O EXAME DE DNA
 
 
Quando ainda acadêmico de direito fui, por força da grade do curso, estagiar no escritório jurídico da universidade. Ninguém escapava. Ali você teria que demonstrar sua capacidade técnica. Atendendo diversos problemas que chegavam. Eram de todos os seguimentos do direito. Eu sempre clamava a professora responsável que não queria e não gostava de atender problemas de família, talvez por carregar dentro de mim a dor de ter sido abandonado pelo pai.
Porém, a mestre não atendia apelo de ninguém, e segundo a própria, deveríamos passar por tudo, inclusive por aquilo que não gostávamos, não importava, ela queria e precisava de resultados, o número de atendimento deveria sempre crescer, a sociedade precisava e nós, meros estudantes, estávamos para servir.
Certo dia ao chegar estava na recepção um senhor, aparentava uns 40 anos, tranqüilo, vestido de forma simples, e no olhar uma pergunta: quem pode me ajudar? Quando passei por ele senti que queria falar, mas se conteve, eu percebi e logo retornei a recepção e perguntei se podia ajudá-lo. Ele com um sorriso e agora olhos brilhantes respondeu que sim, que talvez eu fosse a solução para o seu problema, já que há dias ele não dormia – assim respondeu.
Então o convidei para entrar, pedi que sentasse e me contasse o seu problema. Ele abriu uma pequena pasta e sacou alguns documentos, começando a contar sua vida. Disse que havia vivido durante alguns anos com a mãe dos seus filhos, mas que em virtude das brigas o amor acabou, restando do relacionamento dois filhos, um com 18 e outro com 15 anos, belos moços, estudavam e estavam bem, e moravam com ele, o pai. Mas que há pouco tempo a ex-companheira havia retornado e ele, a pedido dos filhos havia tentado reconstruir a família. Viveram ainda alguns meses, mas não dava certo, a ex-companheira havia adquirido alguns hábitos, dentre os quais o de ir para as festas e ele, além de não gostar não aceitaria aquela vida que ela queria levar, portanto, o melhor seria cada um pro seu lugar.
Mas ao sair de casa novamente, a ex-companheira retornou depois de alguns meses, dizendo estar grávida e que o filho era dele. Para não começar uma briga novamente ele disse que tudo faria por ela e pela criança, mas que ela continuasse onde ela estava, na casa da mãe dela, e quando a criança nascesse eles fariam o exame de DNA e se positivo faria o registro e daria tudo para a criança. Trato feito, ele ajudou durante a gravidez, patrocinando médicos e etc. mas mesmo grávida não mudava sua forma de ser, continuava nas festas e vivendo como se adolescente fosse.
Quando a criança nasceu ela logo exigiu o registro, mas ele disse que não, que antes deveriam fazer o exame, como haviam acertado lá atrás.
Assim, e ele estava ali para que o escritório o ajudasse, o encaminhasse para fazer esse exame, pois soube do convênio da faculdade e queria resolver aquela história.
Durante o seu relato pude observar uma coisa naquele senhor, sua paciência em falar, sua forma pacífica de se expressar, e nos olhos a verdade, me olhava nos olhos, não trazia qualquer dúvida sobre o que falava. Respondi a ele que iria ajudá-lo e já começaríamos, pedi então que ele levasse um convite para ela comparecer ao escritório para assinar o termo e em seguida iriam fazer o exame.
Dois dias depois, eu cheguei por volta das 13h, lá estava ele, acompanhado da ex-companheira. Ela uma mulher meio que “pra frente” apesar de não ter mais a idade de uma adolescente, mas toda pintada, cabelos tingidos, roupas degotadas. Os cumprimentei e disse que logo os atenderia. Em minutos os convidei a entrar e começamos a conversa. Como querendo se defender da dúvida do ex-companheiro a mulher foi logo falando da sua vida, se justificando etc. eu a cortei pelo meio, dizendo a ela que eu não estava ali para julgá-la, muito menos formar opinião sobre a pessoa dela, que de fato queria ajudá-los a resolver suas vidas, lhes trazer a paz social, essa era a minha única e real vontade. Perguntei se ela estava disposta a resolver a situação fazendo o exame, ela respondeu que sim e que logo acabaria com aquela dúvida cruel.
Então, lavrei o ato, colhi a assinatura das partes, da professora, do representante do MP e os encaminhei para o exame. Antes porém, o possível pai, me fez a seguinte pergunta: por um acaso, já que vamos fazer esse exame, haveria algum problema em eu levar os outros dois filhos e também fazermos o exame neles? Respondi que se sua ex-companheiro não se opusesse, não haveria problemas. A ex-companheira virou-se para ele e quase o agrediu, falou vários palavrões etc. intervi e pedi calma. Ela já mais calma e querendo demonstrar fidelidade disse que não temia e que agora ela queria fazer o exame em todos, e que de posse do resultado iria processar o ex-companheiro lhe pedindo danos morais etc.
Uma vez calmos e de posse do encaminhamento foram-se, os levei até a porta e na despedida pedi que não brigassem, que fossem amigos, pois tinham filhos em comum, ambos concordaram e disseram que logo retornariam quando o exame estivessem pronto. Retornando ao meu local de atendimento fiquei pensando e em seguida fui comentar com a professora. Pedindo-lhe para que ela não me metesse naquele tipo de situação, eu ficava muito triste em ver pessoas querendo se matar e os filhos sofrendo etc. ela me prometeu que como eu já havia cumprido minhas horas de estágio ficaria apenas na coordenação, mas que se surgisse casos complicados eu deveria atuar, já que sempre demonstrei ter a capacidade de fazer as partes conciliarem.
Passados uns 15 dias chegou o resultado dos exames, quando cheguei no escritório estavam na minha pasta de casos. Daniel, meu colega, estava dando gargalhadas, dizendo que iria ligar para o programa do ratinho para virem filmar, que se o resultado fosse negativo a briga seria enorme etc. eu o condenei com aquele olhar de reprovação, e disse-lhe: cuidado meu nobre colega, aqui tratamos com vidas humanas, famílias, aqui é real. Seja ético ao tratar de um assunto tão sério. Todos silenciaram, viram o quanto eu presava pela família e não aceitaria deboches ou qualquer outro tipo de brincadeiras com as pessoas que nos procurassem. Fui até a secretária do escritório e pedi que ela ligasse para os interessados comparecerem na dia seguinte, às 15h, que já havia chegado o resultado.
No dia seguinte, eles chegaram, com duas horas de antecedência, quando cheguei eles já estavam, os cumprimentei e disse que assim que possível os atenderia. Atendi uns três casos antes e os chamei, de posse do documento disse que iria abrir na frente deles, e pedi que o resultado do exame não deveria servir para agressões mutuas, que eles estavam em um lugar público e eu não aceitaria comportamentos deselegantes, muito menos baixaria.
Abri o primeiro exame, da criança de 7 meses, resultado, negativo, ele não era o pai. Ele demonstrou um certo desânimo, acho que queria que fosse positivo, mas infelizmente não o era. Ela caiu em prantos, envergonhada, humilhada, constrangida, lhe ofereci um copo d’água. eu quase comecei a chorar junto, cometi um dos piores erros do operador do direito, deixar se envolver na causa, mas não tinha jeito, somente vivendo a situação para você saber o quanto tudo aquilo é dolorido. Por sua vez o ex-companheiro a acalentava e dizia que mesmo assim não a abandonaria, que a ajudaria, que ele somente queria ter a consciência tranquila que não estaria abandonando um filho.
Depois de muita emoção, eu não quis abrir os outros exames, eu já sabia do resultado. Fui até a professora que de longe ouvia a situação e também já estava quase chorando, disse a ela que não abriria os outros resultados, ela por sua experiência disse que eu deveria consultá-los se eles concordassem eu poderia tomar minha decisão. Retornando a sala, já com um isqueiro na mão e os exames na outra perguntei para o possível pai: aqui estão os outros resultados, quero lhe perguntar o seguinte posso abrir ou devo queimá-los, pois acho melhor o senhor ir para casa e cuidar dos seus filhos, esse resultado, um simples papel, não vai mudar o seu amor por eles? A mãe continuava em prantos, como vendo sua vida toda passar em segundos, seus erros viram a tona, sua culpa era maior, toda aquela arrogância acabara ali, estava, com suas lágrimas pedindo perdão por todo mal que pudesse ter causado, era deprimente.
Com os olhos cheios de lágrimas, o possível pai, com a palavra perdida, olhando para a parede branca, como se estivesse procurando uma resposta para suas falhas, em silêncio, perdido em seus pensamentos, bem longe dali estava, talvez rebuscando em toda sua vida uma explicação para aquilo que vivia naquele momento.
Eu reiterei a pergunta, ele virou-se para mim e disse que não queria saber do resultado, que eu podia fazer o que bem entendesse, que aqueles dois pedaços de papel não representavam nada para ele. Que ele sairia dali para casa, estava desesperado para ver e poder abraçar os seus filhos. Perguntou se ele poderia se retirar, respondi que sim, ele então convidou sua ex-companheira para irem embora, juntos saíram dali e nunca mais os vi ou tive qualquer notícia sobre eles. Eu, queimei os resultados, seguindo a ordem do principal interessado, que no momento certo decidiu pelo amor, talvez não fosse o amor de um verdadeiro pai, mas de um homem que optou pela felicidade daqueles que o honram e o presam como pai.