durante horas, mas não a viu. Não tinha problema. Afinal, pouca gente deveria ter por hábito ir ao parque todos os dias. Mas ele imaginava que ela teria a mesma mentalidade que ele de se encontrar de novo no mesmo horário e lugar. Não havia dúvida, na mente de Marcelo, que a vontade de Mia era vê-lo de novo, assim como era a vontade dele vê-la de novo.
E assim, durante vários dias, ele ia rigorosamente ao parque naquele horário, naquela árvore sob a qual ela tocava no dia em que se conheceram. Mesmo com chuva, a presença do rapaz com seu violino era algo certo, e isso foi até mesmo reparado por outros visitantes. Até que, no décimo dia, ao se aproximar do local costumeiro, o som do violino logo se tornou evidente.
Ele a avistou de longe. Assim como no dia em que se conheceram, ele se aproximou devagar, sem que ela percebesse. Encostado na árvore, esperou até o fim da peça, apreciando cada nota.
- Que bela melodia! - exclamou, causando um arrepio de susto na garota.
- Ah, é você, Marcelo. - disse ela. O rapaz tomou a liberdade de se sentar do seu lado.
- Você toca maravilhosamente, Mia. - ele falou. - Seria um desperdício se nós não voltássemos a nos encontrar, mas naquele dia você saiu com tanta pressa.
- Me desculpe por isso. - ela disse, um tanto desanimada. - eu gostei muito de conversar com você, mas nós não podemos ser amigos. - Marcelo não demonstrou surpresa, mas a fitou profundamente, como que pedindo por uma explicação.
- Naquele dia, você me contou como a música sempre esteve presente na sua vida, e eu gostei muito de te ouvir. Mas acontece que comigo é diferente. Meu pai toca violoncelo numa orquestra.
- Mas isso é demais! Então você é de uma família de músicos!
- Isso pode parecer legal para você, Marcelo, mas é diferente quando a música é imposta a uma pessoa. Acho isso muito errado. O amor deve ser espontâneo. Você sim, ama a música de coração. Eu vejo o brilho nos seus olhos quando você fala de música. Mas eu não tive escolha. Eu nasci destinada a ser musicista.
Marcelo coçou seu queixo vagarosamente e depois ficou quieto alguns segundos. Por fim, começou a falar:
- Você ama a música.
- Amo sim! - disse Mia.
- Eu sei. Você diz que vê o brilho nos meus olhos quando eu falo de música, mas eu também vejo o brilho nos seus olhos. A música pode vir de família, mas ainda assim, ela está no seu coração. Mesmo que você não fosse duma família de músicos, assim como eu, de um jeito ou de outro você a descobriria e se apaixonaria. Talvez você até tenha herdado isso do seu pai.
- É verdade. - falou a garota - mas o meu pai não nasceu numa família de músicos. Ele era pobre, mas descobriu a maravilha que é a música quando era criança. Ele se esforçou muito para poder ser o violoncelista que é hoje, e quer me dar todas as oportunidades que ele não teve. Ele é extremamente perfeccionista. Acho que ele quer que eu seja como o Nigel Kennedy ou como a Vanessa Mae. É por isso que não podemos ser amigos, Marcelo. Amizades comprometeriam o meu amadurecimento musical. - Ele deu uma risada desdenhosa.
- É você quem está falando isso, ou é o seu pai? - ela ficou ruborizada e não respondeu.
- Mia, eu gosto de você porque a música está em você. Acho que seu pai gostaria de saber que foi isso que me atraiu em você. Mas você acha certo uma pessoa forçosamente ser a melhor?
- Como assim? - pergunta a moça, intrigada.
- Bem, você tem uma grande habilidade com o violino, que com certeza é resultado de anos de esforço. Mas você se esforçou porque gosta do violino, ou porque seu pai te forçava a tocar? - ela ficou olhando para o chão, pensativa. Marcelo se levantou.
- Acho que você ainda não entendeu o meu ponto. Eu gosto de música, você também gosta. Podemos apreciar a música juntos, mesmo que isso comprometa o seu amadurecimento musical, que eu não creio ser o caso. Você é quem disse, Mia, o amor tem que ser espontâneo.
- Já entendi. - falou ela, levantando-se também. - Você quer ir à minha casa, Marcelo?
- Claro! Aliás, você quer ver meu violino?
- Me mostre quando chegarmos lá.
A casa de Mia parecia ser nada mais que uma casa típica duma família de classe média. Mia lhe mostrou sem muito ânimo os cômodos da casa, até chegar ao quarto de seus pais. Marcelo ficou atraído pela vasta coleção de discos que o pai de Mia tinha. Poderia ficar o dia todo ali, vendo os CDs. Seria difícil decidir qual ouvir primeiro. Porém, um em especial lhe chamou a atenção.
- Meu professor - falou ele, intrigado, segurando um disco.
Mia logo foi ver de que se tratava.
- Seu professor? Esse é o maestro da orquestra que meu pai toca! - disse ela
- Isso é incrível! - falou Marcelo. - Eu e ele somos da mesma cidade natal. Ele e a esposa fundaram uma escola de música lá há alguns anos. Não tinha muitos alunos, mas eu era um deles. - Mia estava tão admirada de saber disso quando Marcelo de achar um disco de seu professor ali, na casa de sua amiga.
Mas, sem se delongar mais no assunto, Mia lhe chamou e levou-lhe ao seu quarto. O quarto era pequeno, mas abrigava muita coisa. Mia possuía não um, mas três violinos. O mais antigo ela raramente tocava, mas tinha grande valor sentimental, já que ela o tinha desde criança.
- Agora fiquei meio encabulado de mostrar o meu. - disse Marcelo, brincando.
- Você gostou deles?
- Muito, como são bonitos! Tenho certeza que o som que eles produzem é ainda mais belo.
- Então vamos comprovar. - respondeu a garota, um momento antes de apoiar seu violino no queixo.
O rapaz tirou seu violino do case e fez o mesmo.
- O que vamos tocar? - perguntou ela.
- Já que você gosta tanto de Bach, pensei que deveria ser uma peça dele.
Não houve mais diálogo antes que os dois começassem a tocar o concerto para dois violinos em ré menor, BWV 1043. Nunca tinham tocado juntos antes, mas conseguiram, sem muita dificuldade, alcançar uma harmonia. Marcelo precisou apenas introduzir a música e Mia conseguir logo acompanhá-lo. Isso aconteceu não apenas por causa da grande habilidade que os dois tinham, mas também por causa do amor mútuo. O amor mútuo dos três Ms. Aquela casa era duma família de músicos, sim, mas nunca antes a música emanada dum cômodo daquela casa transmitiu tanta energia positiva. Isso poderia ser dito, embora não houvesse ninguém presente na casa para ouvir a bela melodia. Mas para o espírito daqueles dois jovens apaixonados, fez diferença.
Quando terminaram, ficaram sem palavras, olhando um para o outro. Realmente, não havia o que dizer. Era como se tudo já tivesse sido dito através da música. Marcelo apresentava grande satisfação, mas Mia parecia aturdida, com o olhar distante.
- Que estranho. - disse ela. - Eu nunca toquei em conjunto com alguém que não fosse o meu professor. Mas foi tão agradável. . . eu senti como se nós dois estivéssemos ligados de alguma forma.
- Sei exatamente o que você quer dizer.
- Sabe? - estranhou ela.
- Se sei, eu acabei de sentir a mesma coisa! Porque essa foi a primeira vez que eu toquei em conjunto com alguém.
- Sério? - exclama ela.
- Seriíssimo. Mas ainda assim, Mia, se me der o prazer, eu quero tocar algo exclusivamente para você.
- Você vai tocar pra mim? - a jovem se mostrava curiosa. - O quê?
- Nessa casa tem um piano?
- Tem, mas é quase que simplesmente um capricho. Meu pai não sabe tocar piano, e nem ninguém nesta casa. Às vezes ele nos diverte quando temos visitas.
- Mostre-me. - ainda um pouco confusa, Mia levou Marcelo até uma saleta contígua à sala de estar. Ali não havia nada além do piano.
Marcelo mostrou-se admirado logo ao ver aquele belo instrumento. Tomou a liberdade de levantar a tampa e acariciar as teclas de marfim com suas mãos.
- Yamaha. . . que beleza. - repentinamente, os olhos que se mostravam tão atenciosos para o piano se voltaram imediatamente para a garota. O rapaz parecia muito concentrado, a contemplá-la.
- O que foi?
- Você pode achar estranho, mas estou buscando na sua imagem uma inspiração. Já sei a música que combina perfeitamente com você! - e finalmente se sentou na banqueta e pôs as mãos sobre o teclado.
- Essa música é pra você, Mia!
- Você não me disse que também tocava piano! - exclamou a garota.
Sem responder-lhe, o jovem iniciou uma empolgada performance de Claire de Lune, de Debussy. Mia logo ficou cativada. Já tinha visto muitos pianistas tocar antes. Muitos pianistas muito mais virtuosos que Marcelo, mas ainda assim a música dele lhe causava indescritível bem estar. Seria porque ele estava tocando especialmente para ela? Por que ele dissera que ela fora sua inspiração para tocar aquela bela peça? Não havia explicação. Não precisava haver.
Infelizmente, o rapaz não pôde chegar até o final da performance, porque foi interrompido quando a porta da saleta se abriu repentinamente. Um homem gordo e robusto, com face protuberante, pequenos e encerrados olhos negros e calvo, porém com largos bigodes entrou abruptamente na saleta, distraído o pianista de sua interpretação.
- Papai! - exclamou Mia.
- Oh, vejo que está ouvindo boa música ao vivo, minha filha. - disse o homem. - Mas quanto você pagou a esse rapaz? Eu poderia chamar um dos meus amigos da orquestra de graça!
Sentindo um misto de ofensa e desconforto, Marcelo se levantou e estendeu-lhe a mão.
- O senhor é o pai de Mia? Muito prazer, sou Marcelo.
- Que honra, Marcelo. Você é muito bom para sua idade. Trabalha por conta própria?
Mia respondeu com uma ingênua risada.
- Não é nada disso, papai. O Marcelo é só um amigo. Ele só estava tocando pra mim uma música que me lembrasse.
- Como? - indagou o homem, perplexo. Marcelo balançou as mãos, meio constrangido.
- Sou grato de ter conhecido a Mia. Eu e ela nos entendemos muito bem na linguagem da música.
- Que bom! É difícil encontrar jovens apreciadores de música como você, meu jovem! Seja muito bem vindo. - ele disse um momento antes de se retirar.
Quando saiu, os dois jovens ficaram se entreolhando e rindo.
- Ele não me reprovou como você.
- Eu também não teria, se tivesse te conhecido quando você estava tocando piano desse jeito fantástico!
E continuaram a conversar e tocar durante várias horas, até cair a noite. A família de Mia hospitaleiramente convidou Marcelo para o jantar. O rapaz de início recusou, mas como sua própria amiga insistiu, ele ficou para o jantar. Mia queria, na verdade, que seus pais conhecessem um pouco melhor o amigo.
Enquanto todos estavam recostados à mesa apreciando as costelinhas de porco, Mia, que estava sentada ao lado do convidado, o fez engasgar dizendo repentinamente:
- Papai, o Marcelo é aluno do maestro da sua orquestra.
- Ora! - admirou-se o chefe da família - Isso é muito interessante! Suponho que tenha sido aluno da escola de música dele.
- S-sim - balbuciou ele - nós somos da mesma cidade natal.
- É por isso que você toca tão bem! - concluiu a garota.
Mesmo depois do jantar, Marcelo permaneceu na casa de Mia até bem tarde. Depois de se despedir de seus novos amigos, isso é, a família de Mia, ele saiu caminhando e cantarolando sua alegria pela rua.
Mas os dois voltariam a se encontrar, muitas e muitas vezes. E a freqüência de seus encontros foi gradativamente crescendo, até se tornar diária. Cada um apreciava muito a companhia do outro. Eles gostavam muito de estar juntos, e gostavam muito também de tocar juntos. Suas conversas não tinham fim. Conversavam não apenas sobre música, mas também sobre sua vida pessoal. E foi numa dessas conversas casuais que Marcelo acabou abordando o assunto que afligia Mia em seu íntimo.
- Você me disse naquele dia que não podíamos ser amigos. Até hoje não entendi o porquê disso. - Sem olhá-lo, ela apenas respondeu:
- Você gosta da minha música?
- Eu amo a sua música! - exclamou ele. - mas do que eu gosto mesmo é da felicidade que a música causa em você.
Num sobressalto, ela o olhou, intrigada.
- Como assim?
- Desde a primeira vez que eu te vi, eu percebi que você tinha paz de espírito quando tocava música. E quando tocamos juntos, também quando você me ouviu tocar, eu percebi o mesmo efeito. Eu fico feliz de ver que a música te faz feliz.
- Com certeza, é com esse propósito que a música existe!
- E foi assim que nos tornamos amigos. Não entendo ainda o que nos impede.
- Mas você logo entenderá. - falou ela, um tanto entristecida.
Naquele mesmo dia, quando chegou em casa, não pôde nem mesmo fechar a porta da sala quando ouviu seu pai chamá-la com um incomum vozeirão:
- Mia!
- Sim? - fez a moça, virando-se para o pai.
- Você se esqueceu da aula de hoje? Seu professor está te esperando há duas horas!
- Oh! - exclamou, surpresa. - eu esqueci completamente
- Posso saber onde você estava?
- Passeando no parque. - disse ela, cabisbaixa. Evidentemente, estava omitindo os detalhes mais importantes.
- Muito bom, mas não deve deixar que nada te atrapalhe, ouviu? Nada! Agora, já para a sua aula.
Mia tocava, como sempre, muito bem, mas algo chamou a atenção do professor naquele dia em especial.
- Está indo muito bem. - falou ele, ao vê-la tocar. - Mas não está espetacular como sempre.
- Como? - estranhou ela.
- Só estou dizendo que falta concentração. Você tem muita habilidade, não há dúvida disso, mas parece que está distraída, olhando distante para o horizonte enquanto toca. - dizia ele, com um sorriso malicioso. - É um garoto, Mia?
- Roger! - ela já tinha suficiente intimidade com seu professor para chamá-lo pelo nome, afinal, ela tinha aula com ele desde que era criança.
Mas a reação inusitada de Mia despertou no professor certa alegria, fazendo-o soltar uma gostosa risada.
- Estou certo, não estou? - concluiu ele.
- Está. - falou ela, um tanto desanimada.
- Isso é importante, Mia. Afinal, você já é uma mulher. Mas lembre-se do que seu pai diz. Não deve deixar que nada atrapalhe o seu amadurecimento. - delicadamente, ele pegou o violino que ainda estava apoiado sobre o ombro de sua aluna. - Vamos encerrar por hoje.
Ela o cumprimentou e foi saindo, mas quando já estava sob o batente da porta, o homem lhe interpelou:
- Mia. - ela apenas o olhou, sem expressão - Seria uma pena se um talento como o seu fosse perdido por uma paixão de adolescente. - e saiu, sem dizer palavra.
Na manhã seguinte, bem cedo, ela estava no mirante, olhando a sua grande cidade que, àquela hora, parecia uma cidade fantasma. Embora olhasse profundamente, seu íntimo estava cheio de pensamentos inquietantes. Foi interrompida quando aquelas duas mãos delicadas de pianista lhe cobriram os olhos. Assustada, ela instintivamente tirou as mãos alheias de sobre seus olhos e se virou para ver quem era.
- Bom dia. - falou Marcelo.
- Bom dia - respondeu ela, com aquele sorriso encantador que floria em seu rosto toda vez que ela o via.
- Que bela vista da cidade, não? - disse ele, se apoiando.
Ignorando o comentário, ela lhe segurou pelo braço e perguntou aquilo que há muito queria perguntar.
- Você já namorou, Marcelo?
- Hã? Que pergunta mais estranha. - ele coçava a cabeça com o dedo, se lembrando das muitas garotas que havia namorado. - Primeiro teve aquela garota que queria ser atriz. Mas não foi nada sério. Depois que terminamos eu descobri que ela tinha passado a perna na irmã que realmente gostava de mim e. . . - antes que pudesse prosseguir, Mia pressionava os seus lábios contra os dele.
Embora surpreso no início, Marcelo correspondeu. O beijo foi longo. Deve ter durado um minuto, mas pareceu passar num piscar de olhos para os dois. Mas quando seus lábios se soltaram, ficaram apenas olhando um para o outro, sem pronunciar uma única palavra. Talvez aquele beijo tenha sido uma forma de declaração muito improvisada. Se foi, deu certo.
Marcelo e Mia eram grandes amigos já havia muito tempo e estavam sempre unidos pela música. Mas então, finalmente, eles eram namorados.
Como não poderia deixar de ser, o namoro de Mia e Marcelo começou a comprometer as habilidades musicais da jovem. Nunca faltava às aulas, no entanto o próprio professor começou a notar certa decadência em sua técnica. Isso se deve à redução de seus treinos, que até então haviam sido quase que em período integral, mas agora tinham que dividir o tempo com o namorado da garota. Para Marcelo, porém, a música de Mia parecia sempre mais e mais elevada.
Aconteceu que os dois estavam sentados na sala, vendo televisão. Ou melhor, conversavam com a televisão ligada. Enquanto assistiam, algo no programa tirou um comentário de um dos dois, que logo desencadeou uma espontânea e divertida conversa, que não tardou em se desviar completamente do tema do programa que estava sendo exibido. A animada conversa do casal foi interrompida quando o pai de Mia chegou à sala.
- Marcelo. - falou ele.
- Boa tarde, senhor. - disse ele, levantando-se.
- Você poderia ir embora, por favor? - disse ele.
Os dois jovens o olharam, assustados.
- Sim, mas. . . por quê?
- Preciso apenas conversar com a Mia, nada pessoal com você. - o rapaz relutou por um momento, mas percebendo que o assunto era sério, resolveu ir. Despediu-se da namorada com um beijo e saiu.
- O que foi, papai? - perguntou Mia, ainda pasma com a súbita expulsão do namorado.
- Estive conversando com seu professor. Nós dois concordamos que sua técnica tem decaído. - ela permaneceu calada. - Deve ser por causa do seu namoro. - Ela o olhou com certo ar de decepção.
- O que me uniu ao Marcelo é algo que eu, ele e você temos em comum: a música nos faz felizes. E foi a música que nos uniu. Quando estou junto dele, sinto o poder da música mais forte que quando toco numa apresentação!
- Eu entendo. - falou o homem, sério. - Música vem do coração, e com certeza você se sente muito bem estando junto dele e principalmente quando os dois tocam juntos. Mas Mia, minha filha, entenda que a música é uma arte. Artes exigem técnica. E técnica necessita treino árduo para se desenvolver. Você se encantou com a música desse rapaz, e isso é ótimo, mas se você deixar de treinar, sua música não será tão boa.
- Marcelo acha minha música excelente!
- É claro que ele vai dizer isso. E você também vai concordar, você está apaixonada! E é isso que te impede de ver que por causa do seu namoro o violi. . . - ela se levantou abruptamente, interrompendo-o.
- O sentimento que nós temos é verdadeiro!
- Mia, você tem que escutar a voz da experiência. Muitos rapazes ainda surgirão na sua vida, mas a música é algo único. Você não deve deixar que seus feromônios prejudiquem o seu gênio musical!
- Isso não vai acontecer! - ele deu de ombros e respondeu:
- Já está acontecendo. - Mia deu um breve riso de satisfação.
- Se meu namoro está atrapalhando o meu amadurecimento, então acho que a música atingiu sua finalidade.
- Como?
- Eu tinha apenas três anos quando você me deu meu primeiro violino. Fiquei fascinada. Tocava várias horas por dia, com a sua orientação e do professor. Não tinha como objetivo alcançar a supremacia da técnica; eu só queria me divertir. A música me encantava! E o Marcelo me fez ver o quanto isso é importante. É tocando com ele que eu sou feliz. A música existe para nos dar prazer, e é isso que ela faz comigo. Eu não preciso ser a melhor. Eu não quero. Só quero poder tocar com ele!
O homem sorriu ao ouvir o breve discurso da filha.
- Estamos no século XXI e você é uma mulher crescida para tomar suas próprias decisões. Não vou te proibir de nada. Só quero que você saiba que se continuar deixando seu nível baixar por causa da alegria que você tem com esse homem, vai me deixar muito decepcionado! - dizendo isso, levantou-se e foi saindo.
- Papai! - gritou a garota. - minha felicidade não é mais importante pra você que meu amadurecimento musical? - Ele parou de caminhar por um momento e disse:
- Estou certo de que você sabe o que é melhor pra você. - A resposta foi mais ou menos o que ela esperava, mas deixou¬ a garota perturbada no seu íntimo. No dia seguinte, ela contou o ocorrido ao seu melhor amigo e confidente.
- Eu acho que ele está certo. - falou Marcelo.
- Como? - a menina se mostrava inconformada. - Como pode concordar com uma coisa dessas?
- Edison dizia que o gênio é feito de um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração. Por mais que você se sinta bem estando comigo, se você não treinar bastante, minha cara, você não vai progredir.
- Você acha que eu deveria passar menos tempo com você para poder praticar? - ele não a olhava nos olhos, mas se mostrava atento à beleza das árvores do parque.
- Acho apenas que você tem que fazer o que sentir que deve.
- Isso parece meio irracional. - ele a fitou por um momento e disse:
- E você acha seu amor pela música racional? - Não houve mais discussão depois disso.
De um jeito ou de outro, parecia que Mia estava num dilema. Ela queria muito agradar ao pai. Isso era importante para ela. Mas também queria estar junto de Marcelo. Isso, sim, parecia ser a melhor coisa que ela poderia fazer.
Durante algumas semanas, ela ficou sem ver Marcelo. Na verdade, se afastou dele intencionalmente. Não que tivesse optado por terminar o namoro e se dedicar ao aperfeiçoamento da técnica. Mas queria apenas meditar nas questões do coração que lhe incomodavam. Havia uma bifurcação. Mais de um caminho a ser seguido. E apenas um levaria à sua felicidade, e esse era o caminho da música. A música sempre estivera ali, como que parte integrante do seu ser, mais do que essencial para sua vida. E por mais agradável que a música fosse para ela, toda felicidade é maior se compartilhada por alguém. E como Marcelo a cativava! Ele era o único com quem ela podia realmente dividir o seu amor, por assim dizer. Mas também devia muito ao seu pai. Foi ele quem lhe introduziu no mundo da música. Ela não queria decepcioná-lo. Ela queria que ele fosse feliz com suas decisões. E Mia certamente faria ele se orgulhar.
Já passava da meia noite, e ela estava deitada em sua cama ouvindo uma sonata de Elgar no MP3 Player, mas de repente se viu tão convicta de sua decisão que resolveu sair, áquela hora da noite, e fazer o que seu coração lhe mandava. Que belo era o céu noturno. O parque estava fechado, mas ela andou até uma praça que ficava próxima do parque e, se refugiando sob a maior árvore que pôde achar, começou a tocar com alegria o seu violino.
Tocava com muito afinco e fluência, até ser interrompida por uma voz próxima.
- É disso que eu gosto em você. Todos percebem que sua música vem do coração. - ela ficou assustada com a abordagem repentina no meio da madrugada. Mas logo viu que era Marcelo.
- Como sabia que eu estaria aqui?
- Eu não sabia. Apenas ouvi sua música e soube na mesma hora que era você.
- Por quê?
- Sendo realista, é porque ninguém mais estaria tocando violino por aqui. Mas a verdade é que sua música me cativa porque vem do coração. O que está dentro de você instiga o que está dentro de mim. - ela desviava o olhar.
- Eu sinto o mesmo que você. Senti quando te vi tocar piano pela primeira vez.
- Ah, aquela música? Foi você que me inspirou a tocá-la.
- E isso até hoje eu ainda não entendi. Por que, Marcelo? Por que você escolheu aquela música? - o homem andou até o centro da praça, focando a lua com seus olhos azuis, que refletiam sua luz.
- A luz da lua - disse ele - é a única perspectiva que temos nas escuras noites. Mesmo que a escuridão seja predominante, o único ponto luminoso é que chama a nossa atenção. E foi essa luz da lua que eu achei em você, Mia, desde a primeira vez que eu te vi.
- Sou iluminada? - perguntou, em tom de ironia.
- É. Pelo menos, a sua amável e espontânea música te faz como a luz do luar. - pegou o case que havia deixado no chão e tirou o violino de lá.
- Oh! Você trouxe seu violino.
- É claro que eu trouxe - falou ele, confiante. - Eu já estava sentindo muita falta disso.
Tocaram exatamente a mesma peça da primeira vez que tocaram juntos. Concerto para dois violinos de Bach. Ali, no meio daquela desolada praça no meio da noite, a música emanada de dois jovens corações era inexplicável e bela. Era exatamente essa a emoção que Mia queria. Mas mais do que isso, ela queria ser merecedora.
Logo que a música terminou, ela afrouxou seu arco e guardou o violino no case. Depois tirou do case uma panfleto e entregou ao rapaz. Taciturno, ele o olhou atentamente por um longo momento.
- Um concurso?
- Já participei de vários, e ganhei todos os que participei, mas esse é diferente.
- Estou vendo. - disse o rapaz. - Esse é o concurso musical mais avançado do país. Só entram alunos da Academia Nacional de Música, e os jurados são das maiores orquestras do mundo.
- Meu pai nunca conseguiu ganhar esse concurso. E eu quero muito participar. Se eu conseguir, terei me superado! - com um riso irônico, ele lhe devolveu a folha de papel.
- Eu entendi - disse ele - esse é o caminho que você escolheu. - se esperar resposta, começou a caminhar.
- Marcelo! - exclamou ela - o concurso é daqui um mês! Não se esqueça de ir me ver!
“Se o teu olho for singelo, todo o teu corpo será luminoso.”
- Mateus 6:22
E naquela manhã foi com um grande satisfação que ela declarou ao pai:
- Você está certo, papai, eu posso ter os dois. - ele a olhava atentamente. Ela lhe entregou o panfleto.
- Não acredito! - exclamou ele. - Esse concurso! O objetivo que eu não consegui alcançar! Você não vai conseguir, Mia.
- E se eu conseguir?
- Quase todos os candidatos são da Academia Nacional de Música.
- Meu professor também foi aluno de lá, você sabe. E o bom aluno supera o mestre.
- Mas Mia. . .
- O que foi? Não quer que eu participe? - ela se mostrava determinada e um tanto agressiva.
- Não é isso. É só que eu acho que é demais pra você.
- Papai - disse, sorrindo - meu objetivo não é ser a melhor. É apenas ser feliz com a música. - isso findou a conversa dos dois.
Ao longo daquele mês, Mia treinou com mais afinco que nunca antes em sua vida. Fosse com se professor, em casa ou no parque, o violino não saía mais das mãos dela. Até parecia que fazia parte de seu corpo. Mesmo no banho ela continuava treinando as posições e na cama ficava com os compassos e notas na cabeça até cair no sono. Evidentemente, nesse período seus sonhos com a música foram frequentes. Mas ela estava longe de ser desesperada ou ter um vício desmedido. Ela apenas queria ser feliz com a música. E mesmo treinando muito, sua felicidade era visível. Tão visível que seu professor notou isso certa vez quando ela estava tocando para ele a peça que pretendia apresentar no concurso, para a qual já havia quase atingido a maestria.
- Já chega. - falou o professor, interrompendo a música abruptamente. - Vamos encerrar por hoje. - Ela o olhou profundamente intrigada.
- Estamos treinando há apenas cinquenta minutos!
- Eu sei, mas não quero ver mais que isso.
- Por quê? Não está bom? - ele deu uma breve risada.
- Está fabuloso, Mia. Sua música é um milagre. Não quero mais ouvir essa música maravilhosa que você faz agora. Quero ouvir o resto no concurso.
- Mas nós temos que treinar!
- Então treine sozinha. Não tenho mais nada para te ensinar.
- Como pode dizer isso, Roger? - ele pôs as mãos dela entre as suas.
- Você atingiu a maturidade musical. Parabéns.
- Mas. . .
- Mia, a sua música é tão alegre e tão cativante que podemos sentir o seu espírito nela. Você tem treinado com muito afinco, e seu porque você está tão inspirada. Você está tocando para ele, não está? - ela ficou ruborizada. Mas não conteve seu sorriso e falou:
- Eu quero estar junto dele!
- E essa determinação fez a sua música melhorar sobremaneira. - disse o professor. - Tenho certeza que isso te faz feliz. Mia, o que eu mais quero é te ver feliz. Oro para que você tenha um futuro feliz ao lado dele.
- Obrigada! - exclamou, abraçando-o.
- Meus quinze anos de trabalho nessa casa enfim se encerraram. Você é uma violinista tão boa quanto eu. Só quero ver agora o que você é capaz de fazer no concurso. Boa sorte, Mia.
Também o pai de Mia ficou assombrado quando o professor lhe disse que encerrara as aulas de Mia, como se ela tivesse se formado em seu curso particular. A conversa dos dois foi longa até que ele se convencesse que realmente ela não precisava mais das aulas. O professor saiu da casa recebendo seu salário do mês mais uma pomposa gratificação, mas deixou um alerta ao violoncelista:
- Sua filha é um tesouro. Cuide muito bem dela.
Enfim, chegou o dia do concurso. O teatro estava cheio. Todos da plateia estavam muito empolgados para o início das apresentações. Os jurados eram das maiores orquestras do mundo, mas eles não eram os únicos gigantes do cenário musicais ali presentes. Todo ano, grandes músicos assistem àquele concurso para descobrir jovens talentos. Quando um em especial lhes chama a atenção, eles até mesmo os convidam para serem seus pupilos. E um desses grandes músicos estava ali, discretamente caminhando pelas colunas, quando alguém lhe chamou a atenção:
- Professor! - ele se virou e olhou o rapaz atrás de si.
- Oh, Marcelo! Como anda meu aluno favorito? - eles apertaram as mãos cordialmente.
- O que te traz aqui, meu jovem?
- Vim ver minha namorada.
- Oh! Você está namorando!
- Mais ou menos. - disse ele, encabulado - acho que ela desistiu de mim pra buscar o aperfeiçoamento na arte da música.
- Sei - disse o outro, mostrando-se indiferente a esse fato. - E ela é boa?
- Isso eu não sei. - disse ele. - Mas uma coisa eu te garanto: ela toca com o coração.
Antes que ele pudesse responder algo, outra pessoa lhe chamou.
- Maestro! - virando-se para o outro lado, viu o violoncelista de sua orquestra, muito bem vestido para assistir ao concurso.
- Ah, olá! Já perdi a conta de quantos da orquestra já achei nesse teatro. - os dois riram.
Quando o pai de Mia se aproximou, Marcelo encarou-o com um semblante de desaprovação e saiu, dizendo apenas:
- Com licença.
Ao que parecia, ele não gostava do pai de Mia, que a incentivava a nada mais que apenas melhorar, melhorar e melhorar. Marcelo não achava isso necessário. A música de Mia era incrível, independentemente de seu talento. E isso era algo que o pai não enxergava. Mas indiferentes à dramática saída do rapaz, os homens começaram a conversar.
- Como você sabe, maestro, o que eu mais quis e nunca consegui foi ganhar esse concurso, mas eu nunca consegui. Hoje vim ver a minha filha.
- Sua filha vai participar?
- Ah, vai. E você vai ver como ela é habilidosa. - O maestro olhou para o horizonte, pensativo.
- Ela é habilidosa e toca com o coração - disse - eu estou curioso.
As apresentações foram extensas. Vários jovens pareciam se gabar de executar peças complexas de Liszt, Paganini, Mozart, entre outros. A maioria deles ficava decepcionada ao ver a nota recebida pelos jurados, que pareciam esperar um nível de execução profissional, digna deles mesmos. E não era para menos. Aquele concurso era considerado o de nível mais avançado do país. Se alguém quisesse se sair bem, tinha que tocar como um violinista de orquestra.
Enfim chegou a vez de Mia. Ela usava um belo vestido cor de areia. Quando subiu no palco, pareceu que a respiração de todo o público cessou, especialmente a de Marcelo e do pai. Com um ar de seriedade, ela se dirigiu vagarosamente ao centro do palco e vagarosamente apoiou o violino no queixo. Pareceu fazer certo suspense ao apoiar o arco nas cordas. Enfim, o som saiu. O segundo movimento de Eine Kleine Nachtmusik não era de impressionar.
- Que Mozart mais tedioso. - comentou um dos jurados.
- O que você está fazendo, Mia? - falava o professor. - Não foi isso que nós treinamos!
Tocava sem paixão, mas prosseguiu com a serenata sem cometer nenhum erro até o da capo. Mas então, repentinamente, parou. Ficou alguns segundos com o arco apoiado no violino, mas sem tocar, enquanto o burburinho da platéia crescia. Ela parecia estar perdendo forças, até que abaixar o arco.
- Será que ela desistiu?
Sua resposta veio de forma retumbante em seguida: levantou a sua cabeça, revelando um sorriso alegre e brilhante. Tão brilhante quanto a música que veio em seguida. Voltando a apoiar o arco sobre o violino, iniciou tão esplêndida interpretação da Fantasia de Carmen.
Sua técnica, habilidade e precisão eram impressionantes, mas realçavam o sentimento expresso pela música. Seu vibrato era gracioso, mas longe de ser esnobe. Não errava nos staccatos e nem perdia o ritmo no pizzicato. Tampouco sua elegância diminuía no glissando Tocava com os olhos cerrados, tentando pôr uma fração de seu coração em cada nota. Apenas abria os olhos quando tinha que prestar atenção ao dedilhado. Não poderia ser diferente: sua apresentação ganhou o público. O silêncio da platéia foi absoluto durante toda a longa apresentação da fantasia de Sarasate.
Mas dos muitos que assistiam impressionados á performance da garota, um deles, em especial, assistia com lágrimas nos olhos e profundas meditações no coração.
“Uma técnica tão incrível, tão sublime” pensava Marcelo “mas ainda assim, ela expõe seus verdadeiros sentimentos com a música. Mia, é por esse motivo que você é a pessoa mais especial que já conheci na vida. Mas eu entendi a sua mensagem. Você será uma grande violinista. O sucesso profissional na música te espera. Mas acho que não tem espaço pra mim nessa vida.”
Os aplausos não poderiam ter sido mais vívidos. Talvez não tivesse sido a melhor apresentação da noite, mas o impacto foi bem mais profundo que o causado por qualquer outro candidato. As notas de todos os jurados foram excepcionalmente altas. Ficaram tão empolgados com a música que é como se tivessem esquecido que ela trocou a peça. Mas era como se tivesse usado o Mozart como um aperitivo para o Sarasate, e isso deixou sua apresentação ainda mais interessante.
Como Marcelo esperava, Mia foi declarada a vencedora do concurso, realizando assim o sonho não alcançado por seu pai. Ele assistiu à entrega do troféu com um sorriso amistoso, e depois saiu, andando vagarosamente. Mas Mia o viu, lá do alto do palco. Ficou empolgadíssima para falar com ele, e estava prestes a descer esbaforida atrás do rapaz, mas seu pai chamou-lhe a atenção.
- Mia!
- Oh, papai! - ela correu com ânimo em sua direção. Apenas o troféu lhe impediu de abraçá-lo, pois já ocupava os seus braços.
- Você não poderia ter me deixado mais orgulhoso hoje, filha. - disse ele.
- Eu realizei o seu sonho? - um tanto constrangido pela pergunta, ele desviou o olhar.
- Realizou sim, mas isso não é importante. O importante é que você esteja feliz.
- Eu estou feliz! - ela exclamava, com convicção.
- É mesmo? E onde está ele?
- Como?
- Você fica feliz quando está ao lado dele, não é? Agora eu percebi. Eu me esqueci duma coisa. Quando eu era criança, eu me encantava com a música do mesmo jeito que você e ele, Mia. Infelizmente não tive tantas oportunidades como você. Me esforcei para te dar o que não tive, mas acho que você também não percebi que estava te privando do que tive. Percebi isso vendo a sua alegria de tocar aqui em cima. E eu tenho certeza de que ele é a sua inspiração para produzir tão maravilhosa música.
- Papai. . . - Mia estava profundamente satisfeita. Tinha provado a si mesma sua capacidade, mas paradoxalmente, fez o pai entender o seu amor.
- Você provou que pode ser a melhor violinista, Mia, mas isso não é o mais importante. O mais importante é a sua felicidade, e esse seu fascínio pela música eu devo respeitar. - E prosseguiu, gritando enfaticamente: - Vá! Você tem que estar com ele! Vá atrás da sua felicidade, Mia!
- Muito obrigada, papai! - ela lhe entregou o troféu quase chorando de emoção e desceu do palco, correndo animadamente pelo teatro.
Não parou para responder nenhum repórter e nem para falar com nenhum músico. Apenas seguia atrás de Marcelo, pois não tinha ainda perdido-o de vista. Aquela vitória daquele dia era para ele. Mia nunca tinha se sentido tão feliz assim em toda a sua vida. E, certamente, não haveria melhor ocasião para sentir tamanha felicidade.
Ela o seguiu até fora do teatro. Coincidentemente, quando Marcelo saiu, o semáforo estava vermelho, o que lhe permitiu atravessar a rua sem ter que diminuir o ritmo. Mas Mia, em sua empolgação, não percebeu que o semáforo abriu logo em seguida. Saindo do teatro, ela gritou com todas as forças o seu nome:
- Marcelo!
A tão doce voz que ele conhecia tão bem lhe induziu fortemente a mover o pescoço e olhá-la. Um grande e alegre sorriso se abriu, mas logo em seguida foi substituído por um semblante de medo e desespero. Infelizmente não pôde nem pensar em avisá-la. Aquele foi o último ônibus que Mia viu em sua vida. Marcelo correu desesperadamente em sua direção, sem se importar de ser atropelado também. Ajoelhou-se no meio da rua e pegou-a nos braços.
Mesmo com a face ensanguentada, ela continuava bonita em virtude de seu sorriso tão sereno.
- Você viu, não viu? Aquela música foi pra você.
- Mia. . .
- Foi você quem me ensinou a tocar com o coração. Você disse que eu tenho que fazer sempre o que me trouxesse felicidade. E é por isso que eu amo você, Marcelo.
- Mia, eu não. . . - os soluços não lhe deixaram terminar a frase.
- Agora sim, nós podemos ficar juntos para sempre. Obrigada. - ele segurou a mão ensanguentada dela entre as próprias. Esforçou-se para proferir uma frase entre o choro:
- Por favor, não fale.
- Marcelo - ela já não lhe focava mais, mas tinha um olhar distante. - Te amo.
Sua bela e sorridente face se congelou para sempre. Seu corpo perdeu as últimas forças e a mão escorregou dentre as mãos do rapaz. O pai chegou logo em seguida, para ver a tragédia que se sucedeu, e o desespero logo o fez desmaiar.
Ainda com a garota nos braços, Marcelo deixou sair um grito horrendo e desesperado. Repetiu o mesmo grito várias vezes, até perder as forças, com as lágrimas rolando incessantemente. O paramédico teve que tirar forçosamente a moça dentre seus braços, pois o rapaz estava fora de si, e não parava de chorar.
E, de fato, não parou durante quatro dias. Quatro dias em que não fez nada mais além de ficar chorando em seu quarto. Não assistiu ao funeral da amiga, pois não tinha forças para sair do quarto. Seus pais ficavam profundamente preocupados com sua emocional e até mesmo física, posto que o garoto não comia nada, por mais que eles levassem a comida ao seu quarto. Mas não lhe forçaram a nada, pois sabia que aquela dor só poderia ser curada com o tempo, então deixaram o rapaz em paz. Por tempo suficiente para que recuperasse. Só que esse tempo parecia se prolongar demais.
Todos pensaram que nunca mais veriam o mesmo Marcelo. Todos pensaram que uma parte de Marcelo tinha morrido junto com Mia. E essa ideia permaneceu até que se pôde ouvir, daquele quarto, solitária, a segunda sinfonia de Brahms.