As Mil e Uma Noites
Hassan e a Escrava de Karim Saleh
Hassan, sendo um mercador muito pobre e já cansado de tanto trabalhar sem subir na vida decidiu vender a própria mulher como escrava. Levou-a para a praça principal de sua pequena cidade e ali, discretamente, oferecia-a aos abastados comerciantes que costumavam frequentar o local para momentos de lazer e descontração. Um deles, rico negociador de óleo comestível à base de sésamo, comprou de Hassan sua esposa, oferecendo-lhe uma quantia bem acima do esperado. Parece que nem mesmo ele se dava conta do quanto bonita era a mulher que por anos servia-lhe de companheira.
Narmine, a mulher de Hassan, submissa como sempre fora, aceitou sem queixas essa mudança em seu destino, pois para ela o que mais lhe importava era a felicidade do seu esposo nem que para isto tivesse que se submeter a sacrifícios. Karim Saleh, agora amo e senhor de Narmine vivia em luxuosa propriedade em um bairro distante e privilegiado; só havia ali casas suntuosas, grandes mansões e palacetes. Todos que desfilavam por suas ruas expunham o glamour em forma de joias caríssimas e vestimentas luxuosas; tudo era pompa e abundância. Este era o mundo no qual Narmine passaria a viver dali em diante.
Acontece que Karim Saleh era um homem extremamente solitário e triste a despeito de toda sua riqueza. Narmine cuidava dia e noite de seu bem estar. O interior da magnifica morada, que parecia um tanto esquecida e faltosa de um toque feminino na sua conservação, adquiriu, pelas mãos de Narmine, ar de vida nova e renovada. Ela enfeitava com flores, que retirava de um dos jardins da casa, todos os cômodos; o quarto de Karim Saleh, a grande sala de estar, os banheiros, todos recebiam arranjos magnificamente compostos, que dava gosto apreciar.
Com o tempo passou a feitorar a propriedade rural atrás da casa, uma grande área para o cultivo de sésamo, cujos grãos forneciam o óleo comestível que Karim Saleh exportava para o mundo ocidental, origem de sua prosperidade. Narmine vistoriava o serviço na parte da tarde, visto que as manhãs dedicava ao seu respeitado senhor. Ele, vendo todo esse empenho de Narmine, quis recompensá-la de alguma forma.
- Em pouco tempo que a tenho comigo adquiri confiança e respeito pelo seu trabalho. Vejo que tem se esforçado além da conta e a partir de hoje não mais pretendo considerá-la como minha escrava.
- O senhor então vai dispensar os meus serviços; vai me mandar para outro amo? Eu não gostaria de deixar o senhor; não faça isso comigo!
Karim Saleh deixou, a essas palavras de Narmine, escapar uma sonora e retumbante gargalhada, o que não era muito do seu feitio. Mas não conseguiu evitá-la dada a inocência da outra.
- Não, não é isto. Muito pelo contrario. Quero pagar, e pagar muito bem a você pelos serviços que me tem prestado. Diga; quanto quer receber daqui por diante?
Acontece que Narmine pouco se interessava por dinheiro. Sua vida era doméstica, quase não saía de casa. Tendo um homem a quem pudesse confiar para sustentação e um trabalho digno a preencher suas horas nada mais lhe importava. E o mais interessante nessa história: sentia-se apaixonada por Karim Saleh. Queria compartilhar sua solidão e descobrir a razão de sua tristeza; amando-o e apoiando-o em tudo de que precisasse; e tratou de aproveitar a oportunidade para dizer isto a ele.
- Sou uma mulher agora só e vejo que também o senhor o é. Porque não nos tornamos marido e mulher já que vivemos sob o mesmo teto? Prometo respeitá-lo e amá-lo como esposa; ser submissa e fiel eternamente.
Karim Saleh tinha consciência de que, mais cedo ou mais tarde, teria que enfrentar este tipo de situação. Sendo assim, tomou coragem e contou a sua história.
- Não posso ter uma mulher. Sofro de uma doença rara que não me permite manter relações sexuais; é por isso que me vê triste e deprimido, embora eu consiga disfarçar e levar uma vida normal; mas sofro muito com isto.
Depois de muito conversarem, naquele e nos outros dias que se seguiram, conseguiu Narmine convencer Karim Saleh a aceitá-la como sua esposa e companheira mesmo assim; bastava-lhe sua presença masculina e seu carinho para com ela. Dar-se-ia por satisfeita e muito feliz. Ele aceitou e assim iniciaram uma nova rotina de vida. Notava-se em Karim Saleh ares novos resultantes do gáudio e da satisfação que agora sentia, em poder novamente dormir ao lado de uma mulher, coisa que não mais esperava realizar desde que fora acometido do seu mal, tido como incurável.
Passaram-se alguns anos e o que geralmente se dá em todo e qualquer casamento não foi diferente com este; sobreveio a rotina, agravada pelos motivos descritos. Em suas horas de reflexão sobre a vida, Narmine dirigia para o passado o foco do seu pensamento e de suas lembranças. Pensava em Hassan, seu antigo e primeiro marido; na vida de sacrifício que sempre levaram ao ponto de fazê-lo tomar aquela atitude de vendê-la como escrava. Como estaria a vida dele agora? O que fizera com todo aquele dinheiro que recebera na transação inusitada? A curiosidade corroía-a dia após dia e ela resolveu procurá-lo.
A decisão de Hassan no sentido de mudar de vida para que, de alguma forma pudesse compensar a perda de sua esposa para outro homem, mesmo que tenha sido voluntária essa atitude, não fora em vão e resultara em grande transformação em sua vida. Empregara muito bem a grande soma que recebera e era agora um próspero comerciante no ramo da tapeçaria. Abrira uma bela loja e vinha de prosperar. Prometera a si mesmo não arranjar outra esposa; viveria assim para o trabalho, exclusivamente. Narmine, alegando precisar de novos equipamentos para a casa, obteve o consentimento de Karim Saleh para se ausentar e passar fora um dia inteiro para as compras de que necessitavam. Destarte, chegou até seu antigo companheiro; e qual não foi dele a surpresa ao topá-la em sua loja, ainda bonita e atraente!
- O que faz aqui? – foi a interrogação de Hassan logo que a viu
loja adentro; mas logo após essa frase ficou mudo, encarando-a e como se tivesse perdido a voz de tão apatetado que estava.
- Acaso não gostou de me ver? – ela perguntou.
Recuperado de sua parvoíce Hassan sorriu e se acalmou. E puderam então conversar. E o fizeram por horas a fio. Até que, depois de determinado horário, o movimento da loja não mais permitiu que conversassem e ela precisou despedir-se. Mas voltaria inúmeras vezes; até que viraram rotina essas visitas de Narmine à casa de seu antigo marido. A cada visita mais se estreitavam os laços que no passado existiram entre os dois.
Tomado de desejo por sua ex-companheira, mesmo sabendo do perigo que isto podia representar, Hassan solicitou a Narmine que não mais o procurasse na loja, mas na casa onde ele agora residia, muito mais bonita e aconchegante do que aquela que tiveram no passado. Ali se amavam e reviviam, em palavras e atos, o que haviam abdicado. Diante do ciúme de Hassan, em saber que, saindo de sua presença ela voltaria para os braços de outro homem, Narmine, usando de tato e muito carinho, infundia-lhe confiança e tranquilidade.
- Não precisa se preocupar. Tomei a decisão de voltar a ser sua e feliz como sempre o fomos. Nossa vida não é mais a mesma por lá. Ele virou um companheiro ranzinza e não me tem mais o carinho que antes me dedicava. Mesmo sem nos relacionarmos sexualmente como um casal normal, dados os motivos de que você agora é ciente, amávamo-nos com paixão sempre renovada; isto acabou, infelizmente. Por você, de modo contrário, meu amor não se modificou, mas sinto que se intensifica ainda mais.
Hassan correspondeu essas palavras de carinho e fidelidade amorosa de Narmine e prometeu amá-la muito mais intensamente dali em diante, não importando o que o futuro pudesse-lhes reservar. Contudo, a desconfiança de Karim Saleh chegou aos limites da tolerância e ele resolveu investigar e acompanhar os passos de sua mulher e, logicamente, sua primeira investida foi nos arredores onde negociara a compra de Narmine como escrava. Como não sabia ao certo o endereço de Hassan, dirigiu-se à praça onde fizera a negociação e ali plantou-se durante horas em todos os dias em que a mulher se ausentava de sua propriedade.
Com efeito, viu o casal e não se deixando avistar, esperou que eles se separassem. Pelo beijo ardente e afetuoso trocado entre os dois Karim Saleh não teve dúvidas de que estava sendo duplamente traído. Sendo assim planejou assassinar Narmine e se reaver com o salafrário.
Sondando na vizinhança descobriu o endereço e prostrou-se nas cercanias da residência, pois queria, por intermédio de um flagrante, levar a cabo sua intenção. Mostrou-se ao casal quando este entrava em casa e, sem perda de tempo, exibiu a lâmina do seu punhal.
- Vocês traíram minha confiança, portanto não merecem continuar vivendo. Ou melhor; quanto a esta vadia pode ficar com ela, pois não mais a quero, nem mesmo para lavar os meus pés. Horas atrás tramei acabar com sua vida, mas não vale sequer meu gesto de apunhalá-la.
A estas palavras, ditas com tamanho ódio e ferocidade, Narmine desatou em choro, tamanha a sua humilhação. Hassan, louco de ira partiu para cima do outro e os dois se atracaram na varanda da residência. Por fim, Hassan, por ser mais jovem e forte, desarmou-o com certa facilidade e, fazendo o gesto de que enterraria em sua garganta o punhal, disse essas palavras:
- Poderia mandá-lo para junto de Allah, O Misericordioso, mas não o farei. Embora tenha ofendido e humilhado a mulher da minha vida. Todavia reconheço que erramos, porém por amor, amor que o senhor nunca soube demonstrar verdadeiramente. – Karim Saleh, pálido e imobilizado por baixo do corpo de Hassan, era espanto e desolação.
- Para mostrar meu reconhecimento e minha dignidade não vou deixá-lo em prejuízo. Sou um homem hoje rico graças à chance que o senhor me proporcionou. Pelo contrário, vou ressarci-lo em dobro naquilo que investiu em nossa transação, com juros e correções até os dias de hoje.
E assim Karim Saleh voltou para sua cidade. Embora frustrado por um lado; por outro, satisfeito com o muito ouro que levava, pois valera a pena toda aquela atrapalhação. Hassan e Narmine, por sua vez reencontraram sua perdida felicidade, vivendo, dali para frente, dias de paz e de harmonia.