Tentação ( parte XIV ) (continuação do capítulo anterior)
Na manhã seguinte não chovia, mas a terra ainda estava molhada, a lama, o barro e os dejetos dos animais, misturavam-se às folhas das árvores que haviam caído, e transformavam a estrada numa dificuldade só. O animal se esforçava para puxar a charrete, que derrapava e logo em seguida se deparava com um galho mais grosso atravessado, o que obrigava Silveira a parar e removê-lo. Assim foram parando para abrir porteiras porque a estrada passava por dentro de propriedades privadas, e a cada parada, Silveira chafurdava o pé naquele lamaçal, obrigando-o a limpá-lo no estribo da charrete. Quando chegaram ao recanto do regato, o animal estava exausto e tiveram que parar.
- Tudo por causa da sua teimosia, meu senhor, poderíamos ter ficado mais um dia, mas o senhor não aceitou, teimou em voltar logo, como se tivesse tantas coisa urgentes para resolver...
- Sou eu que estou com o pé na lama e não estou reclamando, senhora minha mulher... Ademais, sabe porque, minha mulher, que eu não quis ficar na sua casa, mais um dia ?
Porque estava receoso de não aguentar os preconceitos do senhor Adalberto, culpando todas as desgraças do mundo pelas imundices dos negros, pela ânsia de liberdade que têm os negros, pela empáfia em querer se mostrar superior, quando a maior parte das culpas do que ocorre se deve aos brancos que os capturaram, os escravizaram e porque é dos brancos que se originam os mulatinhos e mulatinhas que vemos por aí...
- Ora, senhor meu marido, conhecemos o gênio do meu pai, seu rigorismo anacrônico, hoje vivemos no romantismo e meu pai ainda vive na idade média, vamos deixar para lá, cada um tem o seu tempo... Mas por outro lado, foi bom nós termos voltado hoje, o senhor tem razão, porque estávamos fortalecidos para enfrentarmos juntos essas dificuldades...
Ela se referia, naturalmente, à noite maravilhosa que ambos tiveram, que deixava rastros e que não deveria ser ofuscada por uma simples divergência de opiniões entre Silveira e o pai.
- Devemos ser como o tempo, senhor, depois da chuvarada e de uma noite tenebrosa, com raios e coriscos, vem esse sol maravilhoso que nos aquece. E ato contínuo olha para o céu e mostra o sol a brilhar...
- Realmente é melhor esquecer...
Quando chegaram, as crianças estavam tomando banho de rio, Maria Rosa brincava com eles jogando pedras na superfície da água e Antonio João se gabava de estar aprendendo a nadar.
Maria Rosa não parava de elogiar os meninos, segurava-os pelas mãos e dizia que eles eram maravilhosos...
Quando ela sentiu que Ana Luiza se distanciou com Manuel, Maria Rosa olhou bem dentro dos olhos de Silveira e lhe disse baixo:
- Ele é tão maravilhoso como o pai...
Silveira não respondeu, mas cofiou seu bigode com a ponta dos dedos e começou a enrolá-los.
Ubiratan era muito diferente dos seus irmãos Ubirajara, Moacir e Jurandir, ele era calado e introspectivo, percebia-se que ele pensava muito antes de dizer qualquer coisa, e tudo o que ele dizia parecia ter sido elaborado com cuidado. Não parecia ser o dono da verdade que queria opinar sobre tudo e sobre todos, mas o que falava tinha substância.
Desde os primeiros encontros que Silveira tivera com ele, percebeu a sua capacidade de discernimento. foi quando lhe perguntou:
- Você também aprendeu a ler com a condessa?
- Eu, Jurandir e Moacir fomos os seus primeiros alunos. Nós mal sabíamos falar o português, nos comunicávamos na nossa língua de origem, o iorubá. Ela era uma santa, tinha muita paciência conosco, nos mostrava um objeto, por exemplo, uma cama e repetia inúmeras vezes o nome cama, até que o aprendêssemos. E quando nós aprendíamos, ela perguntava o nome da cama na nossa língua e ela o anotava, criando um pequeno dicionário iorubá- português. Depois de algum tempo ela falava também o iorubá quase tão bem como nós.
- E como se chama a cama em iorubá ?
- Àkete.
- Vocês ainda se comunicam em iorubá?
- Sim, mas só para não esquecermos as nossas origens.
- E como você me chamaria na sua língua?
- Ájasé... Que quer dizer vitorioso, mas ao mesmo tempo também quer dizer estranho...
Silveira ficou empolgado em saber coisas sobre a origem deles, soube que eles tinham vindo do Congo, e lhe pediu para dizer o significado de outras palavras.
- Pai, bábá...
Uma galinha passou no terreiro e ele disse:
- Awó...
- Ajé quer dizer feiticeiro, feiticeira...
Silveira se sentiu incomodado com essa última informação e perguntou:
- A condessa publicou esse dicionário?
- Não, ela não publicou, foi uma pena... ela nos obrigava a ler muito, eu gosto de fazer poesias, de escrever o que penso.
- Que bom, temos um poeta entre nós... Você já ouviu falar em Epicuro? Ele era um escravo romano e também um poeta e filósofo, um homem muito importante... Apontou para a cabeça, sede do pensamento e disse: a nossa liberdade está aqui!
- É por causa disso, senhor Silveira que gostaria de lhe pedir, que quando fosse ao Rio de Janeiro, que comprasse lápis e papel para eu escrever...
- Desde que faça uma poesia para mim...
- O senhor, assim, está confirmando o que disse o nosso barão da indústria, referindo-se ao Barão de Mauá, que aquele que dá a comida sem esperar o retorno, se chama caridoso...
E riram muito...
- Realmente, Ubiratan, eu não sou caridoso, mas procuro ser justo.
continua no próximo capítulo)
Na manhã seguinte não chovia, mas a terra ainda estava molhada, a lama, o barro e os dejetos dos animais, misturavam-se às folhas das árvores que haviam caído, e transformavam a estrada numa dificuldade só. O animal se esforçava para puxar a charrete, que derrapava e logo em seguida se deparava com um galho mais grosso atravessado, o que obrigava Silveira a parar e removê-lo. Assim foram parando para abrir porteiras porque a estrada passava por dentro de propriedades privadas, e a cada parada, Silveira chafurdava o pé naquele lamaçal, obrigando-o a limpá-lo no estribo da charrete. Quando chegaram ao recanto do regato, o animal estava exausto e tiveram que parar.
- Tudo por causa da sua teimosia, meu senhor, poderíamos ter ficado mais um dia, mas o senhor não aceitou, teimou em voltar logo, como se tivesse tantas coisa urgentes para resolver...
- Sou eu que estou com o pé na lama e não estou reclamando, senhora minha mulher... Ademais, sabe porque, minha mulher, que eu não quis ficar na sua casa, mais um dia ?
Porque estava receoso de não aguentar os preconceitos do senhor Adalberto, culpando todas as desgraças do mundo pelas imundices dos negros, pela ânsia de liberdade que têm os negros, pela empáfia em querer se mostrar superior, quando a maior parte das culpas do que ocorre se deve aos brancos que os capturaram, os escravizaram e porque é dos brancos que se originam os mulatinhos e mulatinhas que vemos por aí...
- Ora, senhor meu marido, conhecemos o gênio do meu pai, seu rigorismo anacrônico, hoje vivemos no romantismo e meu pai ainda vive na idade média, vamos deixar para lá, cada um tem o seu tempo... Mas por outro lado, foi bom nós termos voltado hoje, o senhor tem razão, porque estávamos fortalecidos para enfrentarmos juntos essas dificuldades...
Ela se referia, naturalmente, à noite maravilhosa que ambos tiveram, que deixava rastros e que não deveria ser ofuscada por uma simples divergência de opiniões entre Silveira e o pai.
- Devemos ser como o tempo, senhor, depois da chuvarada e de uma noite tenebrosa, com raios e coriscos, vem esse sol maravilhoso que nos aquece. E ato contínuo olha para o céu e mostra o sol a brilhar...
- Realmente é melhor esquecer...
Quando chegaram, as crianças estavam tomando banho de rio, Maria Rosa brincava com eles jogando pedras na superfície da água e Antonio João se gabava de estar aprendendo a nadar.
Maria Rosa não parava de elogiar os meninos, segurava-os pelas mãos e dizia que eles eram maravilhosos...
Quando ela sentiu que Ana Luiza se distanciou com Manuel, Maria Rosa olhou bem dentro dos olhos de Silveira e lhe disse baixo:
- Ele é tão maravilhoso como o pai...
Silveira não respondeu, mas cofiou seu bigode com a ponta dos dedos e começou a enrolá-los.
Ubiratan era muito diferente dos seus irmãos Ubirajara, Moacir e Jurandir, ele era calado e introspectivo, percebia-se que ele pensava muito antes de dizer qualquer coisa, e tudo o que ele dizia parecia ter sido elaborado com cuidado. Não parecia ser o dono da verdade que queria opinar sobre tudo e sobre todos, mas o que falava tinha substância.
Desde os primeiros encontros que Silveira tivera com ele, percebeu a sua capacidade de discernimento. foi quando lhe perguntou:
- Você também aprendeu a ler com a condessa?
- Eu, Jurandir e Moacir fomos os seus primeiros alunos. Nós mal sabíamos falar o português, nos comunicávamos na nossa língua de origem, o iorubá. Ela era uma santa, tinha muita paciência conosco, nos mostrava um objeto, por exemplo, uma cama e repetia inúmeras vezes o nome cama, até que o aprendêssemos. E quando nós aprendíamos, ela perguntava o nome da cama na nossa língua e ela o anotava, criando um pequeno dicionário iorubá- português. Depois de algum tempo ela falava também o iorubá quase tão bem como nós.
- E como se chama a cama em iorubá ?
- Àkete.
- Vocês ainda se comunicam em iorubá?
- Sim, mas só para não esquecermos as nossas origens.
- E como você me chamaria na sua língua?
- Ájasé... Que quer dizer vitorioso, mas ao mesmo tempo também quer dizer estranho...
Silveira ficou empolgado em saber coisas sobre a origem deles, soube que eles tinham vindo do Congo, e lhe pediu para dizer o significado de outras palavras.
- Pai, bábá...
Uma galinha passou no terreiro e ele disse:
- Awó...
- Ajé quer dizer feiticeiro, feiticeira...
Silveira se sentiu incomodado com essa última informação e perguntou:
- A condessa publicou esse dicionário?
- Não, ela não publicou, foi uma pena... ela nos obrigava a ler muito, eu gosto de fazer poesias, de escrever o que penso.
- Que bom, temos um poeta entre nós... Você já ouviu falar em Epicuro? Ele era um escravo romano e também um poeta e filósofo, um homem muito importante... Apontou para a cabeça, sede do pensamento e disse: a nossa liberdade está aqui!
- É por causa disso, senhor Silveira que gostaria de lhe pedir, que quando fosse ao Rio de Janeiro, que comprasse lápis e papel para eu escrever...
- Desde que faça uma poesia para mim...
- O senhor, assim, está confirmando o que disse o nosso barão da indústria, referindo-se ao Barão de Mauá, que aquele que dá a comida sem esperar o retorno, se chama caridoso...
E riram muito...
- Realmente, Ubiratan, eu não sou caridoso, mas procuro ser justo.
continua no próximo capítulo)