DESESPERO
Vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele.
[Victor Hugo]
Já passava da meia-noite e a chuva escorria suavemente pelas vidraças como o desespero que escorre lentamente pela alma obcecada. Ele não conseguira pregar os olhos um minuto sequer atormentado pela dor que dilacerava-lhe o peito. Era-lhe simplesmente impossível fechar os olhos. A presença dela estava em toda a parte. As lembranças misturavam-se desordenadamente em seus pensamentos. O rosto abatido e marcado pelas profundas olheiras denunciava esta e as três noites anteriores passadas em claro, esperando que ela chegasse. Mas, ela jamais chegaria.
Não entendia como se apaixonara por uma mulher como aquela. Era do tipo que jamais despertaria seu interesse, diferente de tudo que sonhara até ali. Em nada correspondia ao tipo de mulher que havia idealizado para si. E, no entanto, agora se encontrava irremediavelmente preso a ela e sabia que não conseguiria viver longe de seu alcance. Ela soubera quebrar cada barreira que erguera em torno de si. Ela o havia ensinado a amar e conhecer a vida de uma forma que jamais pensara que pudesse existir. Logo ele, que sempre fora um homem frio e calculista, egoísta por demais para pensar em alguém que não em si próprio. Ela tivera paciência para com ele. Soubera compreendê-lo de tal modo que nenhuma outra mulher conseguira antes. E, por isso, a amava mais do que a si mesmo. Era como se a estivesse esperado a vida inteira.
Entretanto se encontrava ali sozinho naquele quarto escuro remoendo a amargura de uma existência vazia e esdrúxula. Nada mais importava para ele. O sentido de sua vida partira junto com ela. Podia escutar claramente as batidas aceleradas do coração dela de encontro ao seu peito na última vez em que fizeram amor.
“Por que ela fora tão cruel? Por que não confiara nele? Não compreendia. E, por isso, não conseguia aceitar o fim. Não, esse ‘fim’.” Ele jamais aceitaria. Haviam estado tão pouco tempo juntos! Não podia terminar assim. Sabia que nunca mais seria o mesmo homem. A felicidade não existiria outra vez em sua vida.
Tudo o que ela dissera antes de partir a três dias atrás martelava em seu cérebro continuamente. Lembrava-se perfeitamente de cada palavra, de cada gesto que fizera, de cada expressão de seu rosto pálido. Podia visualizar cada detalhe daquela cena. Fora tudo tão de repente. E não pudera fazer nada. A viu morrer ali em seus braços como a areia fina que escapa por entre os dedos. Com a mais absoluta serenidade de alguém condenada à morte, lhe sussurrara baixinho enroscada em seu corpo quente naquele leito revolto ainda pelas volúpias do prazer: “Eu sinto muito, meu amor, não poder realizar os seus sonhos e passar mais tempo aqui com você. Eu te amo, mas eu preciso partir. Perdoe-me.” Foram suas últimas palavras. Palavras que a princípio não entendera, mas que depois tiveram o efeito de um raio sobre a sua cabeça. O que faria agora? Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais tornaria a vê-la, que sequer a teria nos braços novamente. Não sabia como conseguiria sobreviver sem uma parte de si. Como a vida podia fazer isso com ele? Arrancar um pedaço de seu corpo, de sua alma, mutilá-lo desse jeito?
A revolta crescia em seu íntimo e seu rosto adquiria uma expressão mortal cada vez que recordava os últimos momentos junto dela. Não era justo alguém tão jovem, a mulher que esperara a vida inteira morrer assim. Não era justo a sua mulher nascer já condenada à morte prematura. Ela sabia que tinha pouco tempo de vida e não lhe contara. Ela quis poupá-lo, agora pudera compreender. Mas de que adiantava? Ele ia sofrer do mesmo modo, tal qual estava sofrendo agora. A dor, o sofrimento seriam os mesmos. Tentaria salvá-la de todas as formas. Faria o que estivesse ao seu alcance e o que não estivesse para tê-la sempre consigo. Mas era tarde demais. Ela se fora. Que Deus é esse que lhe enviava a felicidade e depois a tirava de uma maneira tão cruel? O que Ele pretendia com isso? Punir-lhe pela existência estúpida que levara até ali?
Não. Viver sem ela seria um castigo penoso demais para aceitar. Seria como viver em um labirinto procurando uma saída sem, no entanto, jamais encontrá-la. Seria como vagar a esmo pela vida, ou pior, viver num buraco negro, na escuridão, como um cego condenado a viver sem enxergar a luz do sol. Seria como viver num corpo sem alma. Como viver sem a única pessoa que lhe apresentara o verdadeiro sentido da vida?
Subitamente toda a raiva sufocada aflorou-lhe aos olhos e chorou como uma criança desamparada. A saudade, o desespero, a fúria estavam todas ali presentes naquelas lágrimas quentes e dolorosas jorradas para fora de uma alma desalentada, perdida, vazia, marcada pela tragédia sem volta. Sentia-se como um vulcão a expelir toda a lava acumulada naqueles dias.
Decidido pegou as chaves do carro e saiu em busca dela. Podia senti-la ao seu lado, chamando-o para junto de si. Parecera que levara uma eternidade para chegar ali naquele local em que estivera há apenas três dias. Mas nada havia mudado. O caminho de pedras que conduzia ao túmulo dela ainda era o mesmo. As flores que depositara sobre o jazigo continuavam intactas, apesar da chuva que caía. O silêncio era cortado apenas pelo vento que assobiava e balançava ligeiramente as árvores. A treva era quase total no meio daquele descampado onde as almas descansavam e buscavam a paz que não desfrutaram em vida. Podia ouvir seu nome ecoando no silêncio e sentir a presença dela perto de si. Sim, era ela quem chamava por ele. “Estou aqui, meu amor. Eu vim para ficar com você”, respondeu com a voz embargada pela emoção, segurando a pequena pistola que trazia consigo.
Já podia sentir a paz que o invadia, quando, ainda uma vez, pôde vê-la estender-lhe a mão antes de puxar o gatilho e partir para encontrá-la, onde quer que estivesse.