Entre Neblina e Memórias
"O suplício acabou não com um grito de redenção, mas com o silêncio da morte que chega sem aviso." Essas foram as últimas palavras que escutei naquela noite fria, em que o inverno parecia se arrastar além do esperado. Minha avó, percebendo que meus olhos começavam a se fechar, inclinou-se sobre mim e me deu um beijo na testa... o tipo de beijo que abre portas para sonhos profundos. E foi assim que tudo começou.
Ao mergulhar no sono, fui transportado para outro lugar. Não era minha cidade, mas eu sabia exatamente onde estava: era 7 de setembro de 1997. Não pergunte como eu soube; eu simplesmente sabia. Os fogos de artifício explodiam no céu, iluminando a noite escura e solitária de uma cidade interiorana. Ali, o tempo não se movia como deveria... era lento, quase suspenso, como uma lembrança que você tenta segurar, mas escapa entre os dedos. Eu não conhecia ninguém, mas sentia que já estivera ali. Como se o destino tivesse me colocado naquela noite para cumprir algo, e então, eu fui.
Entre pessoas sorridentes e crianças correndo, avistei uma mulher de cabelos vermelhos, sardas espalhadas pelo rosto e óculos grandes que lhe davam uma aparência peculiar, mas curiosamente atraente. Ela não era a mulher mais linda do mundo, mas mexia comigo de um jeito profundo. Era uma atração inexplicável, como se eu já a conhecesse. Déjà vu? Um sentimento antigo? Como se ela tivesse aparecido em algum sonho esquecido que eu tentava, desesperadamente, lembrar.
Antes que eu pudesse pensar mais, ela me notou. Seus olhos brilharam ao encontrar os meus, e antes que eu pudesse reagir, ela correu até mim e se jogou nos meus braços. O choque foi elétrico, como se um circuito se fechasse no fundo da minha alma. O calor do corpo dela contra o meu era inegavelmente real. Ela me puxou para um canto reservado e sussurrou:
– Eu sabia que você viria. Hoje é um dia especial.
Eu não me lembrava o que havia de especial naquele dia, mas o cheiro dela – doce e familiar – me envolveu completamente. Seus cabelos vermelhos eram como labaredas dançando nos cantos mais escuros da minha mente. Ela apoiou a cabeça no meu ombro, e juntos olhamos para o céu iluminado pelos fogos.
– Eu te amo – disse ela, com um suspiro leve, como uma brisa quente no meio do inverno.
Aquelas palavras me deixaram tonto. Tudo parecia tão real. Tentei me agarrar à racionalidade, mas era impossível. Seu corpo estava ali, o cheiro, o toque – tudo tão palpável. Se fosse um sonho, eu não queria mais acordar. Eu a puxei para mais perto, com força. Talvez com força demais. Ela riu, afastando minhas mãos suavemente, como quem brinca, e então, de repente, algo mudou. Uma confusão densa e opressora começou a me envolver.
Instintivamente, toquei meu rosto e senti a aspereza de uma barba por fazer. Era minha. Era real. Ou talvez não?
– Você está sempre tão pensativo... – disse ela, sorrindo enquanto acariciava meu rosto, com a suavidade de quem sabe que nem todas as perguntas precisam de resposta.
Fechei os olhos, tentando encontrar consolo nas lembranças da minha avó. Mas, quando os abri, a mulher ruiva havia desaparecido. Não havia fogos de artifício, nem luzes. Apenas um vazio imenso que se estendia por todos os lados, como se o mundo tivesse desmoronado ao meu redor. O silêncio pesava sobre mim como uma pedra no peito.
Antes que eu pudesse reagir, o cenário mudou novamente. Agora, eu estava em um quiosque à beira-mar, em Aracaju. Sabia disso com a mesma certeza com que sabia a data anterior. O cheiro de maresia misturava-se ao aroma da cerveja derramada nas colunas de madeira escura do quiosque. O som das ondas era um sussurro eterno, ecoando junto às risadas suaves que preenchiam o ar. Dois copos estavam sobre a mesa: um cheio e outro com apenas um resquício de espuma.
Levantei os olhos e vi a mulher ruiva entrando pela porta. Seu cabelo capturava a luz suave das lâmpadas de palha, e sua presença incendiou meu peito mais uma vez. Ao me ver, ela sorriu, como se soubesse que eu estaria ali, esperando por ela. Sentou-se ao meu lado e pegou minha mão, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
– Achei que você tinha me esquecido – disse ela, rindo de leve.
Meu coração batia tão forte que eu podia ouvi-lo nos meus ouvidos. Cada sarda em seu rosto era como um mapa de um lugar que eu sempre quis visitar. Segurei sua mão com cuidado, com medo de que ela desaparecesse mais uma vez. Eu precisava dizer algo, qualquer coisa, mas minha garganta estava seca. Eu queria gritar ao mundo que a amava, que a esperara por tanto tempo, mas as palavras se engasgavam na minha boca.
Então, no momento em que decidi falar, tudo começou a desmoronar. As colunas do quiosque derreteram como cera ao calor de uma vela. O rosto dela começou a se desfazer em pó, como uma estátua antiga que se dissolve ao vento.
– Não... não, por favor... – tentei agarrá-la, mas minhas mãos atravessaram o vazio. Tudo se desfez em silêncio e escuridão.
Acordei com um grito preso na garganta. Meu corpo tremia, o suor frio escorrendo pela testa. Estava no meu quarto, na casa da minha avó. A mesma noite fria e interminável. Ouvi passos rápidos no corredor. Minha avó entrou, preocupada, sentou-se na beira da cama e acariciou meu rosto.
– Foi só um sonho, querido – disse ela com aquela voz que sempre me acalmava.
– Mas parecia tão real... – murmurei, ainda confuso.
Contei a ela sobre a mulher ruiva, sobre o amor avassalador e sobre o vazio que tomava conta de tudo no final. Ela me ouviu em silêncio, com uma expressão suave e compreensiva, como se soubesse exatamente do que eu estava falando. Antes de se levantar, inclinou-se e me deu um beijo na testa – o mesmo beijo de antes, tão familiar que parecia vir de outro tempo.
– Sempre irei te amar, meu amor – sussurrou ela, com lágrimas nos olhos e a doçura de quem sabe que o amor verdadeiro é eterno, mesmo que a memória falhe.
Por um breve segundo, quando toquei meu rosto, entendi... um perfume sutil de cereja e lenha queimada ainda estava lá. Uma foto de um casal em um quiosque na praia, esquecida ali no canto... Senti que algo persistia, como uma memória fora do alcance completo da razão.
E então, pela primeira vez, aceitei que não precisava entender. Nunca foi apenas um sonho. O amor que eu buscava sempre esteve comigo, nos recantos mais escuros, onde nem o tempo, nem a memória, podem alcançar.
In memorian
para meu avô,
que viveu uma história de amor digna de cinema ao lado da mulher da sua vida. Mesmo quando as memórias se apagaram e as palavras se perderam no silêncio, minha avó permaneceu ao seu lado, de mãos dadas com o amor, cumprindo a promessa de estar lá,
na alegria, na tristeza e no esquecimento...